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A escolha pela Narrativa e pelo Método de História de Vida

O CAMINHO FAZ-SE CAMINHANDO

3.3 Caminhante não há caminho, somente sulcos no mar

3.3.1 A escolha pela Narrativa e pelo Método de História de Vida

No segundo período do mestrado, decidi que adotaria a metodologia de pesquisa qualitativa, bem como que faria uso de narrativa, compreendida como uma prática discursiva de produção de sentido que se caracteriza não como a

representação de uma dada realidade, como se ela existisse antes de ser anunciada, e sim como produtora dessa realidade (VALENTIM, 2011). Desse modo, como afirmam Brockmeier e Harré (2003), não existe uma história pronta à espera de ser contado, o que põe em xeque a ideia da existência de um critério objetivo através do qual a veracidade da narrativa é julgada. Para esses autores, uma história é válida porque, ao ser narrada, em torno dela são produzidos significados.

Posteriormente, não sei ao certo em qual momento, fiz a escolha pela utilização do método de História de Vida, o qual se insere no corpo da abordagem biográfica9. O método de História de Vida possibilita estudar a vida de uma pessoa ou de um grupo por meio da utilização da narrativa oral da própria pessoa e de diferentes tipos de documentos, sem que para isso seja necessário abordar a trajetória inteira de vida, nem todos seus aspectos (BUENO, 2002).

A abordagem biográfica foi largamente utilizada e difundida nos anos de 1920 e 1930 pelos sociólogos da Escola de Chicago que, imbuídos do propósito de criar alternativas à Sociologia Positivista, afiliaram-se ao movimento mais amplo de mudanças e rupturas das ciências humanas em relação à influência que historicamente os métodos experimentais exerceram sobre suas formas de investigação dos fenômenos sociais. Esse movimento se iniciou nas primeiras décadas do século passado, segue até hoje e diz respeito não apenas à busca de novos métodos de pesquisa, mas, principalmente, a construção de novas possibilidades de conceber a ciência (BUENO, 2002).

Após esse período de popularidade, a metodologia biográfica caiu em quase completo desuso e apenas nos anos 80 voltou a ser utilizada, ganhando interesse e valorização crescente, principalmente por conta da necessidade de renovação metodológica da Sociologia, desencadeada pelos questionamentos ao seu caráter extremamente técnico, fundamentado no axioma da objetividade e na hegemonia da intencionalidade nomotética, e pela análise de que “as teorias sociais voltadas para as explicações macroestruturais não davam conta dos problemas, das tensões e conflitos que tomam lugar na dinâmica da vida cotidiana” (BUENO, 2002. p.17).

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Silva, Barros, Nogueira e Andrade de Barros, (2007), destacam quatro métodos dentro da abordagem biográfica: história oral, biografia, autobiografia e história de vida.

Para o sociólogo italiano Franco Ferrarotti (1991), uma das principais características da abordagem biográfica diz respeito à relação de implicação mútua entre pesquisador(a) e seus interlocutores e interlocutoras que, conforme defende, deve ser objeto de conhecimento e é de onde deriva a qualidade da investigação empreendida:

o observador está radicalmente implicado na sua pesquisa, ou seja, no campo do objeto da sua investigação. Este último, longe de ser passivo, modifica continuamente seu comportamento de acordo com o observador. Este processo circular de feedback torna ridícula qualquer presunção de conhecimento objetivo. O conhecimento não deve ter o outro por seu objeto; em vez disso, deveria ter por seu objeto a interação inextricável e absolutamente recíproca entre objeto e observador. Daqui advém um conhecimento mutuamente partilhado, enraizado na intersubjetividade da interação, um conhecimento tanto mais profundo e objetivo quanto mais integral e intimamente subjetivo. O preço a pagar pelo observador para obter este conhecimento minucioso, mais claramente um conhecimento cientÍfico do seu objeto, será o de reciprocamente ser conhecido por este último. O conhecimento torna-se assim no que a metodologia sociológica sempre desejou evitar: um risco (FERRAROTTI, 1991, p. 171-172).

Essa especificidade da abordagem biográfica implica a ruptura com a epistemologia científica clássica, caracterizada pela lógica formal e pelo modelo mecanicista (FERRAROTTI, 1991), e é onde se centra, segundo Silva et al., (2007), a crítica mais frequente a respeito do seu caráter científico. Baseada no processo etnológico de “transformar o familiar em exótico”, mencionado anteriormente, as autoras pensam que a estreita relação entre pesquisador(a) e interlocutor(a) não invalida ou torna menos científica a metodologia biográfica, pois

[...] a realidade, familiar ou inusitada, será sempre filtrada por um determinado ponto de vista do observador, o que não invalida seu rigor científico, mas remete à necessidade de percebê-lo enquanto objetividade relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa (VELHO, 1978).

A minha escolha pelo Método de História de Vida se deu principalmente porque, ao operar no interjogo entre a vida do individuo e o contexto social e histórico de sua existência, ele possibilita, ao mesmo tempo, a emergência de um sujeito capaz de narrar sua própria história e o aprofundamento da compreensão de fenômenos sociais e grupais (CARVALHO, 2003), articulando trajetória individual e trajetória social. Além disso, dado o caráter contingencial, aberto e maleável da

narrativa, o método de História de Vida possibilita dar ordem e coerência à fluida e variável realidade humana, como também alterá-la à medida que a experiência ou os seus significados se transformem (BROCKMEIER, HARRÉ, 2003).

Outro argumento defendido por Bueno (2002) para a utilização da biografia nos processos de investigação diz respeito à compreensão de que ela é uma microrrelação social, na qual aquele(a) que narra sua história sempre narra para alguém em uma tentativa de comunicação, ainda que seja com um interlocutor imaginário, como acontece nos diários íntimos. Assim, “a narrativa não é um relatório de acontecimento, mas a totalidade de vida que ali se comunica” (idem, 2002, p.20) e disso, segundo a autora, decorre o caráter de intencionalidade comunicativa da narrativa autobiográfica e o entendimento de que “toda entrevista é uma interação social completa, um sistema de papéis, expectativas, de injunções, de normas e valores implícitos, e por vezes até de sanções” (FERRAROTTI, 1988, p. 27 apud BUENO, 2002). Consequentemente, ainda valendo-me de Bueno, ao se fazer uso do Método de História de Vida, é necessário no processo de análise considerar o modo através do qual a narrativa foi produzida.

Além de desejar contar sua história, é o(a) narrador(a) quem decide o que vai contar, sem seguir uma ordem cronológica dos acontecimentos, de acordo com o que considera importante. Em função dessa particularidade Miranda, Cappelle e Mafra (2012) assinalam que é característico do Método de História de Vida considerar a descontinuidade o que, por sua vez, solicita do pesquisador(a), em suas análises, definir “núcleos de sentido” para os temas narrados e realizar as relações entre fatos, contextos e pessoas existentes ao longo do percurso de vida de quem narra sua história.

Nogueira (2004, p. 18) chama atenção para a contribuição que a História de Vida oferece para a pessoa que narra sua história: “a proposta de uma escuta comprometida, engajada, participativa, dentro de uma relação de cumplicidade, possibilita àquele que conta sua história experimentar uma re-significação de seu percurso [...], a construção de sentido”.