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4 BLINDAGEM

4.3 Nível discursivo

4.3.2 A enunciação no enunciado

Como já falamos no primeiro capítulo, é possível simular no enunciado a instância pressuposta da enunciação. Essa simulação opera graus de presença da enunciação no enunciado criando efeitos de aproximação ou distanciamento. Como vimos incialmente há um descolamento da instância enunciativa enquanto evento sócio-histórico, um afastamento entre enunciação e enunciado. Esse descolamento permite projetar no enunciado as categorias da enunciação, simulando-a ali. A projeção das categorias da enunciação no enunciado constitui a sintaxe do nível discursivo, diz respeito à instalação das categorias de pessoa, espaço e tempo no enunciado.

Julgamos que os mecanismos breantes são fulcrais para a constituição da blindagem, pois eles possibilitam o efeito de afastamento do sujeito-humorista daquilo que enuncia. Vejamos mais detalhadamente esses fenômenos e suas contribuições para a blindagem.

4.3.2.1 Debreagem enunciativa

Ocorre debreagem enunciativa quando no enunciado existem marcas que permitam identificar a instância enunciativa pressuposta. É o procedimento de instalação do eu-aqui-agora no enunciado. As marcas da enunciação postas no enunciado criam o efeito de realidade, de vivido no dizer de Benveniste. Para quem deseja se proteger contra a identificação com os valores ideológicos postos no enunciado, esse procedimento parece ser o menos recomendado. Vejamos:

Ovos

Cheguei no mercado e perguntei para o vendedor: – Quanto é meia dúzia de ovo?

Ele disse: – Seis ovo.

Embora tenhamos marcas bastante claras da enunciação no enunciado (desinências de pessoa e tempo), o procedimento de enunciação cria uma distinção entre o narrador e locutor, de modo que há, mesmo com as debreagens enunciativas, um distanciamento entre o enunciador e o alvo da piada. Este último é posto como locutor no enunciado, é perspectivado como diferente daquele que enuncia. Esse procedimento enunciativo é uma das estratégias de blindagem do sujeito humorista.

Relembremos o que dissemos na seção 2.2 acerca dos graus de debreagem do enunciado. É possível simular no interior do enunciado uma nova instância enunciativa com toda sua organização, e o texto acima é exemplo disso. Lembremos também que conforme Saraiva (2014) uma enunciação simulada no enunciado referenciará aquela que lhe é imediatamente anterior. Tomemos outro exemplo:

Fonte: Porta dos Fundos (2013)

O frame acima foi retirado do vídeo Deus14 do coletivo humorístico Porta dos Fundos. A tomada em close do ator do enunciado cria um efeito de aproximação entre enunciado e enunciatário, isso, contudo não é suficiente para instaurar uma debreagem enunciativa. No entanto, se observarmos bem, o frame revela uma piscadela do ator do enunciado para o enunciatário, nesse instante neutraliza-se a oposição locutor/enunciador e se instaura uma debreagem enunciativa, ou seja, a instância enunciativa é referida no

14 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t11JYaJcpxg&t=5s> Acesso em: 01 de mar. de 2018. Figura 21 – Neutralização entre locutor e enunciador

enunciado. A debreagem enunciativa cria mais das vezes o efeito de aproximação, como que convoca o enunciador a participar do enunciado. Não seria demais supor que esse procedimento arrisca a identificação do humorista com o enunciador, pois põe em pé de igualdade enunciador e enunciatário. Contudo, havemos de lembrar que esses dois actantes da enunciação também são projeções operadas pelo fazer enunciativo, isto é, são os functivos da função sujeito da enunciação global. Tomemos outro exemplo:

Fonte: Figura retirada da internet

Vê-se no enunciado uma marca enunciativa: um aqui. Lembremos, porém, que tal marca, à semelhança da piscadela da Figura 22 representa a instância enunciativa debreada no enunciado, temos um locutor que se dirige a um locutário; a direção do olhar do ator do enunciado neutraliza seu locutário com o enunciatário, como os níveis de debreagem são diferentes é difícil argumentar uma identificação do sujeito-humorista com o que se enuncia ali no enunciado. Isso significa que, mesmo operando debreagens enunciativas, nosso sujeito-humorista mantém-se afastado do que enuncia, ou seja, ele não assume papel algum no enunciado, ou ao menos não se lhe pode atribuir nenhum papel.

4.3.2.2 Debreagem enunciva

Há debreagem enunciva quando no enunciado não há marcas que permitam referenciar a instância da enunciação. Esse procedimento cria o efeito de afastamento do enunciado, que desembocará em um efeito de objetividade. É o procedimento de instalação de um ele-lá-então, do qual enunciador e enunciatário não participam. Podemos supor que esse procedimento seja o mais efetivo para a instauração do efeito de blindagem, pois permitiria ao nosso sujeito-humorista manter-se afastado daquilo que enuncia. De fato, tomemos um exemplo:

Fonte: Figura retirada da internet

O texto não apresenta nenhuma marca que possa remeter à instância enunciativa que lhe deu origem. Trata-se de uma debreagem enunciva, pela qual o sujeito-humorista se afasta completamente do enunciado.

Pode-se argumentar que, em todos os exemplos apontados até aqui, é possível apontar um enunciador empírico que, ao realizar o enunciado se comprometeria com os valores ideológicos mobilizados por ele. Lembremos, porém, que não é esse o procedimento

analítico da Semiótica Discursiva. O sujeito da enunciação em Semiótica deve ser entendido, como esclarecemos na seção 2.3, como uma pressuposição da existência do enunciado. De qualquer modo, parece claro, pelo que dissemos até aqui, que o sujeito-humorista evita comprometer-se com o enunciado que produz, buscando apagar sua identidade. O procedimento enunciativo do discurso humorístico parece objetivar a desindentidade do seu enunciador global, ou seja, o sujeito-humorista se dessemantiza de tal modo que passa a ser encarado como apenas um procedimento enunciativo. Arriscaríamos dizer que ele passa a operar em uma instância simbólica, distante da instância semântica do discurso.

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