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A elaboração de uma gestualidade para trabalhar com arquivamentos

4. ARTICULAÇÕES ENTRE OS CAMPOS DE SABER DA ARTE E DA EDUCAÇÃO NA

4.1. PESQUISAR NA COMPANHIA DE MICHEL FOUCAULT: GESTUALIDADES,

4.1.1. A elaboração de uma gestualidade para trabalhar com arquivamentos

Ao buscar entender como são feitas algumas negociações entre as práticas artísticas e as práticas de formação docente, em alguma medida, estava em jogo a busca por um tipo de “plataforma de pensamento” (LOPONTE, 2016), que me desse condições de retomar o meu trabalho com a formação de professores. Desse modo, escolhi, como ponto inicial, a pesquisa de doutoramento feita por Silva (2010). Uma ampla investigação em documentos produzidos44 entre os anos de 1989 e 2007 com o objetivo de

compreender como a formação de professores para o ensino de arte vinha sendo problematizada pela literatura especializada na área da educação e da arte no Brasil. Partindo do reconhecimento do trabalho desenvolvido pelo autor como uma referência teórica de localização da produção do conhecimento sobre a formação de professores para o ensino de arte, delimitei o período entre 2008 e 2015 como o recorte temporal para a realização da presente investigação: do ano seguinte ao término da pesquisa realizada pelo autor até o ano de início da pesquisa que desenvolvi.

Ao interromper o curso ordinário das coisas, é possível provocar pequenos giros, desvios que se apresentam como possibilidade de invenção de modos outros de pensar. Ao trabalhar com as palavras, cujos pronunciamentos foram autorizados, ficamos no limite de um certo sistema de legitimação estabelecido pelos comitês científicos de cada um dos eventos45. Os documentos que constituem a base investigativa da pesquisa

apresentam, de alguma maneira, uma certa fala legitimada como verdadeira nos lugares em que foram proferidas. Ao interrogar esses materiais, estão sendo tensionadas certas lutas pela verdade do conhecimento em/sobre arte na educação e na formação de docentes a partir de uma perspectiva que se desloca entre as noções de saber, poder e sujeito desde a perspectiva teórico-analítica de Michel Foucault. Os embates que emergem dos materiais são gerados pelo conjunto de vozes que formam um lugar de

44 O autor utilizou duas fontes, pesquisas em nível de pós-graduação (Dissertações e Teses) e artigos

publicados em eventos da área de educação e arte. De acordo com o autor, tem-se que, em sua maioria, as publicações relacionadas à formação inicial de professores tematizam os Estágios, as metodologias e as reformas curriculares dentro de cursos específicos de formação inicial de professores de arte. Ao final do estudo realizado por Silva, encontra-se um conjunto de apêndices com as referências das pesquisas analisadas por ele.

45Quero afirmar que, com isso, não entendo um comitê científico como uma instituição ou uma polícia da

verdade, mas como uma forma inventada para manter um certo “princípio de partilha do sensível que, entre outros recortes, delimita a elite; aqueles que falam e são ouvidos sem necessidade de legitimar o que dizem, ou seja, a legitimação é a própria forma com que ocupam o espaço” (MIGLIORIN, 2008,p.6).

“heterogeneidades discursivas” (FOUCAULT 2010a/2010b), que se confrontam o tempo todo na tentativa de demarcação do que é certo e errado, de quem pode e não pode falar em relação às formas (im)possíveis de ser docente de artes visuais.

A complexidade dos materiais escolhidos para a composição do eixo analítico não permitiu que aspectos como “rigor” e “qualidade cientifica” ganhassem destaque na análise, pois, em certa medida, há em cada um desses eventos um certo tipo de estatuto do conhecimento e formas de afirmar o que é a “verdade”. Assim, consideramos como procedimentos para a delimitação dos discursos outros aspectos a partir dos limites em que as palavras foram utilizadas na escrita, os lugares de onde emergem (instituição) e a partir de que práticas foram constituídas. A emergência dos ditos foi sendo sinalizada nas operações analíticas realizadas sobre os próprios materiais.

Para explorar a espessura da linguagem e as possíveis marcas deixadas pelas negociações realizadas com arte na formação de docentes foram delimitadas duas etapas que favoreceram a imersão no estudo das camadas que constituem esse objeto. Na primeira etapa, a busca foi pelos elementos que estavam visíveis em uma superfície imediata: os títulos, os resumos e as palavras-chave46. No segundo, foi a delimitação dos

fios condutores utilizados para traçar o eixo analítico da pesquisa: os modos pelos quais a formação estética de docentes foi descrita nos textos; as noções de arte, docência e formação que estavam colocadas em funcionamento nesses materiais e as práticas citadas nos textos47.

No primeiro momento (até a etapa de apresentação do projeto de tese), interessavam-me as contaminações entre a arte e a formação a partir das descrições feitas pelas autoras e autores nos textos a partir de uma possível formação estética. O meu, sob certo aspecto, caçava vestígios e pistas em torno das práticas artísticas e de suas potencialidades para a formação docente. Desse primeiro momento, emergiu um conjunto de tendências que se movimentava e entrecruzava constantemente entre um e outro

46Para essa primeira etapa, foram utilizados os seguintes descritores: formação estética; formação inicial de

docentes e formação de docentes de artes visuais. Nessa fase, foram selecionados 136 trabalhos. A segunda etapa consistia na leitura dos resumos e a supressão de trabalhos que não convergissem com o tema da formação inicial de docentes. Ao final, foram selecionados 70 textos e destes 39 compõe o eixo analítico da tese. Após a sessão de defesa do projeto, em junho de 2017, foi realizada uma sofisticação do material e o processo encontra-se descrito na página 73.

47As informações que foram sendo encontradas nessa etapa foram sendo organizadas em inventários (um para cada evento), constituído por um conjunto de listas com as seguintes informações: palavras chaves; nome de autores, universidades de vinculação de autoras/es, referenciais teóricos, referenciais artísticos e ao final um resumo expandido de cada texto que foi analisado.

texto. A primeira tendência é uma abordagem da estética como intervenção política coletiva: seriam as operações que favorecem um certo tipo de alargamento da noção de arte a partir da dissolução entre os campos de saber e os seus efeitos na formação docente. A tarefa de educar seria um tipo de processo de subjetivação, alimentado por um gesto de pensamento que se abre para um campo de possibilidades, pois, ao invés de assumir um modelo, o que há é a possibilidade de elaboração contínua de si mesmo, gerada por uma inquietude advinda de uma certa dimensão estética das práticas pedagógicas. A segunda é uma abordagem da arte como reflexão: a emergência dessa tendência deu-se em torno do conceito de reflexão, um nível que se buscaria atingir com a realização de um certo tipo de ressignificação da experiência com arte por meio da escrita. O contato com certas práticas artísticas desde as atividades artísticas com pintura, desenho e escultura até as práticas culturais (no sentido do acesso e da fruição) seria capaz de permitir aos docentes em formação uma certa forma verdadeira de compreensão do real, um tipo de experiência estética entendida como imprescindível para a formação docente e para o ensino da arte, pois, delas, decorre o entendimento sobre “o que é arte”. A terceira forma expressiva: é delimitada pela necessidade de uma certa vivência estética a partir de um tipo de experiência com a arte que envolve uma dimensão do fazer artístico. O sujeito em relação com os signos artísticos seria capaz de gerar possibilidades de construção de saberes e aprendizagens. O envolvimento com o corpo, a manipulação de procedimentos e materiais poderia oferecer condições para um estado muito sensível, cujas marcas seriam inscritas na condução do processo de constituição de uma forma docente. Já a quarta, a experiência artística formal: aparece na descrição de práticas implicadas com a produção de algum tipo de visualidade ou a partir do acesso às práticas de leitura de imagem e às histórias e às teorias da arte. A experiência de acesso formal à “obra de arte” seria capaz de permitir que o indivíduo pudesse reinventar a si e ao mundo, visto que o seu modo de olhar e a sua forma de pensar seriam capazes de gerar um certo tipo de desenvolvimento da “consciência”. Em tal relação, o indivíduo em formação desenvolveria um tipo de “capacidade” para o “rigor” e o “julgamento” no e do seu trabalho.

As tendências colocadas em “visibilidade” (DELEUZE, 2005), não buscam revelar um discurso misterioso, mas apontam para a complexidade das articulações feitas entre os saberes da arte e da educação no âmbito da formação docente. É um convite a observar as condições de enunciabilidade e dizibilidade de determinados ditos e a potencialidade deles na produção de determinadas formas de docência. A multiplicidade dos ditos não

nos permite unificar tudo o que foi encontrado em uma categoria, antes disso, eles são um tipo de conjunto transformável de “regras” e “formações” (FOUCAULT, 2010b) que indicam a existência de “um sistema de dispersão regulado” (FOUCAULT, 2008, p.153), em cujo entorno há uma raridade de fatos e enunciados e também uma série de vazios. Para chegar até as camadas ainda mais finas dessas “formações discursivas” (FOUCAULT, 2010b), a aposta foi sulcar pontos específicos de tal maneira que fosse permitido abri-las em suas próprias “condições de emergência” (FOUCAULT,2010a), para compreendê-las no próprio jogo de suas transformações, posto que “não se trata de revelar o discurso, mas, de observar o ato de como é dito” (VEYNE,2008, p.252).

Em um segundo momento (após a apresentação do projeto de tese), foi preciso fazer uma retomada dos materiais e colocá-los em suspenso, principalmente em relações às afirmações feitas inicialmente. Um exercício de refazer o exame das microrrelações existentes entre as palavras-chave, os nomes de autores e artistas citados, os dizeres e as descrições das práticas até chegar em um tipo de poeira acumulada no entorno dos fluxos das palavras que elas produzem, para, então, repensar as conexões ali estabelecidas entre os campos de saber e encontrar as pistas para compor a descrição desse gesto investigativo. Ao refazer os caminhos que permitiram elaborar determinadas afirmações foi possível encontrar os vestígios sobre a maneira como a circulação de determinadas ideias configuram formas de docência que estão sempre por fazer-se, formas sempre precárias e passíveis de mudanças48.

Ao contrário do gesto inicial da pesquisa, que obedecia a um certo grau de racionalização, no segundo momento, a minha aposta foi retirar as palavras do sistema funcional em que estão acomodadas, identificadas e que geram significados, em um tipo de ação “recombinante e articulatória” (SILVEIRA & GUIMARÃES, 2019, p.131) para além ou aquém do que os manuais impõem. Algumas pistas foram sendo encontradas nas justaposições que foram feitas para acomodar as palavras que se colocavam em luta nos textos que foram encontrados nos Anais desses quatro eventos. Cada um desses textos foi sendo cortado em camadas muito finas, a fim de mostrar onde podem surgir as diferenças, para, em seguida, serem designadas e analisadas. Não se pretende com isso a neutralização das especificidades dos objetos para transformá-los em outra coisa, trata- se de “encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele” (FOUCAULT, 2010b,

48 Utilizo a expressão precária na mesma dimensão ética e política daquela utilizada na página 52. Ver também

p.53), para mantê-lo em sua consistência, para fazer surgir na complexidade que é própria. São “pistas de pesquisa, ideias, esquemas, pontilhados, instrumentos” (FOUCAULT,2010c, p.3), que, em seu limite, apontam para possíveis regimes de circulação das ideias entre arte e educação.