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A douta ignorância como teoria do conhecimento

CAPÍTULO III – VISÃO DE DEUS E TEORIA DO CONHECIMENTO

4 A DOUTA IGNORÂNCIA

4.1 A douta ignorância como teoria do conhecimento

Nicolau de Cusa começa por rejeitar o conceito tradicional de lógica ou de

teologia racional e usa a expressão teologia mística, querendo com isso ultrapassar

os limites do conceito tradicional de mística, o qual pensava a mística exclusivamente como afetiva, excluindo o conhecimento. Para o Cusano, o verdadeiro amor de Deus é “amor Dei intellectualis” (CASSIRER, 2001, p. 23), pois

este abarca o conhecimento como momento e condição necessários, uma vez que “ninguém é capaz de amar o que já não tenha conhecido em algum sentido” (CASSIRER, 2001, p. 23). Desta forma o conhecimento não exclui a dimensão afetiva,

mas a ultrapassa.

Esse parágrafo de abertura aponta para o divino, incondicionado aquele que se furta ao conhecimento discursivo pelo simples conceito e que exige uma nova forma de abordar o conhecimento. Este é para Nicolau de Cusa a visão intelectual, a

visio intellectualis, “na qual todas as oposições de gênero e espécie deixam de

existir, porque nos vemos transportados à sua origem simples, a um ponto anterior a toda e qualquer divisão, a toda e qualquer oposição, para além de todas as diferenças empíricas do ser e de todas as suas divisões meramente conceituais” (CASSIRER, 2001, p. 24). Esse tipo de visão, segundo Cassirer, era o que a teologia

escolástica acreditava não poder alcançar e através da qual, Nicolau de Cusa

mudará todo o enfoque acerca da relação entre absoluto e finito, ou entre finito e infinito. A visio intellectualis pressupõe “um movimento espontâneo do espírito” (CASSIRER, 2001, p. 25), uma força primordial que nele mesmo reside, na qual o

homem se coloca numa relação direta com Deus num trabalho mental contínuo. A lógica escolástica era regida pela lógica das categorizações orientadas pelo princípio da contradição e do terceiro excluído, quando com Nicolau de Cusa postula-se uma nova lógica que é a lógica matemática e que não exclui a coincidência dos opostos, mas que a usa como princípio constante e necessário para a evolução do conhecimento.

O objetivo é ultrapassar as fronteiras do modo de pensar medieval, exigência essa que o coloca diante de uma tarefa objetiva, uma vez que terá que expressar, dentro dos limites da linguagem conceitual filosófica dominante, um pensamento que aponta para além dos limites da Escolástica.

O que surge com esse novo pensamento é uma nova relação entre o sensível e o suprassensível, entre o mundo empírico e o intelectual. Retomando a palavra de Platão, segundo a qual “o bem está além do ser” (CASSIRER, 2001, p. 34), Nicolau de

Cusa conclui que “nenhuma sequência de conclusões, que comece por um dado empírico e que alinhe e relacione um dado empírico a outro num processo contínuo, é capaz de levar até ele, já que todo pensamento dessa natureza opera no âmbito da mera comparação, ou seja, na esfera do “mais” e do “menos”” (CASSIRER, 2001,

p. 34). É o que se pode denominar como uma ontologia do número, o que aí está presente, pois é a unidade que constitui seu princípio e seu fundamento. A grande descoberta de Nicolau de Cusa é a de ter encontrado um espaço que “está para além da impossibilidade de superar a falta de proporção com relação ao infinito, porque encontrou na unidade, princípio e fim do número a ‘des-vinculação’, isto é, o absoluto enquanto contraposto à limitação e à determinação do concreto” (CUSA,

2007, p. 135).

Nicolau de Cusa usará o conceito de máximo com o intuito de tentar apreender por meio das comparações aquilo que se eleva para além de toda e qualquer comparação e, para isso, quer estabelecer uma oposição incondicionada a toda e qualquer comparação possível. O máximo, assim postulado, “não é um conceito de grandeza, mas um conceito puramente qualitativo: ele é o fundamento absoluto do ser, assim como o fundamento absoluto do conhecimento” (CASSIRER,

2001, p. 35).

Na sua obra o Cusano também retoma o tema da diferença entre ciência e sapiência: a primeira é humana e a segunda é divina, trazendo como implicação central a dimensão da mística, que “aparentemente nos reconduz ao âmbito da subjetividade individual no seu contato quase direto e imediato com a divindade” (ANDRÉ, 2001, p. 214), caminho esse ao qual tenta se aproximar através da douta

ignorância e da ascensão que esta implica. Para esclarecer sua fala sobre a sapiência, ele pontua que são três as regiões que esta abrange: “a primeira é aquela na qual se encontra assim como é na eternidade; a segunda é aquela na qual se encontra na semelhança perpétua e a terceira, na qual resplandece de longe no

fluxo temporal da semelhança” (VESCOVINI, 1998, p. 61) concluindo que aquilo que

nos move é o desejo de saber que ignoramos. A partir dessas três regiões, adverte o Cardeal sobre a necessidade de buscá-las através de dez campos maximamente adaptados para tal, sendo que ao primeiro desses campos ele denomina: douta

ignorância; ao segundo poder-ser; ao terceiro não outro; ao quarto denomina campo da luz; ao quinto campo do louvor; ao sexto campo da unidade; ao sétimo campo da igualdade; ao oitavo campo da conexão; ao nono campo do fim; ao décimo campo da ordem. Dentre estas categorias, o principal foco será dado à douta ignorância.

Partindo do primeiro campo da busca, isto é, da docta ignorantia, precisa-se saber primeiramente que não se sabe e que a verdade como precisão absoluta e infinita é inatingível porque o conhecimento que aponta para o finito se dá por comparação e por proporção. Isso porque “não há proporção entre finito (a mente humana) e infinito (Deus, que é a precisão absoluta)” (VESCOVINI, 1998, p. 17).

Ainda que a categoria principal da dimensão mística tenha como referência a

coincidentia oppositorum, tentando-se ser fiel ao pensamento de Nicolau de Cusa,

este em seu De visione Dei situa Deus para lá do muro da coincidência. No Capítulo XI desta obra, quando o Cusano é apascentado e alimentado “com o leite das comparações” (CUSA, 1998, p. 173), até que lhe seja concedido um alimento mais

forte, busca encontrar “para lá do muro da coincidência da complicação e da explicação” (CUSA, 1998, p. 173) esse infinito mencionado. É este o modo pelo qual

diz entrar e sair pela porta do Verbo divino: “entro quando te descubro como virtude complicante de todas as coisas, saio quando te descubro como virtude explicante e entro e ao mesmo tempo saio quando te descubro como virtude simultaneamente complicante e explicante” (CUSA, 1998, p. 173/174). Entrar aqui é partir das criaturas

para o criador, da causa para o efeito e sair é partir do criador para a criatura, da causa para o efeito. Mas entrar e sair simultaneamente é como que complicar e explicar a um só tempo. Diz o Cardeal que, com efeito, “a disjunção e simultaneamente a conjunção são o muro da coincidência para além do qual existes desligado (Absolutus) de tudo o que pode dizer-se ou pensar-se” (CUSA, 1998, p.

174).

É deste modo que as considerações em torno da docta ignorantia, que permeia a presente tese, mantêm como sua finalidade principal resgatar a sabedoria presente na mística medieval de Nicolau de Cusa. Isso implica em discorrer sobre essa e outras obras do autor, buscando evidenciar a originalidade de sua proposta,

a qual inicialmente parece especular sobre a expressão bíblica que enuncia da parte de Deus: “Façamos o homem a nossa imagem, segundo nossa semelhança” (Gn 1,26)70 e atinge seu grau de otimização quando propõe: “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)71, propostas estas que apontam para a deificação do homem.

Nessa mesma linha de pensamento Alberto Magno ao pensar em Deus como princípio, pensa acerca do entendimento:

Digamos, portanto, que quando se diz que o intelecto agente é como a luz, se tem em conta nesta semelhança três aspectos, dos quais o primeiro é que o primeiro agente é o ser intelectual, o segundo que é universalmente agente intelectual, o terceiro que é ininterruptamente ser inteligível (CUSA,

2005, p. 14)72.

Este é o mesmo princípio que Nicolau de Cusa traz como pano de fundo de todas as suas obras, ou seja, como princípio fundamental que orienta todas as

explicações acerca da mens e seu paralelismo entre a mente divina, fonte de todas

as entidades, e a mente humana, fonte de todas as semelhanças.

Na busca desse princípio, a noção de docta ignorantia se baseia sobre o desejo de um intelecto que tende naturalmente para a busca da verdade, a qual, como se dirá muitas vezes, se revela inalcançável. Nesse sentido o tema da proporção e do número surge como elemento imprescindível do conhecimento humano, supondo uma doutrina da mens.

Em seu dinâmico modo de operar surge o espírito humano querendo ver ignorantemente o absoluto através dos símbolos, especialmente os geométricos, e de sua “transumptio ad infinitum” (De docta ignorantia, I, XII, n. 33)73

. Nessa dinâmica, Nicolau de Cusa estabelece que “a mente é origem de toda conjectura (origo coniecturae), forma conjectural do mundo (forma coniecturarum mundi) e entidade mesma de suas conjecturas (entitas coniecturarum suarum)” (CUSA, 2005,

70 1:26 et ait faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram. Latin Vulgate – Genesis 1, encontrada em: http://www.sacred-texts.com/bib/vul/gen.htm, pesquisada em: 30.04.2010.

71 1:14 et Verbum caro factum est et habitavit in nobis. Latim Vulgate.

72 Citado de MAGNUS, A. De intell. et int. II trac. un.c. 3 (Borgnet, 9, 506): Dicamus igitur cum dicitur quod intellectus agens est sicut lux, tria in ipsa attenduntur similitudine, quorum et primum est, quod sit primum agens esse intellectuale; secundum est quod est universaliter agens intellectuale, tertium est quod est incessanter agens esse intelligibile (Un ignorante discurre acerca de la mente. Idiota. De mente, 2005, p. 14).

p. 23)74

. Todo o esquema desenvolvido culmina então em quatro unidades, através das quais a mens se contempla a si mesma, ao mesmo tempo em que tudo abarca. À primeira destas unidades denomina unidade simplíssima, Deus; à segunda denomina inteligência; à terceira denomina alma, e por fim à quarta denomina corpo. O paralelismo entre os intelectos divino e humano apontará para o caráter intelectual do princípio de todas as coisas, enquanto caráter criador da mente humana “ela mesma princípio de entes racionais – números, figuras, noções – e formas artificiais” (CUSA, 2005, p. 26), ela mesma sendo chamada de vários modos,

entre eles, medida de todas as coisas75

, imagem viva de Deus. Esta pretende ver em si mesma, em seu próprio modo de operar e em todas as coisas a intenção “do escritor oculto do livro do mundo” (CUSA, 2005, p. 26)76.