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3. A câmera como dispositivo [vídeo 5: Rogério canta Eu Juro]

3.2. Linhas de fratura

3.2.3. A dupla transformação [vídeo 7: Fausto canta Emoções]

Figura 7. Frame do vídeo 7 “Fausto canta Emoções”.

Outra importante imagem que revela estados de intensidade é a performance de Fausto. Mas, sua importância nessa pesquisa é dupla, pois ela aponta para outra questão que é o estado de duplo devir – da câmera e da personagem.

Sobre Fausto não sabemos muito, pois esse foi o único dia que o vimos cantar. Nesse dia gravei três performances suas. Escolhi a última apresentação pelo critério de intensidade que foi tomada por método.

A performance foi gravada em 2008, uma das últimas apresentações de videokês gravadas em Fortaleza. Se comparada com as primeiras gravações de 2006, com a de Ivan, por exemplo, é possível ver certa progressão técnica e estética: saber produzir o plano- sequência a partir de uma variação composicional constante. Uma tarefa a qual o sucesso só é possível com o empenho dos dois lados da câmera – a personagem e o cinegrafista. A

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meu ver, a evolução que esse plano traz, mostra que o problema da pesquisa havia sido colocado no plano prático. O interesse pelo corpo e seus processos de transformações afetivas já se revelam com mais clareza na imagem.

Quando trabalha-se em um plano-sequência, é necessário, para sua fluência, que o cinegrafista tenha claro o que deseja. Se ele não sabe, essas incertezas aparecerão na imagem. Saber o que quer não significa trazer verdades pressupostas, ou que o cinegrafista já tenha uma imagem idealizada que deseje produzir. Saber o que quer, é antes ter clareza do problema, ter uma familiaridade com a cena para nela buscar as regiões de intensidade. Ele precisa entender como o devir atua na imagem.

Dessa forma, o cinegrafista que filma devires também precisa de um treinamento do corpo e não só do olhar. Existe um conjunto de gestos técnicos que precisa dominar para utilizar a câmera. Além disso, precisa acionar vivências, assumir determinados comportamentos, determinados impulsos, saber recuar e aproximar, controlar a respiração quando a câmera está na mão. Como a cena acontece por uma forma relacional, com poder de afetar e ser afetado, sua postura compõe esse encontro, influencia diretamente na composição da imagem e nas relações travadas na cena.

Na filmagem de Fausto, a câmera ancora-se a seu corpo fugidio, atenta ao seu estado de metamorfose. A câmera é posta à sua frente com firmeza, enquadrando-o em plano médio. Fausto canta a música Emoções, de Roberto Carlos, iniciando sua apresentação com movimentos já carregados de expressividade, cheios de impulsos. O corpo inteiro é tomado por um estado afetivo intenso; os braços, a face, as pernas não param de se mexer, ele se movimenta por todo o bar, movimenta-se entre as mesas, abaixa-se, levanta-se. Há em Fausto um trabalho próprio de um atleta do afeto e a seu modo muito bem treinado.

Ainda no início da música fico ali com a câmera a sua frente, mas rapidamente Fausto foge da imagem, talvez por sentir-se um pouco acuado pela câmera, afinal, eu estava ali, pregado a seu corpo. Eu tinha tomado uma decisão naquele momento, de que não usaria mais movimentos de zoom e que não desviaria mais a câmera do corpo. Sempre que possível, o corpo deveria ocupar o centro da imagem, e por isso, resolvi persegui-lo.

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Quando filma-se assim tão próximo é possível perceber certas reações à câmera. Essas reações dão pistas sobre a distância, os recuos e as aproximações que se deve ter da personagem. Constroem um campo de composição afetivo que influencia diretamente a composição do plano. Por isso, quando se filma em situações como essas é preciso passar também por certa transformação, um “devir em sincronia”. Preciso, portanto, estar completamente aberto aos afetos em jogo. Isso ajuda a “calibrar” meus impulsos, pois quando acompanho um corpo em devir que se movimenta por impulsos, a câmera para acompanha-lo precisa movimentar-se quase que por impulsos também. Não obstante, é preciso prever minimamente os movimentos, as ações, as expressões, como se fosse possível compartilhar os afetos. Como se o afeto que passa pelo personagem passasse também por mim, colocando-nos em um “devir em sincronia”. Semelhante ao que ocorre no “cine-transe” de Jean Rouch quando ele põe-se a filmar os rituais africanos.

Em seus momentos mais felizes, seu método do “cine-transe” aproxima assim o cineasta dos estados de consciência das pessoas que ele mostra, seu trabalho então consistindo menos em explicar de fora o sentido do transe alheio do que partilhá-lo, traduzi-lo em si mesmo, ou seja, em seu filme, no nível do seu estilo de captação, para entrar, por analogia, em sintonia com o possuído. (ARAÚJO SILVA, 2010, p.78)

Como nos explica Mateus de Araújo Silva, o “cine-transe” de Jean Rouch consiste em uma transformação do próprio cineasta, para captar o estado de transformação da personagem; “um estranho estado de transformação da pessoa do cineasta que chamei, por analogia com os fenômenos de possessão, de cine-transe” (ROUCH apud ARAUJO SILVA, 2010, p.79). Como se o cineasta entrasse em transe por empatia, transformando-se ele também em outro, para interceder às transformações da personagem. É o que Deleuze escreve sobre o cinema indireto-livre, tornar-se outro junto com a personagem.

(...) o cineasta e suas personagens se tornam outros em conjunto e um pelo outro, coletividade que avança pouco a pouco, de lugar em lugar, de pessoa em pessoa, de intercessor em intercessor. (DELEUZE, 1985, p.186)

As experiências com os videokês mostrou-nos essas duplas transformações. Captar os devires requer também um trabalho do cinegrafista, uma disposição de se afetar que o põe em sintonia com as transformações dos personagens. O encontro entre personagem e cinegrafista ocorre em uma relação corpo a corpo. Filmar, nesse sentido, transforma-se em uma arte física, semelhante a uma dança, uma luta. Assumir esse estado

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de transformação é, também, dobrar as linhas de sedimentação da câmera, dando a ela uma função diferente da função que assume quando ela se volta as relações pressupostas entre a câmera seus personagens e técnicos. Filmar devir é assumir um constante estado de transformação.