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A escolha dos professores nas escolas médicas

O Ensino Superior Brasileiro, do qual 70% dos universitários freqüentam instituições particulares, continua a ser definido como um sistema formador de profissionais para o mercado de trabalho. A exceção são as universidades públicas, que se preocupam também em desenvolver pesquisas. Esse fato faz com que a contratação do corpo docente das instituições dê preferência a profissionais da área bem-sucedidos, com o papel de transmitir conhecimentos e experiências aos alunos; “Quem sabe fazer, sabe ensinar”. Como a metodologia de ensino se resume à transmissão oral de conhecimentos e à realização de algumas atividades práticas, o professor se torna o centro maior das informações a serem aprendidas e, como conseqüência, tem-se um número de alunos, em geral muito grande, pois “[...] quem fala para 15 poderá fazê-lo para 50 ou 100”. (MARCONDES & GONÇALVES, 1998, p. 11).

Mais recentemente, embora se exija dos docentes recrutados mestrado ou doutorado, que os tornariam mais competentes na comunicação do conhecimento, ainda não se pede competências profissionais de um educador no que diz respeito à área pedagógica e à perspectiva político-social.

A concepção do que se exige como capacitação do docente vincula-se quase invariavelmente ao seu desenvolvimento didático-pedagógico, privilegiando os aspectos técnico-instrumentais. Essa postura prioriza o “como ensinar” desarticulado de uma visão mais ampla dos fundamentos sociais, políticos e culturais do contexto educativo.

Zabalza (2004, p. 155-156) discute bem o dilema entre a formação para a docência e a formação para a pesquisa. Segundo esse autor, parece haver poucas dúvidas de que a pesquisa requer competências e habilidades completamente diferentes das exigidas pelo ensino. Na maioria das vezes, o que seria avaliado nos concursos de ingresso ou promoção de docentes é a produção científica, ou seja, suas pesquisas e trabalhos publicados, como decorrência dos efeitos econômicos do status atribuído às atividades de pesquisa. Conseqüentemente, a docência acaba se transformando, de maneira contraditória, em uma atividade marginal dos docentes.

O autor ainda comenta que na comunidade acadêmica, entre professores e administradores das universidades, são muitos os que defendem que “[...] para ser um bom professor universitário, o mais importante é ser um bom pesquisador”. Na sua avaliação,

porém, considera freqüente encontrar excelentes pesquisadores que não se comunicam bem, ou utilizam linguagem ininteligível para os estudantes, ou entram em conflito com os alunos e até mesmo seus pares. Por outro lado, muitas vezes o conteúdo da pesquisa levada a cabo pelo professor-pesquisador tem pouca relação com o conteúdo a ser ensinado.

Esse excesso de valorização das publicações, comum nas universidades públicas, se estendeu também às escolas médicas privadas, que normalmente supervalorizam o número de trabalhos publicados no currículo do professor.

Por outro lado, muitas vezes o que se valoriza com maior realce no professor são as técnicas pedagógicas por ele empregadas, ou seja, a didática, sem levar em conta as vertentes filosóficas da pedagogia. Dessa maneira, o panorama se torna estreito e o processo fica empobrecido, pela carência de aportes que correntes filosóficas e teorias de aprendizagem poderiam estar acrescentando à atividade docente (GONÇALVES, 2002, p. 233).

O ensino assim estruturado teria como função, segundo Marilena Chauí, “[...] dar a conhecer para que não se possa pensar. Adquirir e reproduzir para não criar. Consumir, em lugar de realizar o trabalho de reflexão” (in REALI & MIZUKAMI, 1996, p. 53).

Lisbôa (1999, p. 100) relaciona os requisitos de um bom professor de medicina:

[...] profissional competente, capaz de transmitir seus conhecimentos em linguagem clara e acessível, ser moralmente inatacável, socialmente comprometido com os interesses da população e estar interessado em formar médicos. Melhor ainda se pesquisasse, publicasse bastante e fosse considerado luminar, sem deixar de atender aos requisitos acima especificados.

O autor diz que na prática, infelizmente, as coisas seriam diferentes:

Quase todos os professores são avaliados pela produção científica, ou seja, pelas suas pesquisas, pelos trabalhos publicados, pela sua titulação. São essas atividades que conferem a eles prestígio, reconhecimento, verbas e, principalmente, progressão na carreira, o que significa ganhar mais e mandar mais. O docente que se dedica integralmente aos alunos, mostrando-lhes a importância de atender as pessoas com carinho, ética, dignidade, respeito e amor, que faz questão de deixar claro em suas atividades o seu compromisso social; que defende os direitos da população e publica pouco, morrerá como assistente, sem nenhuma possibilidade de progressão funcional, sem nenhum horizonte na carreira universitária. [...] Esse quadro necessita ser mudado. (LISBÔA, 1999, p. 100)

Batista & Silva (2001, p. 46) reafirmam que, no caso do professor de Medicina, o critério para sua contratação se baseia apenas em seu desempenho como profissional e/ou pesquisador, não se exigindo formação pedagógica, que o habilite a compreender e a desenvolver adequadamente o processo de ensino-aprendizagem. Os mesmos autores ressaltam também a desvalorização do ensino em relação à pesquisa nos cursos de

graduação. Como agravante, os docentes mais eficientes seriam deslocados para os cursos de pós-graduação, deixando a graduação para docentes em início de carreira (ibid., p. 55).

2.10. Perfil do professor de medicina

No caso da escola médica, a regra é a “não convivência” dos docentes com outras áreas e saberes universitários. Daí o fato, como regra geral, de o docente médico ser um competente especialista da sua especialidade médica, mas um conhecedor pobre das outras áreas que configuram o saber humano (GONÇALVES, 2002, p. 234).

Ainda hoje, após a publicação das novas Diretrizes Curriculares, na maioria das faculdades de medicina encontramos professores com experiência clínica e cirúrgica, capazes de atender o paciente, diagnosticar sua doença e tratá-la, embora sem capacidade adequada para transmitir e repassar conhecimentos aos alunos de maneira clara, obedecendo a normas pedagógicas. Esta falha tem raízes no fato de que estes professores não tiveram na sua formação o embasamento suficiente para se tornarem professores (LANE, 2000). Esse fato é confirmado pela pesquisa da CINAEM, que revelou que, de um modo geral, os docentes das escolas médicas eram pouco preparados para o ensino e mesmo para a pesquisa e atividades administrativas (AMARAL, 2002, p. 93). Para a grande maioria, a docência não se configura como uma profissão e, sim, como atividade complementar à profissão médica. Essas constatações são ainda mais acentuadas nas escolas privadas.

A realidade é que, na maioria das escolas médicas, dispõe-se de grande número de médicos, ótimos profissionais, mas de um número muito limitado e mesmo inexistente de educadores ou especialistas em educação (CINAEM, 1998). Ainda como fato grave é importante salientar que, lamentavelmente, muitos docentes estão mais interessados em demonstrar complexos conhecimentos e habilidades do que em transmitir aos alunos aquilo que seja pertinente e adequado.

Por decorrência de sua formação, o professor do curso médico está tendo dificuldades para se adaptar aos novos requisitos necessários à sua prática. A forma de ensinar e o papel do professor têm evoluído com a história do mundo. O consenso atual é de que o professor é um mediador do processo ensino/aprendizagem e que é muito importante possibilitar ao aluno que aprenda por si próprio, tornando-se parte ativa do processo de aprendizado (ARRUDA, 2001).

Não se deve esquecer, porém, que a exigência que recai sobre o professor de Medicina é muito grande, uma vez que dele se esperam bons conhecimentos técnico-

científicos, bem como capacidade de promover uma relação médico-paciente adequada, para exercer sua função profissional. Por outro lado, suas atividades como docente fazem com que sejam necessárias ampla bagagem de fundamentos teóricos e até criatividade para desenvolver o processo ensino-aprendizagem e a relação professor-aluno de modo condizente. Segundo Batista (2000, p. 29),

Comprometer-se com essas duas dimensões significa assumir que ser professor constitui um processo de Educação Permanente [...] motivando viver a docência universitária em toda a sua imponderabilidade, surpresa, criação e dialética na relação com o novo.

O aluno de Medicina Özgür Onur (1993), participante da Conferência Mundial de Educação Médica realizada no ano de 1993 em Copenhague, se posicionou a respeito do que seria mais importante para a transformação do ensino médico, uma vez que o currículo formal ou prescrito já estava sendo modificado em várias escolas:

Devemos focar na base do iceberg. A ponta do iceberg já está emergindo e alcançando a luz do sol. Infelizmente, a maioria dos estudantes ainda está, no dia a dia, face a face com professores que não estão interessados em melhorar. A Educação desempenha um papel menor no seu trabalho; pesquisa, atendimento a pacientes, carreira pessoal, recursos financeiros são muito mais importantes que educar estudantes e jovens médicos. Acreditamos que isso tem que ser mudado. Mas quem poderia fazê-lo?

Continua:

Se somos sérios na nossa visão Por um melhor atendimento médico e se nós acreditamos que uma melhor educação pode levar a esse objetivo, então temos que mudar a educação da massa dos estudantes e não apenas de um grupo de estudantes. Ele insiste para que os estudantes parem de reclamar e passem a participar do processo de mudanças56.

As diretrizes curriculares são referências obrigatórias para a elaboração do modelo pedagógico/perfil do profissional. O processo educacional é uma combinação entre o ensino e o aprendizado. O ensino tradicional está centrado na figura do professor, sendo ele o responsável de maneira completa pelo processo de aprendizado do aluno. O mestre, desse modo, decide sempre o que é importante para os alunos conhecerem; naturalmente aquilo que mais interessa a ele como especialista em alguma área particular da Medicina.

Morin (2002a, p. 104) enfatiza a necessidade de mudança na maneira de pensar do professor/formador:

A reforma do pensamento é uma necessidade histórica fundamental. Na atualidade, a maioria dos professores universitários de todas as áreas é vítima do pensamento fracionário da tecnociência que corta como fatias de um salame, o complexo tecido do real. É necessário, pois, estar intelectualmente desarmado,

56 Özgür Onur, Future of Medical Education. Conferência Mundial de Educação Médica. Dinamarca, Copenhague, 1993.Disponível em <www.ifmsa.org.br>. Acesso em 07 de julho de 2005.

começar a pensar a complexidade, enfrentar os desafios e tentar pensar os problemas da humanidade. Essa é uma reforma vital para os cidadãos, que permitiria o uso pleno de suas aptidões mentais e se constituiria numa condição, embora não única, sine qua non para sair dessa verdadeira barbárie em que a humanidade se encontra.

A formação de médicos com essa visão, responsabilidade maior do professor de medicina, pela inserção desse profissional na sociedade, seria de importância crucial na melhoria da qualidade de vida das pessoas. Na verdade, na área da saúde, os futuros docentes devem ser entendidos como intelectuais responsáveis pela criação de oportunidades em que os alunos possam debater, assimilar e adquirir o conhecimento e as habilidades necessárias à luta rumo à concretização de um mundo mais justo e humano (GIROUX & MCLAREN in MOREIRA & SILVA, 2000, p. 140).

No caso dos professores de medicina, não se pode esquecer que há ainda o agravante da grande valorização atualmente dada à profissão pela sociedade. Queluz & Alonso (2003, p. 10-11), ao se referirem aos problemas enfrentados por todas as profissões na sociedade contemporânea, fazem um comentário que cai como uma luva para os médicos:

O valor dado ao individual, à exaltação do personalismo, o excessivo valor atribuído aos bens materiais e a convicção de que é preciso ser o melhor, vencer a competição, estar à frente dos outros, serem bem-sucedidos na vida a qualquer preço, torna difícil para os profissionais terem uma visão social do seu trabalho.

Essa visão social é de fundamental importância às atividades de todos que atuam na área da saúde.

As pressões para que aconteçam as mudanças necessárias na formação médica enfrentam resistências muito grandes nas escolas, principalmente por uma parte significativa dos atores mais importantes, os professores. Muitos resistem a se distanciar do ideal de prática que cultivam, especialistas com inserção em hospitais de alto nível e com consultório privado, podendo se utilizar de equipamentos e tecnologias sofisticadas para fazer seus diagnósticos.

Os valores dos médicos mudaram. Valorizam-se, hoje, a especialização, a precisão diagnóstica, a impessoabilidade nas relações, a recusa à vida de sacrifícios, a comercialização do trabalho médico, partes de um novo tempo e de um novo lugar social da profissão.

2.11. Ênfase na qualificação docente: recomendação da CINAEM

CINAEM indica que os alunos ingressam na escola com a visão do senso comum do que é ser médico. As relações de poder durante o curso de graduação moldam uma postura passiva e reprodutiva por parte dos alunos (CINAEM, 1998, p. 61) e os docentes reproduzem no espaço da escola médica o seu modo de atuação no mercado, centralizando o poder de decisão no âmbito das atividades acadêmicas.

Por outro lado, a necessidade de profissionalização e de um maior comprometimento com a docência por parte dos professores de medicina ficou clara no estudo realizado pela CINAEM (1998, p. 40) que considerou o docente como um dos elementos centrais para o êxito das reformas necessárias à educação médica:

Quaisquer modificações desejadas no currículo e no processo de aprendizado precisarão estar alicerçadas em um corpo docente com sólido embasamento conceitual, metodológico e técnico sobre as inovações introduzidas na educação médica e com forte motivação para apoiar as mudanças necessárias. Por esta razão, um dos focos que deverá ser desenvolvido na Terceira Fase do Projeto CINAEM será dirigido especialmente aos docentes das escolas de medicina, sob a denominação docência médica profissionalizada.

A capacitação de núcleos pedagógicos nas escolas objetivaria “a difusão dos métodos pedagógicos, o apoio a projetos inovadores em educação médica, o estímulo à formação senso estrito de alto nível e a discussão de propostas e experiências de incentivo à profissionalização da docência médica”.

As fases subseqüentes da CINAEM foram para a avaliação continuada dos resultados advindos das diferentes escolas, a partir de todo trabalho feito nas faculdades de medicina do país.

O XLIII Congresso Brasileiro de Educação Médica foi realizado em outubro de 2005, em Natal, Rio Grande do Norte. Estiveram lá representadas a maioria das escolas de Medicina do Brasil. Uma docente da IES, lócus de realização desta pesquisa, esteve presente para relatar suas experiências e trazer subsídios que facilitem as mudanças.

Por serem os principais sujeitos deste trabalho, maiores considerações sobre os professores de medicina acompanharão as discussões dos resultados.

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