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A entrada de mão-de-obra haitiana no Brasil

Vimos no III Capítulo que o Estatuto do Estrangeiro não privilegia a entrada de trabalhadores não qualificados; porém, levando em conta as demandas de alguns sectores (as confeções foram um dos exemplos de que falámos), muitos trabalhadores indocumentados foram preenchendo essas

148 “[…] o estrangeiro é sempre potencialmente hostil.” – tradução nossa.

149 “No primeiro caso, o Outro vem de fora e o tratamento do corpo dele/dela depended a hospitalidade do país

de acolhimento. No segundo caso, o Outro já se encontra dentro e o tratamento do seu corpo dele/dela desafia a ordem social.” – tradução nossa.

150 Dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes à Pesquisa

necessidades e tiveram os seus estatutos regularizados por amnistias. A existência de uma massa de trabalhadores imigrantes não-qualificados é, aliás há muito tempo, necessária ao desenvolvimento de países ricos: “Their bodies were instruments in the service of the host country and their labour conferred upon them a legitimacy that the law often only confirmed a posteriori […]151” (Fassin, 2001 p. 5).

Os dados apresentados por Silva, sobre Manaus e Tabatinga, confirmam o perfil dos haitianos enquanto migrantes laborais: jovens na sua maioria do sexo masculino, com idades entre 25 e 35 anos (dados do relatório OIM relativos ao ano de 2012 disponíveis na figura 4.4. do Anexo A), a média era de 28 anos, um a menos que a média encontrada por Portes e Stepick na Flórida em 1986. No primeiro ano chegavam poucas mulheres152 e crianças153, mas esses contingentes têm aumentado (Silva, 2012a p. 309).

Em termos das suas qualificações (vide quadro 4.5. do Anexo A), diversas fontes mencionam a desadequação do emprego (vide figura 4.6. do Anexo A, Profissão declarada pelos demandantes de refúgio) encontrado às habilitações que os haitianos têm, como no caso do estudo OIM em que, dos entrevistados, “[…] 66,8% indicaram que a atividade exercida não era compatível com as suas habilitações.” (Fernandes, 2014 p. 64) ou, de acordo com um exemplo em Manaus, o “[…] caso de um advogado que se empregou na construção civil” (Silva, 2012a p. 312). No entanto, na visão de Fernandes,

[…] a migração dos haitianos para o Brasil seguiu o padrão em que aqueles com maior qualificação predominavam no primeiro grupo que chegou em 2010 e 2011. Nos anos seguintes, houve o crescimento da participação daqueles que, apesar de um menor nível de instrução, estavam, antes de emigrar, em ocupações técnicas, em sua maioria na área da construção civil. No entanto, em momento recente, observou-se a ampliação do número de pessoas com mais baixo nível de instrução dentre aqueles que chegam ao país. […] foi possível, durante o trabalho de campo, identificar entrevistados que tinham muita dificuldade de ler e mesmo de se expressar no seu idioma materno." (Fernandes, 2014 p. 125).

A falta do domínio do português – embora a maior parte das instituições de apoio (religiosas ou não) se dediquem ao ensino da língua –, pelo menos nos primeiros meses, é uma grande desvantagem, embora frequentemente seja mencionado o facto de que a maioria dos migrantes fala pelo menos dois idiomas (créole e francês), quando não falam também espanhol ou inglês. Apesar disso, a entrada no mercado de trabalho dá-se pouco tempo depois de chegarem ao Brasil (Fernandes, 2014 p. 62).

151 “Os seus corpos eram instrumentos ao serviço do país de acolhimento e o seu trabalho conferia-lhes a

legitimidade que a lei apenas a posteriori reconhecia […]” – tradução nossa.

152 Recorremos aos dados do relatório OIM: “Como demonstrado nas análises das bases de dados

administrativos, a participação das mulheres no conjunto dos imigrantes haitianos que vêm para o Brasil não ultrapassa 20,0% do total” (Fernandes, 2014 p. 45).

153 Verifica-se, mais recentemente, a entrada de crianças e jovens: “Quanto aos vistos de reunificação familiar,

aproximadamente 50,0% das pessoas que obtiveram esse tipo de visto tinham menos de 18 anos” (Fernandes, 2014 pp. 34, 35).

Em relação à cidade de Manaus, em 2012, Silva referia-se à incorporação dos haitianos em trabalhos de baixa qualificação154 –“[…] serviços gerais, ajudante de pedreiro, vigias, auxiliar de cozinha, atendentes no comércio […]”–, consequentemente, com baixa remuneração, até aos dois salários mínimos (Silva, 2012a p. 312). Por outro lado, o mesmo autor referia-se aos empresários de outros estados que iam a Manaus buscá-los (vide figuras 4.7., 4.8., 4.9. do Anexo A, relativas à dispersão dos haitianos a partir das cidades de entrada), descontando as passagens de volta para os seus estados nos salários mensais dos trabalhadores (Silva, 2012a p. 311), algo que tem sido bastante divulgado. Para além disso, são conhecidas também iniciativas tomadas por algumas entidades (Secretaria de Justiça ou mesmo governos estaduais) de promoção de alguma regularização nessa atividade, protegendo os trabalhadores de eventuais abusos por parte das indústrias que se deslocam aos estados de entrada para os contratar: “A procura foi tão grande que a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) do Acre criou um cadastro de empresas à espera dos imigrantes. […] A Sejudh exige que haja uma apresentação das condições do trabalho oferecido e há uma avaliação sobre a compatibilidade do perfil dos trabalhadores com as vagas”155.

Em relação aos motivos para a migração, os dados recolhidos pelo estudo OIM, que realizou entrevistas e dinâmicas de grupo com os haitianos, revelam que

[…] ficou claro que não havia uma razão única, mas sim um conjunto de motivos que nos remete sempre à extrema vulnerabilidade desse grupo de imigrantes. […] Fica evidente que a maior parte deles (61,5%) fez o trajeto em busca de trabalho. A melhoria na qualidade de vida fica em segundo lugar (14,7%) dentre as razões alegadas e a ajuda à família como o objetivo da migração fica em terceiro lugar (6,5%). É importante indicar que, dentre as razões alegadas para a migração, diversos entrevistados colocaram em segundo lugar a possibilidade de seguir os estudos no Brasil, desejo esse frustrado logo ao chegar ao país, pois as exigências para a equivalência de diplomas e certificados são maiores do que as possibilidades financeiras e de obtenção da documentação pelos haitianos (Fernandes, 2014 p. 59).

Um dado interessante, relativo ao emprego das mulheres haitianas, chama a atenção para uma particularidade deste fluxo que merecerá atenção aprofundada no contexto da realização, no futuro, de um trabalho de campo com estes imigrantes: diz-nos Silva que, “[…] no caso das mulheres que se inserem no serviço doméstico, elas se recusam a dormir no trabalho156, pois sabem que suas patroas não respeitarão a jornada de oito horas” (Silva, 2012a p. 312). Atendendo a que, no contexto

154 Dados mais atuais confirmam esta tendência: “A construção civil aparece como o setor que mais absorve a

mão de obra dos imigrantes haitianos (30,3%), seguida pela indústria de alimentos (12,6%). Os serviços gerais (7,9%) e o comércio (5,6%) são os setores que absorvem outra importante parcela da mão de obra desses imigrantes” (Fernandes, 2014 p. 63).

155 Notícia publicada no site ADITAL em 27/08/2012 com o título “Haitianos ‘vingam’ como operários no Brasil”.

Disponível em http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=70033 – acesso em 06/11/2012.

156 Num artigo publicado online pode ler-se: “O trabalho noturno é pouco tolerado pelas mulheres. Não faltam

denúncias de exploração e calotes. Há quem veja na vulnerabilidade haitiana motivos para lhes pedir préstimos para os quais não foram contratados”. Disponível em

http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1384590&tit=A-republica-sentimental- do-Haiti – acesso em 28/08/2013.

brasileiro, é ainda relativamente frequente a presença de empregadas domésticas nos domicílios de classes médias/altas, onde passam toda a semana de trabalho, esta recusa representa uma desvantagem na competição por estes empregos; no entanto, ela pode ser vista como uma forma de autoproteção contra a sobre-exploração do seu trabalho – como a ativação de uma memória histórica da violência da escravatura157, que faz parte da subjetividade coletiva haitiana.

Um outro dado interessante, levantado pelo relatório OIM, é a dificuldade que os haitianos revelam na compreensão do sistema de descontos nas folhas de pagamentos (Fernandes, 2014 p. 76). Esperando receber o salário bruto, combinado com os empregadores, os imigrantes veem as suas expetativas defraudadas, preferindo, por vezes, permanecer na economia informal158. Esta situação relaciona-se, obviamente, com o contexto de onde eles chegam: um Estado que não consegue cobrar impostos de forma eficiente, onde a maioria da população trabalha informalmente (Feldman, 2013 p. 32). Este elemento – como alguns outros que já apresentámos sobre a inserção laboral dos haitianos no Brasil – corresponde ao que fora observado por Portes e Stepick na Florida: “Although there is little evidence of crime in our samples, we have estimated that approximately one-third of employed Cubans and Haitians worked in 1983 for 'informal' enterprises in garment, construction, commerce, and the like which violated tax, minimum wage, and labor standards laws159” (Portes, et al., 1996 p. 92). Apesar dos salários baixos, à imagem de muitos outros contextos de migração, os haitianos conseguem enviar as suas poupanças para as famílias no Haiti, sacrificando-se ao nível das condições de alojamento (Fernandes, 2014 pp. 64, 126). Também é curioso verificar que, numa época em que surgem diversas notícias sobre casos de imigrantes escravizados160 no Brasil, inclusive por empresas multinacionais bem conhecidas, “[…] passaram a pipocar notícias de crimes praticados por estrangeiros, por mais banais que fossem. Algumas delas transmitiam a curiosa ideia

157 Não tão longíqua assim, a experiência de muitos haitianos na República Dominicana é frequentemente

marcada por graves violações dos direitos humanos. A forte etnização desta comunidade migrante, tem servido a manutenção da sua subalternidade em trabalhos de baixos salários e é sustentada por “manifestações ideológicas racistas e xenófobas” (Arruda, 2013 p. 106).

158 Aliás, um número consideravel dos participantes do inquérito demonstraram preferir uma situação laboral

informal em função do peso dos impostos no salário líquido: “Dos que trabalhavam no momento da entrevista, 71,9% tinham carteira assinada, 2,4% trabalhavam por conta própria e 25,7% exerciam uma atividade no mercado informal sem carteira assinada. Interessante notar que 20,9% dos haitianos entrevistados informaram que preferem trabalhar sem carteira assinada, uma vez que entendem serem os ganhos maiores nessa situação. Portanto, seria possível inferir que uma parcela daqueles que não têm carteira assinada estaria no mercado informal por vontade própria […]” (Fernandes, 2014 p. 63).

159 “Embora haja pouca evidência de crime na nossa amostragem, estimamos que cerca de um terço dos

empregados cubanos e haitianos trabalhavam, em 1983, para as empresas ‘informais’ de vestuário, construção, comércio e afins, que violavam as leis fiscais, o salário mínimo, e as normas laborais” – tradução nossa.

160 A título de exemplo a notícia do site BBC Brasil que tem por título “Estrangeiros resgatados de escravidão no

Brasil são ‘ponta de iceberg’”, publicada em 13/05/2013 e disponível em

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/05/130508_trabescravo_estrangeiros_fl.shtml – acesso 08/06/2014.

de que imigrantes latino-americanos tornavam o centro de São Paulo mais perigoso” (Ventura, et al., 2013 p. 458) – ou, mais uma vez, reiteravam a “invasão haitiana”161.

Novos preconceitos vão sendo construídos no seio dos empregadores locais, “[…] taxando-os de ‘exigentes’, em relação às condições de trabalho e ao valor dos salários oferecidos. Frases como ‘tem um monte de trabalho, só não trabalha quem fica escolhendo’ parecem ser reveladoras da forma como eles estão sendo incorporados pelo mercado de trabalho local, vistos pelos empregadores apenas como ‘força de trabalho’ barata para a reprodução do capital” (Silva, 2012a p. 312). Para Silva (2012a, p. 302), é necessário ir para além do cenário catastrófico no Haiti e “[…] situar a emigração de haitianos para o Brasil como parte de um processo mais amplo de reprodução do capital, que desde os tempos coloniais fez do Haiti mero exportador de matérias-primas e de força de trabalho para outros países […]” – algo que, como vimos no capítulo dedicado às migrações haitianas, foi amplamente incentivado no século passado pelos EUA (Audebert, 2012 p. 159). Tal como as motivações para esta migração já deixam claro, “[…] a categoria trabalho poderia ser tomada como uma possível chave de leitura desse fenômeno emigratório, que na história do Haiti não constitui novidade, mas um processo que ganhou novos contornos após a catástrofe que afetou o país como um todo” (Silva, 2012a p. 302).

Na visão de Carolina Moulin, o neoliberalismo define os espaços e as temporalidades atribuídas à força de trabalho migrante por meio de estratégias: “Flexibilização das regras de residência, criação de territórios especiais de produção econômica e tolerância para com certas redes ilegais de exploração laboral global são alguns dos indícios dessas novas tecnologias de gerenciamento e de acomodação da mobilidade contemporânea a partir dos ditames das estruturas do capitalismo globalizado” (Moulin, 2012 p. 282). Neste sentido, verificamos que a entrada dos haitianos serve os interesses económicos brasileiros, pois tem sido claro o aproveitamento desta mão-de-obra; porém, fica em evidência o facto de que nem todos os estrangeiros são incluídos de forma idêntica: alguns entram no mercado de trabalho numa posição a priori marginalizada, seja por estarem indocumentados ou porque chegam ao país numa situação de grande vulnerabilidade. Como vimos, os meios de comunicação brasileiros há muito que constroem uma metanarrativa sobre a incompetência do Estado haitiano e a pobreza extrema em que vive a maioria da sua população. A constante aparição nos jornais e televisões dos abrigos precários nas fronteiras brasileiras, onde estes estrangeiros negros parecem lutar pela sobrevivência, coloca-os numa posição inicial de fragilidade que facilmente dá aso à sobre-exploração do seu trabalho. No entanto, e tal como se verificou com o exemplo da imigração judaica, apresentado por Lesser, nem o discurso desfavorável ou a arbitrariedade das leis impediram a sua entrada no país e, em última análise, estes imigrantes representaram uma mais-valia para a economia e o desenvolvimento do país.

161 A notícia do jornal A Folha de São Paulo do dia 08/05/2013, apenas 3 dias depois da notícia supracitada,

tinha por título “Despejo põe fim à ‘república do Haiti’ no centro de SP”; disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/05/1275058-policiais-despejam-haitianos-que-ocupavam-imovel-no- centro-de-sp.shtml - acesso 08/06/2014

4.4.1. “Despejados” em São Paulo

No início de 2014, a situação vivida na fronteira do Acre, em Brasileia, voltou a agravar-se “[…] com a presença de mais de 1.200 imigrantes, em sua maioria haitianos, aguardando o atendimento para a regularização da sua situação migratória ou uma oportunidade de trabalho, via contratação por alguma empresa que chegue à cidade em busca de trabalhadores” (Fernandes, 2014 p. 15). Em abril, o governo do Acre encerrou o abrigo que mantinha, sem condições para o número de pessoas que nele se encontravam, transferindo-as de autocarro para a capital do estado, Rio Branco, ou para a cidade de São Paulo.

Enquanto as trocas de acusações entre os governos dos estados envolvidos centravam a atenção da comunicação social brasileira162, as instituições de apoio a refugiados e imigrantes de São Paulo procuravam dar resposta rápida às necessidades mais básicas das pessoas – alojamento e alimentação –, pois, literalmente, eles eram abandonados no centro da grande cidade. Através das redes sociais foi-nos possível acompanhar a ajuda emergencial que a Missão Paz em São Paulo (gerida pelos missionários Scalabrinianos) prestou, principalmente durante o período de 11 de abril a 7 de maio de 2014. Nessa altura, 650 haitianos dormiram num salão pertencente a esta organização que promoveu eventos para a contratação dos haitianos, com vista à sua rápida integração laboral e saída do abrigo. A este propósito, uma notícia do jornal O Globo demonstrava algum descaso pela sensibilidade do tema e, mais uma vez, nos remetia para a pobreza extrema e a mão-de-obra barata haitiana, desta vez aludindo mesmo à escravatura:

Na sequência, dezenas de imigrantes haitianos e africanos se lançavam com sofreguidão sobre os representantes das empresas, acotovelando-se para preencher fichas e lançando carteiras de trabalho recém expedidas sobre as mesas, sob os olhares satisfeitos — e um tanto surpresos — de empresários. A seleção dos trabalhadores, por vezes, faz lembrar a escolha feita por senhores de engenho em mercados de escravos no Brasil, até o século XIX. No Acre, ponto de entrada de haitianos e senegaleses, segundo pesquisadores da Universidade Federal do Acre, empresários chegam a checar os dentes, os músculos e a pele dos imigrantes. Em um vídeo disponível na internet, um dos recrutadores admite que escolhe os empregados pela canela. Segundo ele, na seleção de trabalhadores para um frigorífico, levava em conta “uma tradição antiga, do pessoal da escravidão, de que quem tem canela fina é bom de trabalho, canela grossa é um pessoal mais ruim de serviço (sic)”.

Em comunicado na página “Haitianos no Brasil” na rede social Facebook, Helion Póvoa Neto pronunciou-se acerca deste editorial, dizendo que, mais uma vez, “[…] os dados aparecem jogados e o sensacionalismo prevalece. Assim, ficamos sem saber exatamente onde e quando ocorre o mencionado mercado de escravos […]”. Neto qualifica de “[…] inadequado – para não dizer injusto, e

162 Com o título “Haitianos estão sendo ‘despejados’ em São Paulo”, esta notícia dá conta da troca de acusações

entre as diferentes entidades envolvidas. Artigo disponível em http://sao- paulo.estadao.com.br/noticias/geral,haitianos-estao-sendo-despejados-em-sao-paulo-diz-secretario,1159640 – acesso em 19/09/2014.

mesmo mal-intencionado – retratar como mero balcão de empregos, agência improvisada ou coisa pior a Igreja Nossa Senhora da Paz, em São Paulo163”.

Esta não foi, aliás, a primeira vez que o estado do Acre tomou este tipo de medidas, pois em 2012 houve um esforço para transferir os haitianos ali concentrados para estados onde a sua mão-de-obra ela solicitada, conforme esta reportagem164 à época demonstrava, empregando, curiosamente, o termo “reaproveitar” ao se referir aos migrantes – como se se tratassem de objetos danificados ao quais se dá novo uso:

Os custos de passagem e hospedagem destes haitianos estão sendo bancados pelo governo do Acre e também pelo Ministério das Relações Exteriores e pelo Ministério da Justiça. Esses haitianos que partem de Brasileia serão reaproveitados em fazendas, indústrias alimentícias e frigoríficos em Porto Velho. A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos também articula com empresários do sul e sudeste oportunidade de trabalho na construção civil.

Na visão de Ventura e Illes, o caso dos haitianos “[…] embora pouco representativo da realidade migratória brasileira, serviu como laboratório das vicissitudes do ‘ser potência’” (Ventura, et al., 2012). Os autores referem-se à frequente comparação entre as políticas de imigração brasileiras e as políticas seguidas pela União Europeia ou pelos EUA, das quais, inclusive, Lula da Silva fez sempre questão de se demarcar (Reis, 2011 p. 62). No entanto, o surgimento de novos fluxos como o de senegaleses165 e bangladeshis166, também eles requerentes do estatuto de refugiado no Brasil, leva- nos a pensar que o “ser potência”, afinal, tornará o Brasil, inevitavelmente, um país na mira de muitos migrantes por todo o mundo, tornando o tratamento casuístico destas situações e a ambiguidade da sua legislação absolutamente insustentáveis, pelo que a tramitação do novo anteprojeto de Lei de Migrações é urgente. Tendo em conta que o fluxo migratório de haitianos para o Brasil, através das fronteiras amazónicas, não é um fenómeno pontual, resta-nos acompanhar a forma como ele continuará a ser gerido pelas autoridades e pelos meios de comunicação social brasileiros nos próximos anos. Estaremos, de facto, perante a existência de uma porta dos fundos para o Brasil, uma “fronteira de serviço”167?

163 Comunicado a título pessoal, publicado a 19/08/2013 na página “Haitianos no Brasil” –

https://www.facebook.com/groups/388444191264376/ .

164 Reportagem de 09/02/2012, disponível em http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/haitianos-refugiados-no-acre-

sao-enviados-a-sp-e-porto-alegre/n1597559789374.html – acesso em 05/08/2014.

165 Notícia sobre a convivência entre senegaleses, haitianos e dominicanos que partilham a rota dominada pelos

“coiotes”, entre o Equador até aos abrigos nas fronteiras brasileiras. Publicado em 28/05/2014, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/05/1461205-depoimento-imigrantes-tentam-a-sorte-no-brasil-mas- pouco-sabem-do-novo-pais.shtml - acesso em 08/06/2014.

166 Notícia sobre o alto número de pedidos de refúgio de nacionais do Bangladesh no Brasil, publicado em

09/02/2014, disponível em http://noticias.r7.com/cidades/saiba-como-vivem-no-brasil-os-nascidos-no-pobre-e- distante-bangladesh-09022014 - acesso em 08/06/2014.

167 Alusão ao editorial de Omar Ribeiro Thomaz e Sebastião Nascimento em 28/01/2012 no jornal O Estadão:

CONCLUSÃO

Com esta dissertação realizámos uma primeira abordagem ao estudo da migração de haitianos para o Brasil. Conscientes das dificuldades a enfrentar na realização de um trabalho etnográfico com os haitianos que vivem no Brasil, propusémo-nos fazer uso desta etapa académica para levar a cabo uma análise, eminentemente exploratória, com vista à aquisição de conhecimentos teóricos que nos permitam avançar com segurança para o momento seguinte de pesquisa. Debruçámos, por isso, a