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A docência como escolha profissional: significações imaginárias

4. TRAMA E TECEDURA: Trajetos formativos, significações, saberes e tensões

4.1 A docência como escolha profissional: de onde ela veio?

4.1.1 A docência como escolha profissional: significações imaginárias

Nas narrativas dos colaboradores, quando revisitam suas memórias sobre a escolha da docência, é possível perceber que ela vem permeada de significações imaginárias, ou seja, repletas de “sentidos, significados focados por uma lente simbólica” (BRANCHER e OLIVEIRA, 2017, p.30). Tais significações são relacionadas por Castoriadis (2006, p. 66) “com criação, isto é, com a imaginação” não procedente do indivíduo, mas sim do que é denominado por ele de imaginário social, que “não são nada se não compartilhadas, compartidas por esse coletivo anônimo, impessoal, que a sociedade é a cada vez” (idem).

Com outras palavras, a sociedade e suas instituições se constituem a partir da trama de sentidos criados simbolicamente e partilhados, dando-lhes a “formatação” que conhecemos. Ao mesmo tempo, é quase impossível (se não o for) determinar precisamente onde, quando e com quem cada significação imaginária social foi criada e passou de instituinte a instituída. Dessa forma, reverbera nas falas dos colaboradores crenças e valores compartilhados ao longo do tempo com relação à docência.

Ferreira (1999) em sua obra relaciona a profissão docente ou sua desprofissionalização, sua valorização ou desvalorização, em diferentes momentos históricos, a partir do imaginário social “buscando vestígios, sinais, marcas que possam evidenciar o sagrado e/ou profano no conjunto coordenado de representações acerca do magistério” (p.25). Nesse sentido, vou tomar emprestado dele algumas considerações para tecer as análises dos recortes seguintes das falas de Marrom, Verde e Bege:

[...] eu morava em uma casa com um casal na época que eu estudava aqui. Eles tinham um menino e eu tive sempre uma relação muito boa com esse menino de cinco anos. Ela sempre me dizia: “você é muito maternal”. Vem muito do perfil da docência, com a coisa da mulher maternal por ter jeito com criança né. [...] ela dizia “porque é o teu perfil”. (Marrom).

Aqui é possível visualizar claramente a relação simbólica da docência com a maternidade, com a capacidade do cuidado, com o “dom” que faz da mulher capaz de ser boa professora por essa natureza. É interessante perceber que ainda nos anos 2000 se reconheça essas características pessoais como indicadores da competência para desenvolver a docência. Tal colocação sugere uma “viagem” ao tempo em que a mulher por este perfil maternal assume a função do magistério como uma possibilidade de participar do mundo do trabalho em um contexto sócio-histórico em que não lhe era facilitado.

Há que se destacar igualmente a maior participação das mulheres na sociedade da época [1870] e o processo de feminização do magistério, que se deveu em grande parte à difusão das teses higienistas e à ênfase na educação infantil. Multiplicaram- se estudos sobre a criança e valorizaram-se as ações educativas destinadas à

infância, entendida como uma geração que demanda cuidados específicos. Embora

prevista desde o início, a presença das mulheres nos cursos normais, tornou-se significativa após a década de 1850, com as escolas funcionando em dias alternados para homens e mulheres, em turnos diferentes e só então na modalidade mista. No final do século XIX as mulheres já predominavam nas escolas normais e no exercício do magistério. (Grifos meus).

Ampliando essa colocação, Rosa (2011, p. 8),

[...] as mulheres tinham “por natureza” o jeito e cuidado para lidarem com as crianças, portanto nada melhor que responsabilizá-las pela educação escolar dos pequenos. Outro forte argumento propagado era que os lares não sofreriam a ausência feminina e a sua inserção na docência não alteraria seu papel social, visto que cuidar de crianças e educá-las era o destino que se esperava que fosse cumprido por elas.

Com isso, nota-se que ainda estamos permeados pela significação da docência para crianças - e mais ainda de crianças com deficiência – como ato naturalmente feminino. Embora este não seja o foco principal de minha pesquisa, senti necessidade de demarcar o quanto as significações sociais imaginárias nos atravessam e nos mobilizam fazendo com que sigamos alguns trajetos em detrimentos de outros.

Em outro sentido, encontramos na narrativa de Bege e Vermelh@ indícios de significações do status do professor e sua função social.

Quando eu era muito jovem e ainda não atuava como professor, gostava muito de conversar com os amigos surdos. O professor surdo não chamava minha atenção, o tempo foi passando e encontrei a Escola Reinaldo Cóser, lá eu era aluno, levava tudo na brincadeira. Os professores exigiam empenho, responsabilidade, pensei nisso, que eu deveria ter atitude. Resolvi conversar com minha mãe sobre o que os professores falavam em aula. Minha mãe me orientou, disse que eu poderia trabalhar na escola futuramente, mas ainda não me sentia preparado. Até que fui contratado pela escola para fazer um estágio remunerado vinculado ao CIEE. Antes de começar a dar aula, me disseram que não poderia usar brinco, piercing, bermuda... Enfim, deveria mudar todo meu estilo. Eram regras para todos (alunos e professores). Então, mudei a maneira de me vestir e comecei a me sentir bem atuando como professor.

Parece-me clara a significação do professor como modelo de conduta e comportamento socialmente concebido e reconhecido como correto ou adequado, quase como a incorporação de um “personagem” que se constrói para assumir um “papel” de destaque, sendo que para tal precisa se desconstruir como indivíduo singular, demarcando também o

status do professor para aquelas pessoas naquele contexto. Nóvoa (1999, p. 19) aponta que no início do século XX os professores foram “investidos de um importante poder simbólico”, o qual de certa forma ainda se faz presente no imaginário social.

Além disso, considero pertinente demarcar a pessoalidade do professor como componente indissociável de sua profissionalidade, para tanto busco em Brancher (2013, p. 64),

[...] a ideia do professor como indivíduo que tem uma história e, inerente a ela, encerra uma gama de saberes e informações que necessitam ser conhecidos para que produzam novas significações às práticas docentes é algo que nem sempre foi aceito academicamente. [...] O professor não é tão somente o magistério: ao contrário, é uma pessoa que vive, que sonha, que se relaciona, que vai ao teatro [...] Assim a docência é uma parte de sua vida e também é sua vida.

Porém, assumir a transição da adolescência para a adultez, demarcada pela mudança de comportamento e vestimentas, também foi um elemento constitutivo da identidade pessoal/profissional de Bege, explicita na colocação “mudei a maneira de me vestir e comecei

a me sentir bem atuando como professor”. Ferry (1990, p. 52) pondera que “la formación es

un proceso de desarrollo individual tendiente a adquirir o perfeccionar capacidades. Capacidades de sentir, de actuar, de imaginar, de comprender, de aprender, de utilizar el cuerpo [...]”, reforçando a aproximação entre pessoalidade e profissionalidade docente. Nesse sentido Bege complementa:

Eu escolhi essa profissão porque sonhava em ensinar os alunos, queria que esse sonho se tornasse realidade. Ensinar as pessoas, compartilhar conhecimentos, demonstrar minha competência para toda a comunidade. O ensino serve para isso, progredir. (Bege).

A profissão de professor desperta o reconhecimento das competências da pessoa surda. Remete a significação do status que circunda a profissão (apesar da crise de identidade e reconhecimento que se perceba há anos), qual seja, ter conhecimento (saber) e capacidade suficientes para ocupar esse lugar de “sucesso”. Nesse sentido, Nóvoa (1999, p. 17) pondera que,

[...] No momento em que a escola se impõe como instrumento privilegiado da estratificação social, os professores passam a ocupar um lugar-charneira nos percursos de ascensão social, personificando as esperanças de mobilidade de diversas camadas da população: agentes culturais, os professores são também, inevitavelmente, agentes políticos.

Nessa lógica, também Vermelh@ comenta que:

O contato, ver um professor surdo, faz elas pensarem: “Eu também posso trabalhar, posso discutir política, posso várias coisas’’, o que antes não sabiam. O professor surdo mostra que eles podem fazer igual. Isso começa a animá- los, se identificar e os deixa felizes! ‘’Eu posso fazer igual ao professor surdo’’. Assim se desenvolvem líderes, líderes que vão difundir mais uma política forte para discutir com os outros em diferentes cidades. É muito importante esse modelo surdo.

Diante disso, antevejo nesta significação o prenúncio das tensões que se estabelecem no exercício da docência da Libras, ou mais precisamente, em quem “deve” ser o profissional a exercer tal função. Retornarei a esta temática, mais especificamente no tópico 3.4 deste capítulo.

Em sentido oposto ao status ou a imagem positivos da profissão docente, encontro na narrativa de Lilás a seguinte colocação: “[...] eu como tive a mãe, tenho, que é professora,

está aposentada, eu sempre dizia que nunca ia ser professora. E cá estou!” Penso que a

vivência da docência, enquanto filha de professora, levou-a a perceber a profissão de outro lugar, o lugar onde a profissão se entrelaça com a pessoalidade do professor (no lar nesse caso) e expõe sua “fragilidade” social e política, remetendo a uma imagem “profana” como indica Ferreira (1999, p. 81 e 83),

[...] Chama atenção outra vez a ênfase dada às reivindicações por melhores condições de trabalho, sobretudo por melhores salários. [...] Essas reivindicações estão presentes em anos anteriores, mas ganham muita força no final da década de 60 e por todos os anos 70 [...].

[...] a imagem do professor nessa época [1976] parece já estar intimamente relacionada a uma atividade “sofrida”, que “recebe baixos salários”, que não tem por parte do governo o reconhecimento de sua importância. Destaca-se outra vez a “ideia de sacrifício”, mas parece haver uma diferença importante. [...] ao que tudo indica, o profissional passa a não mais aceitar ser reconhecido pela sociedade desse modo.

Tento demarcar com esta citação um pouco da crise que se estabelece na profissão docente desde muitos anos, ou seja, os baixos salários que levam a busca por maior carga horária de trabalho, dentre outros e não são reconhecidos como “importantes pelo governo” e tampouco pela sociedade, como o fora nos tempos do “sagrado” (idem).

Oliveira (2006, p. 176) pondera que,

Essas significações, sobre a docência e sobre o professor, são construídas desde o momento que entramos numa sala de aula, como aprendizes, nos diferentes momentos da escolarização, e mesmo antes de entrar nela. Temos uma representação

do que seja um professor, uma aula, uma avaliação, uma escola, enfim, estas imagens se configuram em saberes construídos ao longo de nossas histórias de vida.

Assim, falar em significações e docência é também falar em trajetos formativos, ou melhor, é olhar para os trajetos formativos dos professores e entender a formação como um processo que independe de um local ou tempo específicos para acontecer. De acordo com Ferry (1990, p.54) “formarse es reflexionar para si, para um trabajo sobre si mismo, sobre situaciones, sobre sucesos, sobre ideas”, não indicando um processo isolado, sendo que trata- se de seres humanos e por conta disso seres sociais, porém aponta para a importância da reflexão sobre si e sobre sua história, suas memórias, podendo ser desencadeada ao narrar-se.