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A esteticização da graça no Renascimento italiano

No documento Schiller e Kleist, a propósito de graça (páginas 103-124)

É precisamente no campo magnético entre descrições dos conceitos de liberdade e de natureza que se vai situar a tentativa de definição de graciosidade, à qual os renascentistas italianos – refiro-me, entre outros, a Giorgio Vasari1, Benedetto Varchi2, Agnolo Firenzuola3, Ludovico Dolce4, Gio Lomazzo5 e Federico Zuccaro6 - conferem, nos seus tratados de estética, uma importância muito particular, mais uma vez em clara distinção relativamente ao conceito de beleza, criando, aliás, os alicerces para uma moderna concepção de gosto. Estes tratados, publicados na sua maioria na segunda metade do século XVI e assumindo funções essencialmente pedagógicas, revelam por um lado um desejo de restaurar uma cultura assente em modelos clássicos7 e, por outro, uma assimilação de valores cristãos aplicados à expressão artística. Nesse sentido, torna-se plausível que neles a ideia de graça se destaque como referência digna de alguma atenção, previsivelmente sintetizando as significações da charis grega e da graça cristã numa categoria estética que se define essencialmente por uma projecção sobrenatural no objecto de arte, nem sempre equivalente à beleza.

Na necessidade de estabelecer conceitos para uma crítica de arte, os humanistas recorreram, em grande parte, à retórica clássica, nomeadamente a Quintiliano e Cícero, importando as suas regras e descrições. No que respeita à definição de graça na arte, Quintiliano inspirara-se, por seu lado, em Plínio o Velho que, no seu comentário sobre a arte de Apeles, já estabelecera uma decisiva diferença entre graça e beleza:

A graciosidade [venustas, no original] da sua arte manteve-se sem rival, embora vivessem no seu tempo os maiores pintores. Ele podia admirar as suas obras, admirando toda a sua beleza e contudo observando que lhes faltava a graciosidade [venustas], a que os gregos chamam charis, (…) Quando admirava uma obra de Protógenes, reveladora de um imenso engenho e de uma

1 Le Vite de’ più eccelenti architetti, pittori e scultori italiani, 1550. 2 Della maggioranza e nobilità dell’arti, 1546.

3 Discorsi della Bellezza delle Donne, 1541. 4 Dialogo della Pittura intitolato L’Aretino, 1557. 5 Trattato dell’arte della pittura,1584.

6 L’Idea de’ scultori, pittori ed architetti, 1607.

ansiosa [anxiae] elaboração, ele dizia que, embora Protógenes lhe fosse igual ou mesmo superior em tudo, havia um ponto no qual ele o superava: o de saber quando tirar as mãos da pintura; um preceito memorável que nos diz que demasiado cuidado é frequentemente pernicioso.8

Quintiliano, ao fazer referência a este comentário de Plínio, substitui venustas por gratia (“ingenio et gratia, quam in se ipse maxime iactat, Apelles est

praestantissimus”9), processo também adoptado por grande parte dos autores do renascimento aqui referidos. Giovanni Battista Adriani, por exemplo, na carta que prefacia a obra de Vasari acima citada, parafraseia a afirmação de Plínio, traduzindo a

venustas latina primeiro por leggiadria, mas preferindo também optar pela noção de grazia:

Este [Apeles] foi extraordinário nas suas graciosas obras; e acontece que na época existiam vários mestres excelentes que ele frequentemente comentava e admirava. Contudo, dizia que a todos faltava essa delicadeza [leggiadria, no original] a que entre os antigos gregos e entre nós se dá o nome de graça [grazia]. 10

Cícero, como já vimos no primeiro capítulo, também associava a graça retórica, a venustas, à simplicidade e àquilo a que chamava “negligência estudada”11, reconhecendo embora que esta não podia ser induzida pelo estudo e pela aplicação de regras. Similarmente, Quintiliano admite que a graciosidade na arte retórica, “quer seja no sentido, quer seja na sonoridade das palavras” consiste precisamente “na variedade

8 Plinii Secundi, Naturalis Historiae, XXXV, 79, in The Elder Pliny’s Chapters on the History of Art, (ed.

bilingue) trad. K. Jex-Blake, Chicago, Ares Publishers, 1976, p. 120/121. Pode dizer-se que ‘venustas’ significa verdadeiramente graciosidade, uma vez que traduz charis, embora contemplando exclusivamente a vertente estética ou retórica, secular portanto, desta palavra. A propósito de Apeles e de Protógenes, Plínio conta também uma história passada entre estes dois pintores e que revela em ambos a busca da graciosidade: Apeles terá um dia viajado de longe para conhecer Protógenes no seu atelier. Lá chegado, só encontrou uma mulher que guardava uma tela vazia colocada no cavalete e que lhe pediu para deixar o seu nome. Apeles pegou num pincel e desenhou uma linha de extrema delicadeza na tela, saindo sem dizer mais nada. Quando Protógenes regressou ao seu estúdio, percebeu imediatamente que só Apeles poderia lá ter estado e desenhou uma outra linha, ainda mais delicada. Apeles, que voltou ao estúdio para encontrar Protógenes, não o encontrou mas deparou-se com a segunda linha, reconhecendo nesta maior delicadeza do que na sua e finalmente, para encerrar a disputa, desenhou uma terceira linha de delicadeza imbatível. Quando Protógenes a encontrou, admitiu a sua inferioridade e correu para o porto para encontrar Apeles. Ambos concordaram em deixar este quadro à posteridade, “uma maravilha para todos, mas especialmente para artistas”. Contudo, como constou a Plínio, este quadro foi destruído no primeiro incêndio da casa de César no Palatino. Cf. ib., XXXV, 81-83. O apuramento da linha, aqui relatado, é claramente um atributo da graciosidade. Hogarth, possivelmente conhecedor deste episódio, desenvolverá esta ideia.

9 Marcus Fabius Quintilianus, Intitutionis Oratioriae, XII, 10,6. Ed. consultada: Ausbildung des Redners

(edição bilingue), Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1995³.

10 Giovambatista Adriani, “Lettera” in Vasari, op. cit., vol. 1, p. 32. 11 Cf. capítulo 1, p. 64.

que resulta do desvio da via recta e do afastamento do uso habitual da linguagem”12. Descrições como esta eram bem-vindas aos renascentistas italianos que, na busca de conceitos fortes para as suas descrições de arte, acolheram com particular entusiasmo este novo conceito de grazia. Embora sem definição clara, permitia um conjunto de associações interessantes estimulantes para o debate estético, nomeadamente, as ideias de simplicidade, de naturalidade, de superação do plano das regras e do habitual, de apelo às emoções e de criatividade. Integrada a graça na esfera do discurso puramente estético, tratava-se agora de estudar a sua relação com a beleza, de definir se a graça se opõe à beleza ou se, como defendia Vasari, só a graça assegura a (verdadeira) beleza13. Tal questão insere-se num conjunto de problemas a que as teorias estéticas do século XVI pretenderam dar respostas: se a proporção é bela em si ou apenas quando é útil, se as formas são belas em si ou se as ideias nelas contidas as tornam belas, se a beleza é percepcionada através da razão ou antes através da intuição e dos sentidos e, finalmente, se o que determina a beleza é a harmonia da proporção ou a incomensurável graça. Embora a última questão seja aquela que mais directamente diz respeito ao presente trabalho, não se pode avaliá-la sem ter em linha de conta as outras, principalmente a segunda e a terceira. Na óptica da estética tradicional, anterior à intervenção da noção de graça enquanto ambição estética, as coisas eram consideradas belas em si, num juízo determinado pela razão. Dúvidas levantadas acerca dessas convicções devem-se essencialmente à forte influência de concepções neoplatónicas sobre os autores dos tratados. Se as leis da harmonia e da proporção integravam uma argumentação estética com origem platónico-pitagórica, dando pouco lugar a categorias menos palpáveis como a graça, esta já ganha outra dimensão num enquadramento neoplatónico ou plotiniano da beleza.

Mas o passo determinante e verdadeiramente inovador para a estética italiana da primeira metade do século XVI quanto à definição da graça foi, efectivamente, dado por um conde italiano, curiosamente numa obra em que não pretendeu fornecer uma teoria da arte. Baldassare Castiglione, no seu livro Il Cortegiano publicado em 1528, apresenta quanto muito uma estética da vida, na qual a graça (estética) adquire um destaque determinante por representar a qualidade por excelência do cortesão perfeito. A sua

12 Quintiliano, op. cit., II, 13, 11. O afastamento da linha recta como característica da graça estética, será

retomada e radicalizada, como veremos, no capítulo seguinte, na estética de William Hogarth.

13 Tal discrepância pode resultar de um duplo entendimento de beleza, quer com um sentido mais restrito

e, nesse caso, opondo-se à graça, quer num sentido que abrange a graça, enquanto “verdadeira” beleza. Esta ambiguidade do conceito de beleza já foi aqui debatida a propósito de Plotino (Capítulo 2, p. 84 e segs.).

argumentação passa, como seria de esperar, por uma secularização do conceito, ainda que conservando algum do seu mistério convencional. Seguindo a tradição platónica do simpósio, esta obra em quatro livros consiste numa conversa entre figuras historicamente reais e conhecidas do renascimento italiano, que jocosamente trocam opiniões acerca do que distingue o “cortesão ideal”, entretendo-se com esta conversa até ao raiar do dia. Na sua primeira intervenção, o conde Ludovico da Canossa (iniciador do jogo de construção do cortesão ideal), interpelado pela anfitriã, a duquesa Elisabetta Gonzaga, acerca dos segredos que determinam um bom cortesão, nega possuir ou poder transmitir tal conhecimento, afirmando que a aquisição de tal excelência é uma graça concedida que, consequentemente, não está nas suas mãos:

É verdade que, porque foram favorecidos pelos astros ou pela natureza, alguns homens nascem dotados com tal graça que até parecem não ter nascido, mas sim formados pelas mãos de algum deus e adornados com uma imensa excelência da mente e do corpo; vejam, por exemplo, Don Ippolito d’Este, cardeal de Ferrara, que de tal maneira usufruiu dessa feliz nascença que a sua pessoa, o seu aspecto, e todas as suas acções estão imbuídas e regidas por essa graça, de modo que, embora seja muito jovem, evidencia entre os mais velhos e mais dignitários eclesiastas uma tal autoridade que mais parece estar habilitado a ensiná-los do que a ser ensinado. Da mesma forma, quando conversa com homens e mulheres de qualquer estrato social, no jogo, na risota, na brincadeira, mostra um tal garbo e modos tão charmosos [un tale charme, no original] que qualquer um que fale com ele ou que simplesmente o veja é praticamente coagido a achá-lo sempre adorável. 14

Demarcando-se claramente de um discurso cristão, cuja graça sobrenatural é concedida a todos os homens, Castiglione reaproxima-se aqui da concepção antiga de

charis dispensada a “alguns homens (…) pelas mãos de algum deus” concedendo-lhes,

tal como em Homero, a autoridade e a capacidade de atrair o afecto. Mas, à parte disso, mantém-se fiel à tradição, quer clássica quer cristã, de que a graça é um dom que vem

14 Baldassare Castiglione, Il Cortegiano, Milano, Rizzoli, 1993, Livro I, 14. Como base para a transcrição

portuguesa aqui e daqui em diante, serão, para além do original, usadas duas versões em língua inglesa: a tradução de 1959 feita por Charles S. Singleton (The Book of the Courtier, New York, Anchor Books) a partir do manuscrito italiano da Biblioteca Laurentina em Florença e, paralelamente, a tradução de Sir Thomas Hoby, datada de 1562, tal como foi editada por Walter Raleigh (Londres, David Nutt Publisher, 1900, versão online em: http://darkwing.uoregon.edu/~rbear/courtier/courtier1.html 24.5.2006). Refira-se que esta primeira tradução da obra teve um sucesso estrondoso em Inglaterra, levando a que, num curto espaço de tempo, circulassem nada menos do que dezassete versões deste texto na corte isabelina, na qual, de resto, saber falar italiano passou a ser considerado “a graça das graças”. A versão alemã, por seu lado, foi publicada no ano de 1566, por Laurentzen Kratzer, sob o título: Hofman. InWelsch der

Cortegiano genandt/ Ein schön unterricht/ wie sich ein ieglicher/was stands der sey/ verhalten soll/ damit er ein volkomelicher hofman genandt werde, Munique, bey Adam Berg, 1566.

de fora – seja da natureza, seja das estrelas, seja de algum deus - não podendo portanto resultar do labor pessoal. Contudo, depois desta consideração, o discurso do conde prossegue com um estratégico “mas”, abrindo caminho para uma desejada alternativa para os não-agraciados: a possibilidade de produzir os efeitos da graça (pois é disso que aqui se trata) por acção humana.

Mas, para voltar ao nosso assunto, digo que existe maneirade encontrar um meio-termo entre esta graça suprema, por um lado, e aquela inépcia estúpida, pelo outro, e que aqueles que não são tão perfeitamente dotados pela natureza, podem, com dedicação e esforço, polir e em grande parte corrigir os seus defeitos naturais. Portanto, à parte do nascimento nobre, eu desejaria, nesse aspecto, que o cortesão fosse favorecido não apenas com talento e beleza de aspecto e de pessoa, mas com uma certa graça a que eu chamo um ‘ar’ [“sangue” em italiano], que o tornasse aprazível e adorável à primeira vista por todos que o vissem.15

Afinal, tendo em vista os efeitos pretendidos –sumariamente, agradar, seduzir, ser-se amado - a graça de origem divina, a incontrolável “graça suprema” não só não é exclusiva como pode passar para segundo plano em nome de uma “certa graça” secularizada, imanente e susceptível de ser produzida através de um trabalho, ainda que, curiosamente, tal como na visão cristã, apresentada como um correctivo para uma natureza defeituosa16. A dicotomia natureza/divino, postulada pelo discurso cristão, cujo segundo termo fornece a graça que nos salva do destino determinado pelo primeiro, parece encontrar aqui uma alternativa numa dicotomia que opõe a natureza não ao divino mas a uma instância humana com poderes semelhantes. Por seu lado, o carácter antinómico do par natureza/divino, absolutamente fulcral em termos cristãos, perde-se aqui completamente, na medida em que estes dois termos passam a participar indiferentemente da mesma ordem daquilo que é determinado à nascença e que apenas contempla alguns. A partir daqui, todo o discurso do conde gira em torno do louvor da graça para a obtenção desse poder social, mas à medida que por um lado alimenta a esperança do fabrico da graça, não deixa de sublinhar o seu carácter impalpável e alheio à vontade humana, de modo a provocar uma certa apreensão entre os seus

15 Id., ib., Livro I, 14.

16 Nesta oposição entre “graça suprema” e “certa graça”, ou entre cortesão natural e cortesão ideal, e

tendo em vista que todo o livro irá debruçar-se sobre o fascínio exercido por este segundo, em subplantação do primeiro, prefigura-se já a oposição estabelecida por Schiller entre uma primeira e uma segunda natureza, leia-se natureza ideal ou cultura, constituída mediante uma acção educativa e, perante a fatal perda da primeira, se auspicia como melhor, porque infinita e ilimitada.

interlocutores. Perante a manifesta contradição, Cesare, um dos convivas, faz o ponto da situação, colocando depois a questão decisiva:

Se bem me recordo, Conde, parece-me que sublinhou esta noite várias vezes que o cortesão deve acompanhar as suas acções, os seus gestos, os seus hábitos, em suma, todos os seus movimentos, usando a graça. E parece-me mesmo um requisito para tudo, tal como se tratasse de um condimento sem o qual todas as outras propriedades e boas qualidades teriam pouco valor. E sinceramente acredito que qualquer um se poderia deixar persuadir por isto, pois, olhando para o verdadeiro significado da palavra, pode dizer-se que quem tem graça cai em graça. Mas uma vez que disse que esta é frequentemente um dom da natureza e do céu, e que, mesmo que não seja muito perfeita, pode ser aumentada através da dedicação e do esforço, esses homens que nasceram afortunados e dotados desse tesouro como alguns que nós conhecemos, pouco precisam, a meu ver, de algum ensinamento nesse campo, pois esse favor benigno do céu eleva- os, quase contra a sua vontade, mais alto do que eles próprios o desejariam, tornando-os não apenas aprazíveis como também dignos de admiração para toda a gente. Portanto, não discuto isso, uma vez que não temos o poder de adquirir essa graça. Mas quanto àqueles que por natureza são menos dotados e capazes de adquirir graça, apenas através do labor, da diligência e da dedicação, eu gostaria de saber através de que arte, de que disciplina, de que método poderiam eles alcançar essa graça, tanto através de exercícios corporais, os quais acha tão necessários, como em todas as outras as coisas que fazem ou dizem.17

Repare-se como, na melindrosa questão da aquisição de graça, Cesare substitui eufemisticamente três conceitos pouco elegantes e claramente avessos à ideia de graça – “labor, diligência e dedicação” – por outros três conceitos já associados à produção de arte – “arte”, “disciplina” e “método” – procurando, mediante essa mudança de registo, indiciar que a aquisição de graça pode ser encarado como uma arte. Reiterando que a graça obviamente não pode ser ensinada nem tão pouco adquirida, o conde acrescenta todavia que é possível ensinar-se uma determinada conduta através da qual são obtidos efeitos semelhantes ao da graça. Este suposto sucedâneo da graça adquire, porém, rapidamente, o direito ao mesmo termo, confundindo-se com o original, embora adquirido mediante uma metodologia, uma “regra universal”:

(…) tendo pensado já muitas vezes sobre o modo como esta graça é adquirida (à parte aqueles que a receberam dos astros), descobri uma regra bastante universal que neste ponto me parece mais válida do que todas as outras (…) e que consiste em evitar a afectação por todos os meios possíveis, como se se tratasse de uma falésia muito agreste e perigosa; e (pronunciando uma

17 Id., ib., Livro I, 24.

palavra possivelmente nova) praticar em todas as coisas uma certa sprezzatura18, de modo a

dissimular toda a arte (o trabalho?) e fazer com que tudo o que se faça ou diga pareça não implicar esforço ou qualquer pensamento. E acredito que muita graça deriva daqui: pois qualquer um conhece a dificuldade das coisas que são raras ou bem feitas; de modo que a facilidade nestas coisas causa grande encanto, enquanto que o trabalho esforçado e os resultados obtidos a muito custo revelam uma grande falta de graça, fazendo com que tudo, independentemente da sua grandeza, seja tido em fraca consideração.

Assim sendo, podemos chamar verdadeira arte àquela arte que não parece ser arte. 19

Como se pode observar, e na linha da mudança de registo já iniciada por Cesare, as últimas frases desta passagem consistem numa transferência de critérios de avaliação humana para critérios de avaliação de objectos de arte, prefigurando uma concepção inovadora da arte, em que, mais do que a techné, é justamente apreciada a graciosidade tal como aqui é descrita: aparência de ausência de esforço. Dois sentidos diferentes da palavra ‘arte’ – o sentido antigo que ainda equivale a “trabalho, esforço, labor” e o sentido novo que pressupõe a graça - permitem que a última frase não seja entendida como contradição. Aquilo a que Castiglione chama “verdadeira arte” é afinal a manifestação de “uma certa graça”, emancipada daquela que ele considera a “suprema graça” (que até funciona à revelia da vontade humana), uma vez que depende da pessoa, consistindo paradoxalmente no esforço de não fazer parecer esforço aquilo que efectivamente o é (para quem não obteve a graça “suprema”). Tal malabarismo terá efeitos semelhantes ao da charis – o espanto e admiração – e ao da graça cristã – a libertação de um estigma –, mas a sua origem é humana e rapidamente reconhecida como característica de boa arte. Quando, hoje em dia, é atribuído a determinado objecto de arte a qualidade de graciosidade, é exactamente desta noção que se fala: a leveza criada pelo facto de o artista ter conseguido encobrir a dificuldade técnica (conceal the

art), paradoxalmente graças a uma técnica que supera a técnica.

O impacto de Castiglione é portanto múltiplo; não só colocou em mãos humanas algo que até aí era tido como dom divino20, como fez com que justamente essa

18 Trata-se, como consta no próprio texto, de um neologismo. A palavra não entrou no vocabulário

corrente italiano o que faz com que seja difícil de traduzir. Hoby traduziu-a por “reckelessness”. Singleton preferiu manter a palavra no original e traduzi-la, entre parêntesis, pela palavra francesa “nonchalance”, talvez por não ter uma conotação negativa como qualquer palavra inglesa com sentido correspondente. Temos o mesmo problema em português: contrariamente a ‘nonchalance’, as palavras correspondentes portuguesas – descuido, desprezo, negligência, desmazelo – têm todas conotação negativa.

emancipação passasse a integrar o processo criativo da “verdadeira arte”, revertendo a favor da concessão de maior liberdade criativa do artista e veiculando aquilo que Harry Berger apelida, em termos contemporâneos, de “performance opportunity”21. Ora, tal processo pode ser interpretado de dois modos: quer como acto de secularização da

No documento Schiller e Kleist, a propósito de graça (páginas 103-124)

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