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A dramaturgia do culto Princípio da performance nas procissões

No documento elzaaparecidadeoliveira (páginas 77-80)

PARTE 2: ESPAÇO SAGRADO E ESPAÇO PROFANO EM MAGÉ: HIBRIDISMO,

2.1.2 A dramaturgia do culto Princípio da performance nas procissões

Segundo TINHORÃO (2012, p. 7), a procissão de Corpus Christi “constituiu durante quase seis séculos a mais variada e animada festa religioso-popular de Portugal” (do século XIV ao século XX), não só em Portugal, segue o autor em nota de rodapé sobre a procissão na Espanha no século XIV, na Galícia no inicio do século XV, em Santiago de Compostela e em Pontevedra desde o século XVI.

A festa de Corpus Christi, em Portugal, vinha, conforme o dogma aprovado pelo IV Concílio de Latrão (1215), afirmar a presença de Cristo em substância na Eucaristia, representado em carne e sangue pelo pão e o vinho a nova aliança sagrada da fé cristã, o que segundo TINHORÃO (2012) seria o equivalente ao pacto com Deus expresso pelos judeus, ainda no Antigo Testamento: a Arca da Aliança.

Segundo o autor, há uma semelhante coincidência entre o episódio da Arca da Aliança, citado na Bíblia com a festa de Corpus Christi, ambos, segundo o autor, possuem “o espírito de júbilo traduzido em festa” (2012, p.8), o que fez com que os organizadores da procissão em Portugal resolvessem incorporar à sua comemoração.

Na narração bíblica, segundo TINHORÃO (2012) há

Uma alegre transladação da Arca da Aliança, primeiro, de Judá para uma tenda armada pelo Rei Davi em Jerusalém e, depois, para um palácio revestido de cedro (...). [Durante a primeira transladação] “Davi e toda a

casa de Israel dançavam diante do Senhor com todo entusiasmo, cantando ao som de cítaras, harpas, pandeiros, sistros e címbalos” 28

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Já na segunda transladação29, o Rei Salomão organizou uma festa que durou sete dias. E com base nessas passagens que Portugal, desde o início das procissões de Corpus Christi procurou reproduzir, “a saltitante alegria do rei judeu, juntamente com seus pajens ricamente vestidos” (TINHORÃO, 2012, p.9).

GUIMARÃES, (1872, apud TINHORÃO, 2012, p.9) transcreve o trecho dos mais antigos regimentos da procissão de Corpus Christi conhecidos em Portugal, o de Coimbra, 1517, e do Porto, 1620.

A citação é do Regimento da Procissão da Festa do Corpo de Deus realizada no Porto, em 1620, que em um de seus itens estabelecia: “Item. Irá Davi dançando, com, seus pajens, que serão doze, ricamente vestidos, e os darão os mercadores do Brasil e de outras partes”. O Regimento da Festa do Corpo de Deus de Coimbra, em 1517, não se refere expressamente ao rei Davi, mas estabelece aos forneiros, carniceiros, telheiros, caieiros e lagareiros da cidade, de temo a obrigação de “fazer a judenga, com sua toura (Tora, o livro das Leis)” sempre com nada menos que seis homens, “que andem na dita judenga, com boas Canas e vestidos segundo se requer para tal auto”. Essa representação do episódio bíblico na procissão de Corpus Christi acabou por consagrar o nome judenga para a dança de Davi e seus pajens realizada nesse auto que abria o cortejo.

Essa “encenação público-ambulante” de episódios bíblicos adotada para animar a procissão de Corpus Christi em Portugal, nos inícios do século XIV, não se caracterizava como uma novidade porém um retorno “a tradição da nascente Igreja cristã, iniciada dentro dos primeiros Templos” (TINHORÃO, 2012, p.9). Essas encenações bíblicas vieram, também e principalmente, como forma de ilustrações para os fiéis, uma antecipação da futura “dramaturgia didático-religiosa, que evoluíram, segundo o autor, para os mistérios, milagres e moralidades do teatro medieval” (TINHORÃO, 2012, p.10).

Toda essa manifestação performática, seja pelas encenações em si ou pelo propósito que elas detinham, tinha como proposta incentivar e motivar uma maior adesão do público cristão à mensagem de fé cristã. Essas encenações passariam da regência da Igreja, por meio

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Cf. Livro de Samuel 2, 6-23.

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dos padres e dos clérigos, e contariam com a participação dos devotos de confrarias formados por corporações de trabalhadores dos mais variados ofícios. Segundo Jacques HEERS, (1987, p.46 apud TINHORÃO, 2000, p.25-26), “a partir de então, não seria surpresa ver soltarem pombos nas Igrejas representando o Espírito Santo nas solenidades de Pentecostes”.

A partir do século XII, essas encenações transpassaram os muros dos templos e migraram para as ruas, principalmente as procissões, a partir de uma maior familiaridade entre a Igreja e seus fieis no campo da prática da devoção. Segundo TINHORÃO isso se deu com a criação, ao lado das irmandades religiosas formadas com base na divisão social, de um novo tipo de agremiação de caráter leigo: as chamadas confrarias, compostas por artesãos e trabalhadores, agrupados segundo seus ofícios (2012, p.11).

As confrarias surgiram por volta do século XI como associações de fiéis dispostos à defesa do cristianismo como religião oficial, elas evoluíram durante o século XIII para um modelo de organização paralelo ao das irmandades religiosas, com a diferença de que após surgirem como entidades representativas da sociedade em geral as confrarias passariam a agrupar-se por atividades profissionais e participarem ativamente nas manifestações exteriores de culto, “sempre tão próxima do espírito da festa” (TINHORÃO, 2012).

Em Portugal a participação dos ofícios nas procissões de Corpus Christi tornou-se de caráter obrigatório ao mesmo tempo que a festa também se tornara, enquanto a mesma se mostrava, ao olhos do público como afirmação não apenas da grandeza da fé como do poder do Estado, começa a se estabelecer a dupla ordenação da festa, representativa tanto da Igreja como da Monarquia.

Essa caracterização de dupla ordenação da festa de Corpus Christi, como referido na primeira parte deste trabalho, não se restringiria a Portugal mas a todas as regiões, a primeira vista, colonizadas pelos portugueses (MORAES FILHO, 1979 apud SANTOS, 2005, p.23).

Para TINHORÃO (2000) a procissão de Corpus Christi era um “claro ato de simbolismo teológico-político”, onde a procissão servia à afirmação do poder espiritual da Igreja, enquanto resposta ao protestantismo como “triunfo sobre a heresia30”, à autoridade das Câmaras pelo controle sobre os mestres, e os interesses do rei pela glorificação pública dos seus feitos confirmando assim, sua dimensão de ato oficial.

A Monarquia não só fazia presente na procissão como participantes e mandantes como reservavam-se “o direito de se fazerem-se representados simbolicamente pela presença de São Jorge em posição de destaque a partir de 1387, para lembrar sua ajuda na vitória às armas

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portuguesas sobre os castelhanos desde a batalha do Aljubarrota” (TINHORÃO, 2000, p. 70- 71). A presença obrigatória da imagem de São Jorge na procissão revelava a intenção política da escolha real, o regimento da Câmara da cidade obrigava a participação de todos os ofícios com suas bandeiras, logo, a procissão de Corpus Christi passaria com o tempo, segundo TINHORÃO (2012, p.13) “a configurar não apenas uma manifestação representativa da identidade nacional, mas um retrato perfeito da sociedade que devia refletir”, com isso, “a festividade de Corpus Christi dos portugueses, seria a partir de então, a procissão de São Jorge (SANTOS, 2005, p.42)

No documento elzaaparecidadeoliveira (páginas 77-80)