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3. O infantil na cena escolar

3.2 A erótica na relação mestre-aluno

A partir das considerações feitas até aqui, podemos dizer que o infantil se organiza a partir da incidência traumática do outro, e é essa intrusão que põe em cena o sexual, marcando a entrada do sujeito na cultura. Da satisfação das necessidades inaugurais relativas à sobrevivência, apoiadas no corpo que passa a ser investidos de libido; do auto-erotismo, que estabelece novas possibilidades na obtenção de prazer e no domínio das excitações; passando pelas descobertas que se efetuam na relação com os objetos, muito ainda poderia continuar sendo dito sobre a criança, seus prazeres e enigmas. No entanto, nos interessa neste momento interrogar em que medida todas essas proposições tocam o professor.

Por que a responsabilidade por esse período da vida – 0 a 6 anos - no contexto escolar se traduz na prática de modo tão inquietante? O que isso vem nos dizer sobre o desejo e o recalque no encontro entre mestre-aluno, demarcando uma erótica?

A passagem pela escola constitui uma obrigação social, e mais que o desenvolvimento da personalidade ou das competências cognitivas, podemos dizer que os professores contribuem e têm importância singular na experiência de relação com a criança pequena, na medida em que “a educação tem como efeito o deslocamento do corpo da mãe para o corpo social, com a consequente possibilidade de habitar o coletivo e compartilhar os valores preconizados numa determinada época e cultura”

(STOLZMANN e RICKES, 1995, p.45). Isso significa que as perguntas e a dualidade experimentada até então passam a ter novo endereço: o professor.

Conforme destacamos no ítem anterior, a passagem da família à escola, que marca a entrada de crianças de 0 a 6 anos numa instituição de ensino, estabelece uma concomitância relativa aos cuidados na primeira infância, que serão, a partir de então, realizado por pais e professores. Especialmente nos primeiros anos da escolaridade, separar-se (ou não), desfazer-se ou ainda adiar a chupeta, os paninhos, a fralda e os objetos preferidos que fazem função de contenção e segurança não é tarefa das mais fáceis para a criança, ou mesmo para o professor. Nesse sentido, ver-se imbricado e atravessado pela referência materna e, ao mesmo tempo, sustentar a função educativa no contexto social e coletivo constitui uma questão fundamental para os profissionais que trabalham com essa faixa etária.

Observamos, muitas vezes que para estes, saber o que fazer diante das situações que se apresentam constitui um desafio, que no âmbito institucional se revela através de uma medida de competência e eficiência mais ou menos bem sucedida de elucidar e dominar o infantil (sobretudo nos índices de avaliação dos alunos), ou no engano do binômio ensino-aprendizagem, tomado como um efeito de continuidade, que cai por terra diante das manifestaçãoes dos alunos – eles desobedecem, saem correndo, deixam escapar o xixi, ainda não sabem ler, não conseguem ficar sentados por muito tempo numa roda de conversa, e menos ainda na carteira.

Assim, diante da vontade de saber dos adultos sobre o enigma que surge na relação com a criança, a pedagogia lhes oferece formas de minimizar, ou melhor, de erradicar o receio diante dos perigos e vicissitudes da vida junto aos pequenos sujeitos. Nesse sentido, o infantil enigmático é justamente o elemento com o qual todo professor precisa se haver, e de algum modo, se autorizar a ver: o infantil que remonta ao seu próprio recalque e sua condição desejante, que remete a uma ausência (de saber, de respostas, de elementos que desvelem o enigma do desamparo).

Esse reencontro, suscitado a partir da relação com a criança, não é exclusivo do campo da educação, mas podemos dizer que ele constitui um elemento fundamental para aqueles que ensinam, pois tornam a se deparar com o infantil imbricado na prática profissional seja pelo registro da sexualidade (que inclui desejo, processo primário,

princípio do prazer, pulsão sexual) -, seja como referência ao estranho, que aponta o desamparo do sujeito diante da força da pulsão. (BACHA, 2000)

Podemos dizer que esses elementos compõem a erótica que se monta na cena escolar e remete à fantasia (seja de domínio ou de sedução) que contorna o objeto de desejo, inevitavelmente marcado pela impossibilidade de garantir a satisfação plena. Nesse sentido, a dimensão da fantasia - que abordamos no capítulo 2 -, bem como a contingência do objeto, configuram uma posição desejante, cujo caminho de realização aponta a ilusão de reencontro com o objeto perdido e implica numa série de derivações e percalços, presentes na tentativa de aproximar o desejo e a satisfação.

No encontro com a criança, nos parece oportuno destacar que o professor se depara com “a limitação de sua onipotência, tendo de suportar a frustração pela inevitável irrealização de seu modelo” (BACHA, 2003, p. 95). Se estivermos atentos, veremos que, em alguma medida, esse sentimento é correlato às primeiras vivências de frustração e desprazer infantis, bem como à renúncia presente e necessária, que se dá a ver nos deslocamentos e derivações dos modos de satisfação. Em contrapartida, podemos dizer que essas mesmas experiências entre mestre e aluno também permitem alguma saída para quem ensina, podem apontar um outros caminhos e olhares, sem que a indiferença se imponha como único refúgio.

Assim, levando em conta o contexto de nosso trabalho e retomando o enigmático que toca o professor, podemos dizer que o infantil coloca em cheque a posição de explicador do mundo o que, de algum modo, o convoca passar ao lugar daquele que pode produzir indagações, uma vez que a certeza intrínseca à função de educador não existe. Portanto, mais que suportar a angústia de se perguntar sobre sua prática, e de certa forma, deslizar essas questões para um saber sobre o desejo e o recalque, nos parece fundamental que o professor possa escutar as brechas por onde surge algum encantamento em sua tarefa e no encontro com as crianças, tornando possível um deslocamento do saber de sua dimensão utilitária, para a dimensão da erótica em jogo.

Podemos dizer que o saber em sua dimensão utilitária se apresenta relacionado ao conhecimento, entendido aqui como uma espécie de produto com fim em si mesmo, passível de apropriação e controlável quanto ao seu efeito. Assim, o saber vem encarnar uma posição de domínio.

Curiosamente, se retomarmos essa ideia em Freud (1913) em O interesse

científico da psicanálise, podemos observar que em relação à educação, ele nos propõe,

inicialmente, que o conhecimento e a maior familiaridade dos educadores com suas descobertas forneceriam a compreensão para os processos pelos quais as crianças passam ao longo da infância, como uma espécie de profilaxia das neuroses, através de uma

educação psicanaliticamente esclarecida. Por outro lado, ao constatar a impossiblidade

de que esses conhecimentos fornecidos pela psicanálise, por si só atuem como garantia contra o adoecimento neurótico, retoma a idéia de que o estranhamento21, neste caso, em relação à própria infância, é o que impediria os adultos de educar as crianças em seu desenvolvimento e por isso, lançariam mão da supressão ou do controle pulsional em nome da “normalidade”.

Quando nos referimos, então, a uma abertura que supõe a dimensão erótica, significa considerarmos que aquilo que surge e se monta como moldura do desejo do sujeito não pode prescindir de seu encontro com o objeto, atravessado pelo sexual. Disso decorre que, por maior domínio que um professor venha ter dos conteúdos, seu encontro com a criança jamais será inócuo, na medida em que “para que uma criança tenha acesso minimamente ao conhecimento, é necessário que o Outro (professor) deseje o seu desejo de saber, o que é bem diferente de um desejo sedimentado apenas no acúmulo progressivo de conhecimentos”. (STOLZMANN e RICKES, 1999, p. 50)

Nesse sentido, se há alguma possibilidade de que o desejo entre em cena, deparar-se com o enigmático não encerra apenas um impedimento, mas pode ser também motor, ao colocar em marcha o caráter inevitável da pulsão, ao qual todo professor (e todo humano) está submetido; ou seja, ao mesmo tempo em que o encontro com o infantil põe em suspensão um saber (da ordem do conhecimento), também lhes abre a possibilidade de rever e indagar seu próprio lugar através de uma ausência, que pode vir constituir um saber, agora sobre o desejo.

A partir desses elementos e na tentativa de ilustrar a que se refere a erótica na relação mestre-aluno, propomos recuperar algumas vinhetas apresentadas no capítulo 1 relativas à organização do espaço. Reproduziremos os trechos a seguir para que possamos 21

Chamamos atenção para o fato de que o que denominamos de estranhamento difere, nesse contexto, de desconhecimento. Isso implica que não basta conhecer, no sentido de ter acesso ao conhecimento ou informação, seja de ordem pedagógica ou mesmo psicanalítica, para sanar o vazio deixado pelo desconhecido. O estranhamento, de outro lado, remete ao enigma, ao estranho e instaura uma suspensão do saber, mas incide sobre algo que está no sujeito como marca, como algo da ordem do vivido no campo da realidade psíquica e, portanto como parte de sua constituição.

articular essa questão. Ambos se referem a um encontro de formação em que pensávamos o espaço da educação infantil: como era utilizados pelos professores e pelas crianças, como delimitava ações e possibilidades em cada grupo. Diante do questionamento sobre uma nova disposição dos materiais na sala de aula, com vistas a oferecer novas oportunidades de circulação e descoberta às crianças, os professores referem:

“Se eu colocar os materiais e brinquedos ao alcance das crianças, elas vão mexer em tudo e eu vou perder o controle, vai virar uma bagunça. Imagine se uma mãe ou a diretora estiverem passando pela minha sala, nessa hora? Vão dizer que não tem professor, ou que eu não domino a classe.”

“Prefiro deixar as crianças todas de frente pra mim, cada um na sua mesa. Eu sempre fiz assim, e ninguém disse que estava errado. Acho que se organizá-los em pequenos grupos, vão falar todos ao mesmo tempo e não vão aprender nada.”

Em alguma medida, as hipóteses dos professores tomam a possibilidade de circulação e uso do espaço pelas crianças como uma ameaça que fará escapar, inevitavelmente, algo que não poderão controlar. Neste caso, a fantasia de domínio do professor em relação à criança, ou melhor dizendo, ao infantil pulsional, inside em seu caráter anárquico e incontrolável, o qual ele se dedica a barrar ou fazer desaparecer através dos limites organizados na sala de aula.

No entanto, é curioso notar que, quanto mais intensas as medidas de contenção no espaço, mais variadas são as formas de escape, especialmente pela via do brincar - na travessura, nas “implicâncias”, provocações e no jogo de esconde-esconde (esconde a borracha, o lápis, a folha, o brinquedo, o sexual), que põe em circulação saberes e excitações que, “sem querer querendo”, são “descobertos” pelo professor. Neste caso, um saber sabido (o brincar) e não autorizado se põe a circular na sala de aula e, como uma espécie de prazer ilícito, mobiliza nos professores raiva e desconfiança, não pela indisciplina que supõe no grupo de crianças, mas porque reconhecem o infantil vivido um dia.

Bacha (2000), em Édipo de quarentena recupera esse infantil e o tensiona em relação à escolarização da infância, apontando que “os sentidos são a porta de entrada da sensualidade, do prazer e das paixões” (p. 115). Assim, a criança, sensível aos afetos – que saciada de leite, ainda pede o seio, que sabendo andar, quer o colo -,

parece portar um perigo eminente em si mesma e para os adultos que dela se ocupam: deseja prolongar o prazer e a satisfação das primeiras experiências.

Mas isso não é tudo. O olhar dos demais adultos da instituição também coloca o mestre em alerta, pois revela e constata que, tal qual seus alunos, ele também está sujeito ao “descontrole” que seria próprio do infantil: deixá-los brincar ou organizar novas possibilidades de circulação, acesso e uso dos espaços e materiais, parece torná-lo promotor, parceiro e cúmplice de uma experiência de prazer, que será condenada à exclusão.

Interessante notar que uma possível saída para esse impasse se concentra então, na tarefa assumida pela educação de tornar a sexualidade invisível. De acordo com Kaës (2007),

a representação segundo a qual um ser em formação - criança, adolescente ou adulto - é um ser assexuado, não constitui simplesmente, para o formador, uma modalidade defensiva contra a erótica que evoca nele o desejo de um outro em formação. Essa representação remete também à posição do próprio formador como um ser sexualmente indiferenciado; ele garante que não será feito da diferença e que a formação se organizará contra a emergência de tudo saber sobre a diferença e que, portanto, nada vai acontecer. (p. 59, tradução nossa)22

Neste caso, a experiência de prazer referida há pouco nos revela que, de fato, muita coisa acontece e o professor nada tem de assexuado, ao contrário, é marcado por seu desejo inconsciente, pelo desejo “de ensinar algo a alguém que está na posição de querer saber”. (STOLZMANN, 1999, p. 45)

Este saber pode ser pensado do lado da criança, na medida em que fala do amor ofertado àquele que se dedica a lhe dar algo (a ensinar), como uma promessa de que o saber suposto ao mestre venha preencher o que lhe falta.

22

“La représentation selon laquelle l’être à former – enfant, adolescent, adulte – est un être asexué ne constitue pás seulement, pour Le formateur, une modalité défensive contre lês émois érotiques qu’éveille en lui le désir de l’autre en formation. Cette répresentation renvoie aussi à La position Du formateur, lui-même comme être sexuellement

indifférencié; elle garantit qu’il ne será pás fait de dífférence et que la formation s’organisera contre l’émergence de tout savoir sur la différence, bref qu’il ne se passera rien”.

Do lado do professor, o saber aponta um lugar que entrelaça o enigma do desejo e o infantil à tarefa de cuidar e ensinar, contornados por uma erótica. Quer dizer, o que quer que venha a ser sustentado pelo professor será atravessado por ideais, desejos e por uma posição singular diante dos modos de satisfação – o que não oferece garantia, e por isso mesmo possibilita que o desejo de saber entre em circulação.

Eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Começei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que entoam do que pelo que elas informam.

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