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I. CARTOGRAFIAS E LABIRINTOS

1.3. A escrita-fragmento

Num exaustivo estudo dedicado à questão da fragmentação do sujeito em alguns autores da literatura portuguesa no século XX, Pedro Eiras analisa o confronto entre a escrita e a recepção do texto, e a forma como o compromisso da leitura obriga a uma reconfiguração dos sistemas para uma nova dialéctica sistémica:

Contra a organização do texto a partir de isotopias semânticas e do fechamento em sistema, o texto fragmentado experimenta soluções de heterogeneidade e incompletude, obrigando a um protocolo de leitura específico. O texto é um compromisso, mais do que uma oposição, entre fragmentação, heterogeneidade, diacronia da leitura e totalidade, isotopia, sincronia do sistema. Nesta dialéctica, cabe a cada leitura privilegiar uma ordem de efeitos em detrimento de outra, criando um texto sistemático ou fragmentado: não há qualquer texto fragmentado

ou sistemático em estado puro, a fragmentação e a totalidade são sempre relativas; a

leitura, todavia, não cria a totalidade ou a fragmentação ex nihilo, mas salienta no texto um jogo de compromissos pré-existente. (EIRAS, 2005: 35)

Yara Frateschi Vieira equaciona o modo como a dialéctica escrita-leitura exige, em Rui Nunes, uma inusitada predisposição íntima por parte do leitor:

Os romances de Rui Nunes exigem uma atenção semelhante à que nos obriga a linguagem poética: supõem no leitor participação ativa na decifração, mas também a entrega, o envolvimento, a imersão no fluxo da linguagem e dos eventos, a reconstrução, quase que palavra por palavra deste universo ficcional, que realiza a singular proeza de conciliar um olhar lúcido e implacável sobre o mundo com uma adesão e compaixão visceral. Essa conciliação revela-se na atenção aos sinais da miséria e da destruição, da condição humana no tempo, na experiência do desmesurado, do insuportável, da falta, da falha, que pontilha um texto de outra forma económico em adjectivação; ela emerge, também, por vezes, em chave metadiscursiva, no fluxo de consciência das personagens ou de um discurso supostamente autorial (…) (VIEIRA, 2005: 158)

Vieira apura a complexidade metadiscursiva e metapsicológica presente nas narrativas nunesianas e dá conta do compromisso que o leitor tem de firmar consigo próprio perante uma escrita de cariz hiperbólico e fragmentário quer no que concerne à diegese, quer no que respeita às personagens e aos espaços, passando pelo modo como se institui o discurso em estilhaços. Os episódios, sobretudo em Cães, assomam de forma desarticulada e alucinante, com personagens e situações várias que extrapolam um conceito tradicional de diegese. Em A Boca na Cinza o vaivém de monólogos interiores e diálogos enforma uma vertiginosa e perturbadora viagem que se entende por analepses e prolepses no domínio da memória e de um exercício metapsicológico. Em

da falta e da solidão, e que se erige, tal como em A Boca na Cinza, por meio de um discurso vertiginoso, seguido e sem grandes marcas gráficas, além das vírgulas e dos poucos pontos finais. Vejamos os seguintes exemplos:

mãe, fala continuamente, não interrompas esta protecção, ou melhor, hoje, era isso que eu queria quando era pequena, bem, pequena ainda sou, tanto quanto era, mas velha, a vida cresceu e eu não, mirrei com a vida que me cresceu, há vidas assim, “menina, ficaste aí, pasmada?”, o esquecimento parou frente a mim, acontece-me tantas vezes, tudo pára, tudo o que pára, pára para os meus olhos estarrecidos, abertos para o desenho das coisas (NUNES, 2003: 71-72)

um único acontecimento que se esquece é no tempo um vazio que se cria. Pouco a pouco os mortos, como manchas de tinta, apagam o quadro. Já nada sei da tua cara, houve um dedo que traçou na almofada a ausência do teu perfil, e é tão exacto o sítio que não és, que fecho os olhos, para não ver o roubo. Volto-me na cama para a luz da porta: o ar não é transparente: as coisas projectam nele o seu mal, os escolhos, uma poesia que me cobre imperceptível, ventos da sepultação, querer lembrar uma boca, uns dedos, e não conseguir, tudo fugiu dos olhos e da voz, (NUNES, 1999: 75)

Ao longo destas transcrições de Cães e de A Boca na Cinza, conseguimos captar alguns elementos que vão ao encontro de uma escrita fragmentária visto que estão intrinsecamente ligados a um percurso ontológico estilhaçado, como é o da desmemória, refém da passagem do tempo (Cães), e o de uma compleição física parcelar, residual (A

Boca na Cinza). A construção de cariz predominantemente paratáctico, com constantes

ligações coordenativas por meio da vírgula, marca o vertiginoso pulsar de imagens e memórias que assomam aquando de um exercício mnemónico, sobretudo se intimamente associada ao pulsar frenético de quem procura, nos fiapos de memórias, um sentido para o presente. Em ambos os exemplos, este turbilhão de imagens, desencadeadas pelas mnemónicas, surge representado por meio deste recurso à parataxe, além da introdução constante de novas sub-orações, por meios dos dois pontos, marcas textuais que instituem desde logo um ritmo sincopado.

A fragmentação discursiva e tipológica dos lugares e das personagens enforma a instituição de elementos novos que causam um profundo estranhamento na recepção destes textos. Se atentarmos em cada uma das obras nunesianas seleccionadas encontramos, numa visão global, fiapos de narrativas, facto mais visível ainda em Cães do que em A Boca na Cinza. Vejamos o pequeno resumo que Yara Frateschi Vieira nos apresenta no excerto que se segue:

o homem a quem morreu uma mulher velha e doente, o homem a quem morreu o companheiro (o mesmo, talvez), o rapaz que sobe ao 13º andar e de lá dispara uma

carabina ao acaso sobre pessoas na rua, a mulher que se mata na casa-de-banho, os negros que vivem na periferia da cidade. (VIEIRA, 2005:161)

Esta série de quadros narrativos surge apresentando de forma estilhaçada, sem elementos que os articulem numa coerência diegética. Por isso, Vieira acrescenta:

O estilhaçamento narrativo estende-se às pessoas, que não são apresentadas como um corpo inteiro, mas como pedaços desconexos ou desmesurados, um olho, uma mão, a boca. A sensação provocada é a de desumanização, de um mundo “desmesurado” para as medidas humanas, do olhar que se aproxima excessivamente e perde portanto a distância que possibilita apreender o todo, a harmonia e a beleza (VIEIRA, 2005:161).

Contudo, não consideramos que o olhar em close-up que amplia exaustivamente os lugares e os objectos seja a causa da impossibilidade de observação desse todo, da harmonia e da beleza, mas sim a consequência da desmemória provocada pelo despovoamento, pela falta, pela velhice, pela doença e pela solidão que incitam à perscrutação de fragmentos dos objectos e dos lugares da memória, tal como podemos aferir pelo seguinte exemplo:

os teus lugares:

olho a cadeira onde te sentavas e digo: tu, olho um livro que foi teu e digo: tu, mas já não me lembro de ti, o que ainda continuamente cresce é a retirada do teu rosto, quero dizer: todos os lugares se tornaram nos de tu não estares, tudo é a tua ausência, (NUNES, 1999:139)

Em A Boca na Cinza encontramos a linearidade ontológica dos dois protagonistas, Sara e Abel, que padecem de uma defeituosa condição física que os assombra ao longo de toda a narrativa: o nanismo. O seu percurso é o do agrilhoamento quotidiano, o de uma existência parcelar e inibidora que os constrange sobremaneira e que os leva a um constante exacerbamento de desumanização, e toda a narrativa é povoada por esse doloroso constrangimento. No caso de Sara e Abel, nem a memória do passado lhes traz algum alento, pelo que o seu pathos é o de um inexpugnável corpo grotesco, anormal, do qual nunca puderam nem poderão libertar-se. A fragmentação discursiva de A Boca na Cinza é cúmplice, desta feita, de dois corpos estilhaçados, e de uma extrema verosimilhança instaurada por uma visão, por parte dos dois irmãos, que apreende o mundo de forma parcelar, bem rente ao chão, e que é mimetizada pelos constantes zooms de lugares baixos no corpo e no mundo. Sara, perante um corpo normal e consciente do seu corpo fragmentário e grotesco, afirma: ((…) Qualquer corpo

foi para mim exorbitante, / bocado a bocado não se faz um corpo, mas uma deflagração) (NUNES, 2003: 65).

Estes elementos remetem o leitor para um envolvimento íntimo com a dor conferindo-lhe (à dor) múltiplas ressonâncias e catapultam-na para uma dor universal – tal como foi universal o Holocausto ou o Onze de Setembro –, mas de uma forma mais intrínseca, pejada de detalhes que chocam e que arrastam o leitor para uma dimensão fenomenológica da dor:

Esta vivência da experimentação perceptiva e da dor provoca no sujeito (no da

escrita como no da leitura) aquilo que em medicina se designa por ausências: a

perda de referências «laterais» no espaço ou no tempo produz um efeito de desorientação psicológica que se repercute no desequilíbrio. Esse desequilíbrio psicofisiológico, insustentável, exige uma rápida compensação, sob pena de o organismo se desorganizar de modo irremediável: aqui, a polifonia dramática funciona como registo do «lateral», do conjunto em que o subjectivo se inscreve ou de que se destaca, constitui as referências indispensáveis. (RITA, 1997: 240, sublinhado nosso)

A questão do sujeito nunesiano é outra das questões que urge assinalar. Bastas vezes ao longo das narrativas – ora com um tom aforístico, ora com descrições fortemente narrativas, ora com laivos intensamente líricos –, as personagens assomam metamorfoseadas em entidades tangenciais entre a narrativa e a lírica. O seguinte exemplo valida os orvalhos poéticos que povoam a escrita de Nunes:

- tenho sono, pouco a pouco fico cheio de sono, até só ouvir o sono, mas há outras palavras ressoantes na sua margem, e essas impedem-me de dormir, porque são nomes cheios de outros nomes, até à escuridão, (NUNES, 1999: 68).

Dada esta complexa interiorização exacerbada da dor e da solidão, as personagens verbalizam o que, num discurso corrente, seria irrealizável verbalmente, pelo que nos oferecem complexas enunciações e pontos de vista, pejadas de uma forte componente poética e meta-reflexiva, a par com um estranho encadeamento, tal como aferimos acima. Por estas razões, e pese embora o extravasamento das fronteiras da personagem-carácter com um discurso que faz avançar ou estagnar o fluxo diegético, e num registo de discurso directo ou indirecto55, resolvemos nomear as personagens do

corpus em estudo simplesmente personagens, sobretudo porque entendemos alhearmo-

nos de uma qualquer pretensão do estabelecimento de desvios terminológicos no domínio dos padrões de narratologia já estabelecidos.

Estas entidades que, estrategicamente – e porque nos pareceram redutoras todas as sub-denominações da personagem nos seus diferentes estatutos na narrativa –,

denominámos apenas personagens, assumem um lugar demiúrgico na narrativa, pois encontram-se num patamar psicológico e fenomenológico da dor e extravasam o domínio do visível, para se situarem numa tangencialidade entre o verbalmente inteligível e uma complexidade metapsicológica e metadiscursiva quase indecifrável. A própria compleição fragmentária das personagens dá-lhes uma inominável caracterização, e faz diluir metamorficamente a personagem no espaço, sem que muitas vezes consigamos deslindar a separação de ambos56, como se de uma pintura de Escher se tratasse. Por isso, exerceremos, sempre que necessária, uma análise em torno das

tonalidades das personagens, as quais vestirão bastas vezes uma compleição

miscigenada e ambígua.

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