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A EAD e a encenação de Dorotéia, de Nelson Rodrigues.

DIRETORA DE TEATRO

2.2 A EAD e a encenação de Dorotéia, de Nelson Rodrigues.

Heleny Guariba, como quase toda a geração universitária da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP no início dos anos 1960, havia acompanhado intensamente o movimento de renovação teatral dos grupos Arena, Oficina, Opinião etc. e trazia da França, na volta, a forte impressão de que, para ver bons espetáculos, sob o ponto de vista da descentralização, era necessário ir aos subúrbios e estava disposta a tentar uma experiência na

Grande São Paulo. Seu primeiro trabalho depois do retorno foi dirigir Dorotéia, de Nelson Rodrigues, com os alunos da EAD.

Em 1967, o Dr. Alfredo Mesquita, diretor da Escola de Arte Dramática de São Paulo, convidou Heleny para dirigir um espetáculo com a turma do segundo ano da escola. Era uma classe peculiar composta de sete mulheres e dois homens, todos mais ou menos na faixa dos vinte anos de idade.

O texto em três atos, foi escrito em 1947 e finalizado em 1950, ano em que estreou sob de direção de Ziembinski que, segundo Sábato Magaldi, deu à montagem uma empostação trágica “- solene, grandiosa e hierática-, o que ajudou a robustecer o equívoco a respeito da peça”53.

Porém, antes de Dorotéia, o autor enveredava por peças que levavam às últimas conseqüências “desagradar” ao público e, fugindo do realismo, Dorotéia acentua características surrealistas e se aproxima do teatro de vanguarda, antecipando experiências de Ionesco, a exemplo de outros nomes que, na década de cinqüenta, emergiam com o teatro de absurdo. Foi pelo prisma do simbolismo que Heleny enveredou. Sábato Magaldi escreveu:

Qual não foi minha surpresa ao ver, com o elenco da Escola de Arte Dramática de São Paulo, em 1968, a encenação de Heleny Guariba... O estilo farsesco, ao invés de diminuir o alcance da obra, ressaltou-lhe os valores profundos. Ganhara relevo o jogo entre a verdade interior dos indivíduos e a máscara social, nesse admirável retrato de uma sociedade construída a partir da noção de pecado. O insólito, o grotesco, a irrisão, as liberdades cênicas (as botinas simbolizando o homem) incluíam a montagem no domínio da vanguarda, de que era sem dúvida uma das primeiras manifestações54

53 MAGALDI, Sábato. Teatro completo de Nelson Rodrigues, 2 , Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, pp. 30. 54 MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo, Perspectiva,1992,p.101.

A morte como tema a ser perseguido pelo autor, bem como o sexo como idéia de pecado, a beleza ligada à maldição, a doença como purificadora da alma, a feiúra como espantalho do demônio, a condenação do filho rebelde a retornar ao útero materno e o artifício como antônimo da vida são, ao ver de Sábato, os itens que o levaram a catalogar Dorotéia como peça mítica.

A ação se passa numa casa que só possui salas e nenhum quarto, pois um quarto daria asas às imaginações e proporcionaria privacidade, das quais emergiria o pecado. Ali vivem as primas D. Flávia, Carmelita e Maura, personagens que Sábato denomina como “comuns e sem oscilações psicológicas” e o autor anuncia em suas rubricas “num vestido longo e castíssimo, que esconde qualquer curva feminina”. Elas também se privam do sonho, do desejo, da imaginação.

As atrizes Isa Kopelman, Maura Arantes, Marie Claire Brant e Toni Penteado em Dorotéia pelo elenco da EAD, em 1968, no Auditório Itália. Foto Derly Marques. Arquivo Múltimeios do Centro Cultural São Paulo.

Reclusas, são surpreendidas pela chegada de Dorotéia, vestida de vermelho como as profissionais do “amor” do início do século XX. O confronto entre Dorotéia e as tias vai provocar que outra Dorotéia, que havia morrido e se perdera após fugir com um paraguaio, apareça como agente causador e passe a deflagrar conflitos.

Todas as mulheres da família tiveram indisposição na noite de núpcias, desde que a bisavó traiu o amado ao casar-se com um outro pretendente e, assim, transformando a “náusea” em sina familiar.

Todo o ambiente é fúnebre, as vestimentas e aspectos gerais destoam de Dorotéia, “a única que foi diferente das demais” e que precisa se reconciliar com a morte, ou seja, aceitar a sina familiar. Essa visão é figurada na personagem de Das Dores, filha de D. Flávia, que se casa no dia seguinte, mas que jamais viu ou verá o noivo, simbolizado por um par de botinas.

Dorotéia, que é “linda”, com “curvas acentuadas” e “hálito bom” precisa se reconciliar com as demais, “feias”, “pustulentas”, “sem curvas, sem prazer”. Esse conflito essencial vai se diluindo aos poucos e Dorotéia, a cada diálogo vai retornando ao seio familiar, como Das Dores volta ao útero materno, como única opção por não realizar o seu desejo de contrariar, na noite de núpcias, a “indisposição”.

Célia Olga, Toni Penteado e Isa Kopelman em Dorotéia pelo elenco da EAD, em 1968, no Auditório Itália. Foto Derly Marques. Arquivo Múltimeios do Centro Cultural São Paulo.

A peça, carregada de simbologia, traz no último ato a presença de um jarro que intensifica o suspense, como representação de rebeldia e contestação da filha, que teve o desejo despertado pelo par de botinas, mas que a ameaça como um fantasma ( -“Se ao menos, elas não estivessem desabotoadas”, confessa D. Flávia). Nesse clima, o jarro volta a iluminar-se, tal como o narcisismo de Dorotéia ao concluir: - “Sou tão linda, que sozinha num quarto, seria amante de mim mesma”; porém, essa conclusão narcisista é dita quando as chagas já começam a lhes aparecer; como uma máscara, as pústulas vêm purificar os pecados, os desejos carnais; enfim, D. Flávia profetiza: “vamos apodrecer juntas”.

O convite da EAD a Heleny fora sugestão de Augusto Boal, diretor do Teatro de Arena de São Paulo, professor da escola que, na época, coordenava o seminário extracurricular sobre Bertolt Brecht para a turma do segundo ano. Heleny teve o apoio incondicional de Flávio Império, professor de Cenografia da Escola, e da atriz e ex-aluna Myrian Muniz. A atriz Lilita Oliveira testemunha:

Houve reações! Primeiro, porque éramos muito jovens e iríamos fazer a maioria de nós, papéis de velhas. Segundo, porque até então, entendíamos que quanto mais 'falas' tivessem mais importantes eram as personagens. Como poderia eu, por exemplo, fazer exame público de fim de ano, com uma personagem que durante quase toda a peça, tinha poucas "falas" e um monólogo curto no final do segundo ato, onde morreria?

Fizemos muitos protestos. Demos muito trabalho.

Lembro-me do seu rostinho moreno a nos olhar, incrédula: como jovens estudantes de teatro podiam ainda pensar daquela maneira? Ela não disse nada. Sua capacidade de compreensão era enorme. Aos vinte e seis anos e aparentando menos idade, frágil, baixinha, muito meiga, com uma voz suave, olhos vivazes e inteligentes, ela chegou para mudar a nossa concepção de teatro e de mundo, o nosso "bom gosto burguês". Sua ação foi transformadora. Para mim, o teatro é antes e depois de Heleny.

Na apresentação de Heleny por Dr. Alfredo, no primeiro dia de ensaio, outra surpresa: era o seu primeiro trabalho de direção. Antes do ensaio de mesa, fizemos uma pesquisa detalhada sobre as personagens: época, classe social etc. dentro da perspectiva

histórica de exceção em que vivíamos. Paralelamente, assessorava teoricamente o trabalho Sábato Magaldi, professor de História do Teatro da EAD, amigo pessoal e grande conhecedor da obra de Nelson Rodrigues. 55

Segundo Maria Thereza Vargas, a EAD atravessava a mais grave crise financeira em seus vinte anos de existência. Dr. Alfredo Mesquita também contava com a incorporação da escola à Universidade de São Paulo que, até aquele momento, não se havia efetivado; um ano depois ela seria tomada pelos próprios estudantes.

Com pouco tempo de ensaio para a montagem de Dorotéia, o critério da escolha das atrizes para os papéis foi meramente intuitivo e, segundo Maria Thereza, Heleny não havia assistido a nenhum dos espetáculos anteriores das jovens estudantes da EAD. Toni Penteado, ficou com o papel de Dorotéia, Célia Olga Benvenutti, outra bela jovem, fez Das Dores, a filha de Dona Flávia, "nascida de cinco meses e morta." Marie Claire Brant, foi Dona Flávia, Maura Arantes ficou com o papel de Dona Maura, Lilita de Oliveira Lima, com o de Dona Carmelita, e Isa Kopelman, com o de Dona Assunta da Abadia, mãe do "noivo" (um par de botinas). As atrizes Toni Penteado (Dorotéia) e Maura Arantes (Dona Maura) faleceram muito jovens, ainda na década de 1970.

Heleny fez um trabalho minucioso com o texto e estudou fala por fala com as atrizes, exaustivamente. Não era só o texto que importava, mas seu contexto, suas intenções, contradições, pausas e reflexões. Cada palavra teve o seu significado dissecado e a sua emoção totalmente conhecida. Lilita recorda:

Minha personagem, por exemplo, dirigindo-se à Dorotéia, dizia – ‘Linda!’ com a intenção de dizer ‘Puta!’ e a platéia do Teatro Itália vinha abaixo. Neste contexto, dito por uma velha moralista, ficava muito engraçado. Fomos para o ensaio de palco com o texto praticamente decorado. Heleny, citando Planchon, nos disse:

- “O espetáculo é uma escrita cênica. O público tem que ler o

espetáculo”. Esta colocação determinou toda a encenação. Ela sabia exatamente o que queria: era precisa, segura. Trabalhou muito a nossa interiorização, a nossa motivação – essa força consciente que promove a ação, que gera uma situação e vai encontrar um obstáculo, gerando outra situação. Contando com a nossa intuição, o nosso talento, a nossa criatividade, o espetáculo foi detalhadamente marcado: cada gesto, cada movimento, cada pausa de intenção, as contradições, tudo exaustivamente discutido e conhecido. Os signos do espetáculo totalmente colocados, lidos. Da ação, nascia a nossa reflexão. Havia longas pausas, longos silêncios cheios de intenções e uma movimentação cênica de grande plasticidade. Essas "quebras" provocavam uma mudança de foco, propositadamente, dirigindo o olhar da platéia para um determinado ponto da ação, criando um novo clima. Não havia no espetáculo nenhuma intenção educadora ou moralista. Lembro-me que durante os ensaios nos divertíamos muito e fazíamos os papéis com grande irreverência, fazendo jus à classificação que Nelson Rodrigues dera à peça: Dorotéia, uma farsa irresponsável. Heleny, por ser também uma cientista social, trabalhava muito o “gestus” social, possibilitando à platéia, através de uma leitura clara do espetáculo, tirar conclusões sobre a vida e a situação social daquelas mulheres: três velhas encarceradas naquele mundo rígido, preconceituoso, fechado; Das Dores, a filha de Dona Flávia, “nascida de cinco meses e morta” e Dorotéia, a parenta “bela” que volta e, por isso mesmo, vista como “puta”. O entrechoque dessas vontades, mais a entrada do “noivo” – um par de botinas – num mundo sem a existência de homens, vão gerar o conflito da peça56.

O cenário de Dorotéia, a cargo de Derly Marques, aluno de cenografia da EAD, era anti-ilusionista; não apoiava a ação, apenas a comentava. Era reduzido ao indispensável. As próprias atrizes faziam as mudanças cênicas, conforme o estado de tensão criado por um diálogo ou por uma situação. A ação mudava: o espaço podia transformar-se em uma sala de visitas para a entrada de Dona Assunta da Abadia e do "noivo" de Das Dores, ou transformava-se numa sala de tortura para a cena do arrependimento de Dorotéia.

O figurino de Dona Elina tinha o mesmo efeito do cenário. Para "modelar" as roupas de velhas em jovens de 20 anos, propositadamente foram colocados enchimentos: bundas e peitos postiços etc. criando um efeito de distanciamento. Para enfatizar a condição social daquelas mulheres, Heleny determinou que os figurinos, apesar de sóbrios, tivessem golas rendadas, babados etc. A caracterização de Dorotéia era o "óbvio ululante" de Nelson Rodrigues: uma puta com uma bolsinha. A vestimenta de Das Dores era exatamente a que se coloca em uma criança morta (inclusive a personagem descansava em um caixão branco de defunto).

Foi Myrian Muniz quem maquiou as atrizes nas duas únicas apresentações. Por serem muito jovens, a maquiagem foi propositadamente acentuada como disfarces destinados a dar relevo e unidade farsescos.

A “leitura” de Heleny para o texto colocou o público como observador crítico. A encenação, na época, causou um forte impacto, um escândalo, dividindo a platéia lotada do Teatro Itália. Foi considerada uma decisiva direção de Heleny. Sábato Magaldi escreveu que “a encenação sob uma perspectiva histórica – naquele momento de ditadura militar – atingiu plenamente seus objetivos: mostrou a alienação, a falta de compreensão humana de forças contrárias que se levantam para lutar, que não sabem a saída e vêem sua existência abandonada à destruição”57.

Passados tantos anos da montagem de Dorotéia, Lilita de Oliveira, relembra:

... às vezes vou à Pinacoteca do Estado, onde funcionava a EAD (do lado da AV. Tiradentes) e caminho pelo Museu e recordo-me daqueles tempos – que apesar de sombrios – foram muito criativos. Relembro nitidamente de Heleny, sorridente, com seus pequenos passos apressados e uma inteligência arrasadora! Em meu coração há um grande vazio. Ainda estou de luto. Sua perda é irreparável! A última vez que a vi, em frente ao Teatro de Arena, corri para abraçá-la e ela afastando-me aflita, disse: “Não fale

comigo”. Hoje sei que ela queria me proteger, pois estava sendo ‘vigiada’ pelos órgãos de repressão. Pouco tempo depois, ela desapareceu para sempre, assassinada brutalmente nos porões da Ditadura Militar.

Reverencio sua memória e tenho vontade de dizer como o poeta Gonçalves Dias: ‘Meninos, eu vi!58

2.3 O GTC e Jorge Dandin, de Molière

58 Idem.

Jorge Dandin de 1968. Ademir Rosa, Henrique Lisboa, Sylvia Borges e Manuel Andrade. Foto: Derly Marques. Arquivo