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A especificidade do Estado no capitalismo

3. A teoria derivacionista do Estado

3.1 A especificidade do Estado no capitalismo

Conforme apontamos anteriormente, a concepção de “Estado-instrumento da classe dominante” foi difundida a partir de certas correntes do pensamento marxista. Também mencionamos que essa visão tem suas raízes em concepções engelsianas, leninistas e revisionistas de Estado (com nuances que as diferenciam entre si), mas que o impulso decisivo para a difusão dessa doutrina se deu por meio do stalinismo e da influência da União Soviética ao redor do mundol. A expansão de tais teorias atingiu inclusive o Brasil, conforme indicado anteriormente.

Na década de 60, despontavam discordâncias em relação à concepção instrumentalista acima referida, com destaque para as que foram apresentadas por Habermas, Offe, Poulantzas e Miliband, que estão justamente no centro das críticas dos pensadores do derivacionismo alemão, cujo objetivo era avançar na compreensão sobre a relação existente entre o Estado e o processo de acumulação capitalista, proposta que abrangia o estudo dos limites da intervenção estatal nas situações de crise.

O caminho adotado pela teoria da derivação partia da premissa de que era insuficiente relacionar o conteúdo da atividade estatal e do Direito com os interesses da classe dominante141, ou ainda explicar as funções do Estado apenas a partir da luta de classes e predomínio de uma delas. Assim, o derivacionaismo – rejeitando a concepção de Estado como um aparelho genérico de dominação de classe – partia da análise da natureza das relações de produção capitalistas, mais precisamente, do estudo das categorias econômicas de Marx – utilizadas para explicar o capitalismo – derivando destas o Estado, e explicando sua forma política142 particular, ou seja, existente apenas nesse modo de produção.

A teoria da derivação, portanto, procurava mostrar o Estado como algo próprio de um momento histórico, um ente dotado de características específicas a partir da modernidade, o que significava mostrá-lo como decorrente das particularidades do processo de acumulação que constitui o modo de produção capitalista. Joachim Hirsch explica que o passo teórico do debate da derivação do Estado consistiu justamente em tratar do desenvolvimento teórico da forma política na sociedade capitalista explicando como e porque surgem os Estados e assim responder à seguinte indagação143

: por que, no capitalismo “a comunidade política, o Estado, assume de fato uma configuração separada da sociedade e das classes sociais, e que consequências isso tem para o desenvolvimento das instituições e dos processos políticos”144?

Conforme veremos ao longo de nossa exposição, a teoria da derivação examinou a forma do Estado no capitalismo, que não encontra precedentes exatos nos modos de produção anteriormente existentes. Tornemos mais clara nossa exposição: no capitalismo o domínio de uma classe por outra, materializada na exploração econômica existente,

141 Sol Picciotto destaca ainda o fato de o debate jurídico, equivocadamente, não conseguir estabelecer uma discussão sobre o Direito que vá além da dicotomia coerção/consenso, abrangendo, por exemplo, uma explicação sobre “qual forma de coerção está envolvida e como o consenso é obtido”. The theory of the state, class struggle and the rule of law. FINE, Bob et al (eds.). Capitalism and the rule of law: from deviancy theory to Marxism. London: Hutchinson, 1979, p.165.

142

Cf. HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol. Introduction: towards a materialist theory of the state. op. cit., p.2.

143 Conforme veremos adiante, Hirsch afirma que esta questão fundamental foi colocada pelo jurista soviético Pachukanis, numa formulação que se tornaria consagrada: “Porque que é que o domínio da classe não se mantém naquilo que é, a saber, a subordinação de uma parte da população a outra? Porque é que ele reveste a forma de um domínio estatal oficial, ou, o que significa o mesmo, por que é que o aparelho de coação estatal não se impõe como aparelho privado da classe dominante, por que é que ele separa desta última e reveste a forma de um aparelho de poder público impessoal, deslocado da sociedade?” (PACHUKANIS, Evgeni B.

Teoria geral do direito e marxismo (Trad. Sílvio Donizete Chagas). São Paulo: Acadêmica, 1988, p.95).

adquire uma forma distinta em relação aos demais modos de produção. Altvater, cuja teoria será mais bem explicada (e criticada), afirma, por exemplo, que “[...] a forma adequada do Estado no capitalismo é [...] sua existência particular contra os capitais individuais e não como uma ‘ferramenta dos monopólios’”145 (uma tese que se opõe diretamente às teses da teoria do Capitalismo Monopolista de Estado).

Tem-se, assim, na teoria da derivação, como ponto comum, a tentativa de mostrar que tanto a forma econômica, quanto a forma política, no capitalismo, são distintas entre si e em relação às existentes em outros modos de produção. Isso significa explicar porque no capitalismo o Estado necessariamente existe diante de uma “separação” (na realidade, uma “separação-na-unidade”146), estruturando, portanto, dois âmbitos – econômico e político – que anteriormente (no escravagismo e no feudalismo) se apresentavam numa espécie de unidade. Além disso, trata-se de compreender como essa separação impacta as próprias funções desempenhadas pelo Estado e também o exercício do poder – dentro e fora do Estado – no interior de uma sociedade assim organizada, afinal, as instituições estatais – o espaço político, portanto – ganham certa autonomia em relação ao poder da classe dominante. A abordagem desta questão, no entanto, será feita de maneira diferente daquela feita por Poulantzas.

A teoria da derivação, a exemplo do pensamento poulantizano, mas discordando dos métodos e ideias deste pensador, pretende seguir os passos formulados por Marx147, segundo o qual as formas políticas poderiam ser entendidas apenas por meio da anatomia da sociedade civil. Entretanto, no caso da teoria da derivação, isso significa não adotar como ponto de partida categorias puramente políticas (como faz Poulantzas), mas sim categorias econômicas (valor, mais-valia, acumulação, mercadoria, capital etc.) marxianas, derivando destas a forma e função do Estado. Assim, a referida separação do político e do econômico não será pensada como fruto de um acaso ou de contingências históricas, mas do próprio modo como as relações sociais se constituem na economia capitalista (o que ensejará acirrados debates sobre o papel da luta de classes e o peso das ações estritamente políticas na manutenção e modificação da ordem constituída). Veremos ainda que para

145 ALTVATER, Elmar. Some problems of state interventionism. In: HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol (ed.). State and Capital: A Marxist Debate. London: Edward Arnold (Publishers) Ltd, 1978, p.42.

146 Cf. HOLLOWAY, John. From scream of refusal to scream of power: the centrality of work. In: BONEFELD, Werner; GUNN, Richard; PSYCHOPEDIS, Kosmas (eds.). Open Marxism. London: Pluto Press, 1995, v. 3, p.168.

147

MARX, Karl. Para a crítica da economia política (Trad. Edgard Malagodi). In: FLORIDO, Janice. Marx. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Coleção Os Pensadores), p.51.

alguns pensadores, uma formulação teórica a respeito do Estado deve levar em conta necessariamente o conceito de forma jurídica, que consequentemente deve ser estudado com as ideias de forma mercantil e forma política.

Conforme explica Hirsch, para a teoria da derivação, entender as especificidades do Estado no capitalismo, significou compreender a dinâmica própria – distinta historicamente – que a política e a luta de classes possuem nesse modo de produção148 e, consequentemente, os caminhos para extinção deste. Müller e Neusüß, por sua vez, iniciando o debate, afirmavam que partiriam das “qualidades especiais particulares” da relação de capital para explicar “em detalhes a conexão entre relações econômicas e formas políticas, entre economia e luta política”149, bem como as particularidades do Estado no capitalismo. Vejamos, então, a argumentação desenvolvida por estes dois autores.