• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I: A perspectiva de uma erótica

1.3. A erótica do neurótico

A questão que o tempo coloca à Psicanálise, quando ela se propõe a investigar (e revelar) essa erótica, é seu posicionamento sobre o objeto da satisfação e gozo humano. Vimos que a cobertura ou perspectiva de uma erótica permite ao sujeito se constituir e construir sua realidade compartilhada, porém ela o leva a uma busca por um gozo ou por um objeto onde ele, infalivelmente, decepciona-se. A psicanálise se constitui a partir da fala do neurótico. Qual é a autoridade do neurótico neste campo da erótica, nos pergunta Lacan. Sua autoridade está na estrutura que ele revela, que é a nossa, pois o desejo do neurótico é o nosso: o neurótico quer saber, e através deste desejo ele introduziu a psicanálise:

“O neurótico (...) quer saber o que há de real naquilo de que ele é a paixão, ou seja, o que há de real no efeito do significante, o que supõe, (...) que o que se chama de desejo, no ser humano, é impensável, a não ser dentro dessa relação com o significante e seus efeitos que ali se inscrevem.” (Lacan, 1961-2/2003, p. 192).

O neurótico por sua posição no campo simbólico, como significante vivo, encarna uma questão – sua dignidade está nesta questão, que o motiva a saber. Se ele é um significante (vivo), então ele representa um sujeito oculto para outro significante – é este sujeito oculto a quem ele serve, seu inconsciente. E servindo-o, ele se equivoca, tal como o cristão, por não saber sobre sua servidão:

“(...) fazer com que esse advento da função significante não se tenha produzido, que se encontre o que há de real na origem, aquilo de que tudo isso é signo”. (Lacan, 1961-2/2003, p. 193).

O neurótico tentará reencontrar um real inicial, puro, procurará acessar uma essência primeira, anterior ao mundo da linguagem, por meio de uma busca por das Ding, tida por ele como uma ideia de completude – ou um acesso ao gozo, algo que cessaria sua insatisfação. Como o cristão buscando a graça, o neurótico busca o ser, uma suposta essência perdida, que para Lacan será a marca de um luto nunca completo em relação à das Ding.

É impossível aceder à graça sem uma amarra a um tempo anterior, momento anterior ao estabelecimento da lei, e onde a condenação humana era certa. Em termos clínicos, esse tempo anterior ao estabelecimento da lei, corresponderia ao momento onde o sujeito teria tido um acesso a das Ding, e depois, foi expulso do Paraíso. Aqui ocorre o mesmo do que dissemos acima sobre o gozo alcançado e o gozo imaginado. O neurótico desconhece – ponto de recalcamento – que, ao empreender esta busca, ele tentará apagar-se, pois que ele próprio é efeito do significante, da substituição da suposta Coisa pelo significante. Lacan chamará esta busca neurótica de uma perspectiva erótica escatológica, pois é a perspectiva de quem busca (sem saber bem) o fim de seu mundo (sustentado pelo falo).

O neurótico sofre, portanto, o efeito de um equívoco estrutural, gerado pela retroação e antecipação significante, o que o fará cair em uma contradição: o sujeito que ele é, advém como resultado da impossibilidade de um objeto de satisfação plena em um mundo de linguagem (objeto impossível). Porém, exatamente por ser sujeito do significante, ao adentrar na linguagem, ele poderá, a partir de sua prática com um objeto que se encontra a sua disposição na realidade, constatar repetidamente sua insatisfação relativa a este(s) objeto(s), e, retroativamente, supor que teria havido um estado essencial anterior à linguagem, onde o homem era completo, a partir dos efeitos da idealização também propiciados pela linguagem (idealização ao objeto). Assim, a perspectiva de uma erótica é a projeção, estabelecida só depois, que projeta uma

substância sobre um suposto objeto primitivo, que nunca houve. O objeto “reencontrado” na realidade, a partir da representação, é o nascimento do objeto.

Contrariamente às saídas via recalque (idealização, impossibilidade), as quais o sujeito encontra quando se depara com a contradição, Lacan fará menção a uma terceira: à saída sublimada. O conceito de sublimação é aqui enfatizado a partir de sua inseparável contradição (marca da negação): é pelos caminhos contrários ao gozo, que o gozo é obtido na sublimação (Lacan, 1961-2/2003, p.19). O médium por onde se dá esse acesso ao gozo – que, em seu fundo, só pode referir-se à das Ding – e que é, ao mesmo tempo, contrário ao gozo, é o significante. A sublimação como uma busca onde não há a passagem pelo ponto de recalcamento, não há desaparecimento do sujeito: ele encontrará/inventará, pela via do significante, algo que será elevado à dignidade de das Ding. A sublimação é uma forma de encontrar a satisfação sem que o alvo pulsional seja atingido.

A menção à sublimação parece relacionar-se à resposta, diferente, que a Psicanálise deve oferecer ao questionamento que lhe é dirigido sobre a erótica. Ao mencionar a sublimação e adicionar-lhe este adendo, Lacan aponta que sua resposta, diferentemente daquela do neurótico, não supõe uma saída do significante. A erótica psicanalítica deve se haver exatamente com isso que não funciona na clínica tomando a via sublimada - gozo paradoxal e significante, inventando soluções artesanais (uma prática).

O conceito de desejo em Psicanálise traz uma consequência ética a partir da revelação da erótica do neurótico. A dimensão moral começa para a Psicanálise não ao se saber qual é o seu dever frente à verdade, ou se sua conduta deve ou não cair sob uma regra universal (como proposto pelo imperativo categórico kantiano), mas sim em saber se deve-se, ou não, satisfazer ao desejo do Outro (Lacan, 1961-2/2003, p. 217) – deixar- se dominar sob o poder de um outro é muito diferente de descobrir-se submetido à estrutura da linguagem e a um estranho objeto. A ética do desejo inconsciente dependerá de como se entende o conceito de desejo na experiência freudiana.

O que Freud chama de sexualidade humana é algo a que se aplica o Isso não funciona lacaniano. Uma análise refere-se a isso que não funciona, sob toda esta

cobertura bela e erótica20 da vida moderna. E da mesma forma que a graça prevê tanto uma revelação (e reconhecimento) como uma escolha singular de cada sujeito, a psicanálise não tem nenhuma promessa de objeto a ser oferecida. O que ela oferece é a possibilidade da revelação de uma verdade que liberte o sujeito, de revelar esta cobertura sob a qual ele vive deslizando no sentido, para que a partir de sua singular localização, e revelação daquilo que não funciona, ele poder construir artesanalmente sua resposta ao seu impasse – soluções possíveis. É como artesão que Lacan sugere (ao menos é o que nos parece) que a análise deve posicionar o analisando.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

20

Documentos relacionados