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3. CONSTRUINDO A PRIMAZIA DA VISUALIDADE NA SOCIEDADE

3.3 A escrita, a constituição da visualidade, e o direito: distinguindo alguns laços

A visualidade e a linearidade constituídas a partir da ampla difusão do texto impresso podem também ser apreendidas quando da observação do direito desde sua escrita, sua aplicação e sua auto-descrição.

Verifica-se que com a mediação da escrita foi possível, inicialmente, fixar normas jurídicas tornando-as visíveis pelas compilações14 e, posteriormente, a partir do século XIX, pelas codificações.

Uma tal fixação das normas parece ter sido crucial para a constituição do sistema jurídico em sua autonomia funcional e autopoiética, vez que o código operativo do sistema, i.e., a distinção direito/não direito, tem no direito posto o fundamento de sua legitimidade e de sua capacidade operativa.

Em outros termos, quando o sistema jurídico distingue em suas operações entre o que é e o que não é direito, o faz em referência ao um direito que é posto, positivado, e que deve poder estar sob os olhos de todos na forma de leis, decretos, emendas, jurisprudências.

Já no século XVIII, no desenrolar da Revolução Francesa, verificou-se o amadurecimento da idéia de codificar o direito no sentido de torná-lo mais simples e unitário, logrando fixar uma legislação capaz de superar o “caos” resultante da pluralidade das velhas leis.

A semântica jusnaturalista foi responsável, naquele momento, pela construção do sentido de uma autonomia jurídica fundada em um direito superior – o Direito Natural -, autonomia essa que iria consolidar-se pouco depois. Uma tal semântica argumentava, segundo nos diz Norberto Bobbio, que “[...] a natureza profunda, a essência verdadeira da realidade,

é simples e suas leis são harmônicas e unitariamente coligadas: por isto, também o direito, o verdadeiro direito fundado na natureza, podia e devia ser simples unitário” (1995: 65)

14 No Brasil, desde a colônia a meados da Primeira República, predominou como referência jurídica as

Ordenações Afonsinas (1500 a 1521), Manuelinas (1521 a 1603) e Filipinas (1603 a 1917), compilações de leis portuguesas realizadas sob as ordem dos monarcas que lhes emprestaram os nomes.

Será no século XIX, contudo, e sob a égide não mais do jusnaturalismo mas do juspositivismo, que a autonomia funcional do direito alcançará sua plena realização, e terá como marco o Código Civil Napoleônico de 1804.

Desde então, a positivação dos direitos na forma de leis legisladas e impressas, tornou- se importante ferramenta para a operação e reprodução do sistema jurídico. E a semântica juspositivista do direito que ainda hoje, em certa medida, conforma o direito em suas operações, promoveu a dogmatização da positividade, fazendo crer que “[...] a positividade

do direito é ...estatuída por força própria” (LUHMANN, 1985: 7).

Em sua auto-descrição, os sistemas jurídicos modernos afirmam a necessidade de serem vistos, tornados públicos quer em seus procedimentos decisórios ou quer em seus atos legislativos. Essa visibilidade, supõe-se confere a legitimidade de poder dizer o que é direito e o que não é direito.

A positivação, seja ela constituída por dispositivos normativos ou por atos decisórios (norma do caso concreto) confere essa visibilidade. No Brasil, mesmo que para certos atos decisórios estejam previstos procedimentos orais, haverá que se reduzir a termo aquilo que de mais importante produziu-se por essa oralidade.15 Via de regra, os procedimentos sob a forma escrita assumiram o status de única realidade a partir da qual poder-se-á extrair o direito.

A positivação do direito e sua decorrente visualidade tornaram-se possíveis uma vez que a linguagem oral, mais genérica, se “re-codificou” na forma de escrita. Por seu turno, a escrita do direito tornou-se realidade porquanto o direito diferenciou-se na forma de um sistema social (sistema jurídico) que se produz, auto-reproduz e autodefine-se (autopoiético, portanto) a partir de comunicações operadas desde o código de distinção direito/não direito, ou lícito/não-lícito, como se queira (LUHMANN, 1992:7).

A escrita conjugada a sua ampla reprodutibilidade pelo advento da imprensa possibilitou ao direito tornar-se um meio de comunicação especial, um código simbolicamente generalizado, i.e, um código cujo sentido é amplamente reconhecido como sendo prontamente mobilizável, em situações cada vez mais diversas e freqüentes, nas quais ele é sempre capaz de proceder a uma seleção seja para “sanar” um conflito entre expectativas normativas conflitantes, ou para estabelecer o que é e o que não é direito.

Assim é que, nas democracias contemporâneas, tem-se fixado como garantia constitucional que, não havendo uma lei (forma visível de uma norma) valorando

15 Tal assertiva pode ser confirmada na observação do processo trabalhista brasileiro, primeira modalidade que,

no ordenamento brasileiro, privilegiou a oralidade como forma de promoção de celeridade na prestação jurisdicional. Cf. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz, 1998.

negativamente uma conduta, instituindo-a como um delito, ninguém poderá ser punido por praticar tal conduta (não há o direito punitivo do Estado).

Como herança do século XIX, ainda hoje os códigos em cada um de seus de seus livros, títulos e subtítulos, bem como as leis extravagantes, têm seus dispositivos organizados em função de uma suposta lógica de encadeamento dos temas neles contidos. Frente a um caso concreto, subsume-se o fato à regra, de tal sorte que se tem a impressão que o jurista cumpre a função precípua de revelar através da lógica de ordenamento da letra do direito a lógica da realidade fora dela.

Também obedecendo àquela linearidade organizativa tão cara ao século XIX, toma-se como postulado a completude do ordenamento jurídico, i.e, a inadmissibilidade de qualquer lacuna. Assim, no ordenamento brasileiro tem-se que, em face a uma situação fática,

[...] “os sujeitos de direito, necessitando conhecer os padrões jurídicos que disciplinam a matéria, devem consultar, em primeiro plano, a lei. Se esta não oferecer a solução, seja por um dispositivo específico, ou por analogia, o interessado deverá verificar da existência de normas consuetudinárias. Na ausência da lei, da analogia e costume, o preceito orientador há de ser descoberto mediante os princípios gerais de Direito” (NADER, 2003: 193) Leis que afrontam a lógica da linearidade, negligenciando a observância do encadeamento pressuposto como necessário à boa exegese e aplicação da norma, são invariavelmente descritas como leis mal redigidas, quer pela incapacidade do legislador, quer por sua má-fé legiferante.16

Verificável também o caráter linear das normas processuais. O direito ao dizer o direto acerca de seu atos operativos (atos processuais) o faz de forma tão rigidamente linear que qualquer procedimento que fuja a essa rigidez é percebida com muita estranheza, até mesmo com muita suspeição. A linearidade não é apenas pensada como um desenvolver necessário em uma única direção, mas também em ultrapassar, uma a uma, etapas concebidas como inexoravelmente encadeadas.

Assim, ao operar-se a supressão de etapas já consagradas na processualística – ainda que em nome de princípios jurídicos igualmente consagrados tais como que os da economia e celeridade processuais – tal operação é descrita como afronta à segurança jurídica, vez que compreendida como ilegal, de uma ilegalidade passível de duras sanções penais17.

16 Tal é o que se verifica, segundo especialistas, em relação a Lei 11.101 de 2005 (Nova Lei de Falências). 17 Lembro aqui o recente episódio envolvendo o ex-vice-presidente do TRF da 2ª Região, emérito professor

À perspectiva rigidamente linear do direito, à produção de semânticas que reafirmam o encadeamento lógico e unidirecional dos dispositivos legais no interior de um dado ordenamento jurídico concorrem não só as legislações, as jurisprudências e as doutrinas. Também a boa Filosofia do Direito oferece seus conteúdos informativos nesse sentido.

Ronald Dworkin, por exemplo, buscando aprofundar as relações entre construções literárias e direito, propôs a criação de um gênero literário artificial, o “romance em cadeia”, no qual cada juiz seria um escritor na corrente de construção do “romance”, funcionando ao mesmo tempo como autor e crítico, interpretando tudo o que, no passado, escreveram os juízes em seus julgados, objetivando formar uma opinião do que esses juízes fizeram coletivamente (DWORKIN, 1999:275-276).

Esse “juiz Hercules” dará continuação a uma história que vem sendo escrita ao longo do tempo. Tanto ele quanto seus colegas contemporâneos terão a responsabilidade de projetar essa história no futuro tendo como base um conjunto coerente de princípios sobre justiça, eqüidade e devido processo legal os quais, na medida do possível, serão aplicados aos novos casos (DWORKIN, 1999:291).

Esse direito, entendido como “integridade”, traz implícita a idéia de uma unidade necessariamente construída por uma conexão unidirecional de todas as inúmeras decisões, convenções e práticas que os juízes vêm produzindo ao longo do tempo, em uma dada sociedade.

Finalizando, vale lembrar, todas aquelas interpretações resultantes de outras observações de segunda ordem acerca do direito e atualizadas em textos sociológicos, antropológicos, jornalísticos, literários, artísticos...; muitos deles também concorrem para a difusão dessa linearidade do direito.

3.4 A escrita hoje e as novas tecnologias de aperfeiçoamento da visualidade: