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A EaD e as práticas emergenciais remotas

No documento LINGUAGENS E TECNOLOGIAS 8 (páginas 32-36)

A modalidade da educação a distância (EaD) tem sido historicamente indicada para alunos adultos e, mais recentemente, utiliza tecnologias digitais para criar uma experiência interativa de aprendizagem que seja, no mínimo, similar à da sala de aula presencial (com alguns li-mites, como aulas práticas em laboratórios, por exemplo). Isso busca eliminar os indesejáveis efeitos do distanciamento geográfico entre professor e alunos e pode, inclusive, gerar práticas inovadoras, parti-cularmente pelo uso mais intensivo da internet. Existem teorias espe-cíficas, como a pioneira distância transacional, e associadas, como a cognitiva da aprendizagem multimídia, que fundamentam práticas e ações em EaD. A modalidade abrange um conjunto de saberes e

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A EaD, os desafios da educação híbrida e o futuro da educação

cas que incluem o trabalho de uma equipe multidisciplinar que plane-ja e executa ações pedagógicas de um curso a distância. A realização de um curso de EaD demanda meses de planejamento e preparação de desenho didático e conteúdos, adequação de interfaces e materiais di-gitais, treinamento de tutores etc. Todo o trabalho é desenvolvido por uma equipe multidisciplinar [professores(as), pedagogos(as), designers, programadores(as)] que deve desenvolver processos de aprendizagem que contemplem os aspectos cognitivos e afetivos do ser humano a fim de que as necessidades do(a) aluno(a) sejam atendidas.

Cursos na modalidade EaD incluem aulas dialogadas ao vivo pela internet (chamada de atividades síncronas com interação em tem-po real), materiais de estudo adaptados às necessidades dos(as) alu-nos(as) (com recursos audiovisuais e inclusivos) e à área de conhe-cimento do curso, espaços de trocas, colaboração e sociabilidade em ambiente virtual apropriado, a avaliação continuada e o acompanha-mento por tutores treinados e com formação na área do curso. Ao ingressar, o(a) aluno(a) recebe orientações detalhadas sobre como estudar e se relacionar à distância, incluindo aspectos de uso das tecnologias digitais com fins de aprendizagem, práticas de estudo e de socialização no contexto da EaD, especificidades de práticas on-line, planejamento da rotina dos estudos, entre outros. Todos esses elementos da EaD levam em consideração os pressupostos pedagó-gicos de que, no nível da inteligência, do raciocínio, o(a) aluno(a) precisa compreender conceitos novos (uma lei da física, uma pro-posição filosófica, por exemplo) e aplicá-los a alguma situação que lhe faça sentido, contando para isso com o apoio do(a) professor(a) ou do(a) tutor(a). No nível emocional, o(a) aluno(a) precisa se sentir motivado(a) e acolhido(a) pelo(a) mestre(a) e pelos(as) colegas, fo-mentar vínculos sociais e buscar se relacionar e aprender mais pelo uso de tecnologias digitais desenvolvidas para esse fim e que sejam de fácil acesso e uso. O diálogo entre professor(a) e aluno(a) busca ter centralidade em uma estrutura interativa mais horizontalizada, com trocas de saberes entre todos.

No que se refere às atividades escolares emergenciais, a maioria dos elementos descritos nos parágrafos anteriores estiveram ausentes.

Talvez o aspecto mais problemático tenha sido a tentativa de trans-ferir práticas escolares, conteudistas e centradas no(a) professor(a),

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para o formato online a distância, tentando preservar as atividades da sala de aula presencial. Observou-se, dessa forma, a produção de aulas expositivas, ao vivo ou gravadas, e a prescrição de tarefas para a fixação de conhecimentos a serem aferidos. Professores(as), muitos(as) sem experiência prévia e carentes de apoio técnico e material, busca-ram ensinar conteúdos curriculares através da internet simulando o que fazem em suas salas de aula, por vezes demonstrando criativida-de para usos não prescritos das tecnologias digitais, a fim criativida-de ensinar conceitos complexos aos(às) alunos(as). Se as práticas conteudistas (unidirecionais, massivas e maçantes) já enfrentam limites na escola tradicional, sendo fruto de desinteresse e limitada participação dos(as) alunos(as), na internet se mostraram ainda mais problemáticas, pois contrastam com a natureza interativa, dinâmica e fluida das tecno-logias de comunicação em rede. Ou seja, a sala de aula tradicional, focada no ensino de conteúdos e pouco interativa, se deslocou para as redes e gerou desinteresse dos(as) alunos(as) uma vez passada a fase inicial da curiosidade diante da novidade. Não se trata de desmerecer a necessidade de “agir na urgência” convocada pelo educador Antonio Nóvoa (2020), mas de perceber que, se os novos usos das tecnologias permitiram uma abertura para experimentar novas facetas da docên-cia atual, também delinearam limites.

Para todos nós, mas particularmente para os(as) jovens alunos(as), as práticas sociais e culturais que caracterizam os usos cotidianos das tec-nologias digitais em rede raramente incluem a aprendizagem formal.

Vivenciamos muitas práticas de entretenimento e de sociabilidade (ga-mes, redes sociais, acesso a vídeos e músicas etc.) que demandam ações cognitivas e interativas distintas do estudo formal de conteúdos curri-culares e da realização de atividades de aprendizagem escolar. Portanto, a transição dos usos informais para os formais demandou novas apren-dizagens sobre novas e velhas tecnologias digitais. Participar de um chat com amigos(as) enquanto jogamos online é muito diferente de fazê-lo integrado a uma aula ao vivo, para esclarecer dúvidas e compreender conceitos novos. E, claro, é diferente de fazer isso na sala de aula presen-cial tendo o(a) professor(a) ao lado. Essa ressignificação de práticas se tornou mais desafiadora no contexto da pandemia, que alterou a rotina das famílias e dos locais de moradia e gerou uma atmosfera de dificul-dades emocionais e, em muitos casos, de incertezas financeiras.

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As fragilidades que permeiam as vidas de milhões de famílias brasilei-ras se acentuaram com a pandemia e evidenciaram como as desigual-dades sociais que perduram no país repercutem também no precário acesso às tecnologias digitais. A pesquisa TIC Domicílios 2018, condu-zida pelo Comitê Gestor da Internet, indicou que, apesar de 93% dos domicílios contarem com um telefone celular, apenas 19% possuíam computador de mesa e somente 27% dos domicílios possuíam compu-tador portátil, sendo, na maioria dos casos, apenas um equipamento por domicílio. O estudo revelou também que apenas 39% dos domicí-lios possuíam computador e conexão à internet, sendo que quase um terço dessas famílias utilizavam a internet através da conexão instá-vel de chips do tipo 3G ou 4G. Depoimentos de alunos(as) e de pais apareceram em websites noticiosos e nas redes sociais relatando as fragilidades vivenciadas, como a necessidade de uso compartilhado do computador doméstico pelos familiares e o acesso à internet reduzido ao uso do telefone celular através de planos de dados limitados. Nas comunidades periféricas, em particular, à escassez tecnológica se so-mou a precariedade dos espaços de moradia, com a ausência de locais minimamente adequados às atividades de estudo e o aguçamento do desconforto do confinamento. Verificou-se, dessa forma, os deletérios efeitos das práticas educacionais domiciliares via internet diante das dificuldades de acesso das camadas menos favorecidas da população, indicando-se assim a ampliação de ações discriminatórias e de apro-fundamento das desigualdades ao não se garantir a participação dos mais pobres nas atividades escolares via internet com segurança e qualidade. Práticas que infringem direitos básicos de isonomia, equi-dade e justiça social e colocam em xeque o sentido e a eficácia das atividades remotas emergenciais, sob o risco de acentuarem desigual-dades de aprendizagem e de sucesso acadêmico e profissional entre camadas mais e menos privilegiadas da sociedade brasileira.

O uso das tecnologias digitais e a conexão à internet, quando bem--sucedidos, suscitaram outros dilemas não menos complexos. Profes-sores, estudantes e seus familiares passaram a se submeter de forma mais intensa às práticas de vigilância eletrônica e de privacidade e segurança limitadas nas redes ao realizarem atividades de aprendiza-gem escolar em plataformas comerciais, utilizando software proprie-tário. Ampliando processos anteriores à pandemia, empresas privadas

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das áreas tecnológicas e educacionais reforçaram significativamente seu poder de oferecer serviços de infraestrutura digital e de centrali-zar ações de ensino e aprendizagem através de programas mais abran-gentes como o Google Educação (com ferramentas e conteúdos digi-tais, equipamentos etc.) e de tecnologias inovadoras, como o serviço de comunicação por vídeos da empresa Zoom.

De modo geral, a forte e crescente presença da iniciativa privada sus-cita questionamentos diversos sobre o futuro da educação pública e suas finalidades, bem como da prática profissional docente. Mais es-pecificamente, utilizar esses serviços tecnológicos comerciais priva-dos significa aderir a termos e condições preestabelecipriva-dos de uso, sem muita clareza sobre a preservação de direitos civis básicos dos usuá-rios, particularmente no que se refere às crianças. A disponibilização gratuita dessa gama de serviços aos usuários se baseia em modelos de negócio para gerar lucros. Estão em operação procedimentos al-gorítmicos pouco transparentes que incluem a vigilância através da captura de dados privados de navegação e monitoramento de ações dos usuários e a falta de segurança dos ambientes, com a ocorrência, por exemplo, do vazamento de conteúdos privados por falhas técni-cas de software, técni-caso do serviço de comunicação por vídeos Zoom, ou de apresentação indesejada de informações através de campanhas publicitárias nos websites e aplicativos utilizados. Ampliou-se, assim, o chamado capitalismo de plataforma ou capitalismo de vigilância, fe-nômenos caracterizados pela disponibilização de novos serviços que se configuram com negócios lucrativos e que tensionam importantes valores da sociedade, da educação pública e dos direitos de cidadãos, em particular professores e estudantes.

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