• Nenhum resultado encontrado

2 COMO FOI SENDO A ESTRUTURA DA CIDADE BRASILEIRA

2.3 Tipologias brasileiras

2.3.2 A estrutura de Flávio Villaça

Em Espaço intra-urbano no Brasil, Flávio Villaça (2001, p.160) aponta os meados do século XIX como um “período de transição na produção do espaço urbano carioca, que coincide com um período de transição na sociedade – de patriarcal, escravocrata e colonial, para capitalista, com uma nova estratificação social, uma nascente burguesia e classe média urbanas”. Segundo o autor, essa “transição e a nova espacialização urbana” foram “mais claras e pioneiras apenas no Rio”, mas “marcante[s] também nas duas outras grandes cidades brasileiras da primeira metade do século XIX: Salvador e Recife”. Em São Paulo e Porto Alegre, “essa transição foi bem menos notável”. Embora distintivamente nessas cidades104, “a nova estratificação social trouxe nova espacialização – a segregação de usos do solo e de classes sociais”.

Se até então, no espaço intraurbano brasileiro, desigual era somente o padrão construtivo das moradias, segundo Flávio Villaça (2001), a partir de meados do século XIX passa a ser desigual também a localização delas105. Tratar-se-ia de uma estratificação social106 inédita, por se configurar por uma espacialização inédita. Têm-se, assim, a partir daí, outra estratificação social – cuja hierarquia se configura também pela localização na cidade – e outra luta – de classes – por essa localização: pelo “ponto”.

Seriam os “pontos” que condicionariam, no espaço intraurbano, “a participação do seu ocupante tanto na força produtiva social representada pela cidade como na absorção, através do consumo, das vantagens da aglomeração” (VILLAÇA, 2001, p.78). Ora, uma das hipóteses do autor é a de que “a segregação é um processo necessário para o exercício da dominação social

104 Essa distinção pode estar na intensidade com que o processo descrito pelo autor atingiu as cidades no

momento identificado – meados do século XIX –, mas pode estar também no próprio momento em que as atingiu. Nas cidades em que, segundo o autor, não se verifica tal processo tão claramente em meados do século XIX, pode ele ter se evidenciado em momento posterior. Em Belo Horizonte, fundada em 1897, obviamente não poderia ele ter ocorrido então.

105 Até então, a cidade era una, daí a localização ser uma única.

106 Se, segundo o autor, nascem então a burguesia e a classe média urbanas, o que se poderia dizer dos demais

por meio do espaço urbano, decorrendo, portanto, da luta de classes em torno das vantagens e desvantagens do espaço construído” (Ibidem, p.29). Em que condições, pergunta-se o autor adiante, os “indivíduos entram naquela disputa” (Ibidem, p.329)? Nas mesmas ante as quais constituem “classes sociais lutando pelas condições materiais de sua sobrevivência, embora tais condições sejam definidas na esfera da produção”, responde (Ibidem, p.329)107.

De acordo com o autor, assim a “burguesia” exerce a sua dominação social mediante o espaço urbano: concentrando-se num só setor da estrutura intraurbana, este que é o mais “perto” e permite-lhe otimizar “os gastos de tempo despendidos nos deslocamentos dos seres humanos108, ou seja, a acessibilidade às diversas localizações urbanas, especialmente ao centro urbano” (VILLAÇA, 2001, p.328). A questão essencial revelada pelo estudo das seis cidades brasileiras – Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo –, conclui, é a de que “o benefício ou o recurso fundamental que se disputa no espaço urbano é o tempo de deslocamento” (Ibidem, p.328)109. Não se trata, porém, de um deslocamento que pode ser “expresso em distância física nem em custo de transporte apenas, mas principalmente em tempo de transporte” (Ibidem, p.342). Contudo, tampouco se trata de um tempo que pode ser “medido pelo tempo de uma viagem” (Ibidem, p.342). Tomando o exemplo do centro principal de Salvador, o autor esclarece que esse é “muito mais acessível às camadas populares, não só por ser mais bem servido de transporte público, mas também por ser o destino mais freqüente dessas classes”, o que significa, continua, “que, com uma única viagem ao centro tradicional, elas podem ter várias de suas necessidades atendidas (são vários os ‘motivos de viagem’)” (Ibidem, p.342). Na “economia de viagens”, finaliza, o que é fundamental é “a variedade de funções que um centro abriga” (Ibidem, p.342). O que mediria o tempo de deslocamento seria então essa economia de viagens? Para o autor, na disputa pelo tempo de deslocamento, vence a classe capaz de atrair para perto de si – se não quanto à distância física ou ao custo de transporte, quanto ao tipo de via e ao tipo de transporte – a variedade de funções que lhe convém. Assim ocorre à “burguesia”, que pode se afastar em busca de “bairros mais modernos e espaçosos e com mais verde”, compensando esse “longe” mediante a via expressa e o automóvel e ao trazer o centro “para sua direção de deslocamento”,

107 Embora não o explicite, o autor parece estar se referindo à reprodução das relações sociais de produção.

Sendo assim, a localização seria definidora da condição das classes em luta pela sobrevivência.

108 Cabe ressaltar que, para o autor, “o espaço intra-urbano é estruturado fundamentalmente pelas condições de

deslocamento do ser humano, seja enquanto portador da mercadoria força de trabalho – como no deslocamento casa-trabalho –, seja enquanto consumidor – reprodução da força de trabalho, deslocamento casa-compras, casa-lazer, casa-escola, etc” (VILLAÇA, 2001, p.20).

109 Analogamente, as camadas populares ver-se-iam dominadas mediante o espaço urbano, uma vez submetidas

isto é, ao “revolucionar o centro principal, ao produzir centros expandidos, o ‘seu’ centro e o centro ‘dos outros’” (Ibidem, p.329).

Como, porém, “os diferentes pontos do espaço urbano oferecem diferentes possibilidades de contato com todos os demais pontos, o espaço urbano é intrinsecamente desigual” (VILLAÇA, 2001, p.355). Se “o tipo de desigualdade mais freqüentemente considerado é a disponibilidade de equipamentos e de infra-estrutura e a qualidade das edificações”, observa Flávio Villaça (2001, p.355), “há outra desigualdade tão ou mais importante como força estruturadora do espaço intra-urbano, pois ela domina também a polarização centro-periferia, e vai além dela”. Tal seria, anuncia ele, “a desigualdade fruto das diferenças de acessibilidade110 a todos os pontos do espaço urbano” (VILLAÇA, 2001, p.355), em especial, poder-se-ia complementar, considerando-se afirmação anterior sua, ao centro urbano e, no caso de haver o seu centro e o centro dos outros, a tal ou qual variedade de funções. Assim, poder-se-ia aferir, acompanhando-se o raciocínio do autor, que, quanto mais especializado funcionalmente o espaço, mais radical a desigualdade quanto à economia de viagens.

No espaço intraurbano brasileiro, a desigualdade intrínseca manifestar-se-ia na segregação, em uma única “região geral da cidade”, das “camadas de alta renda” (VILLAÇA, 2001, p.339) e traduzir-se-ia numa organização interna que é um misto de círculos concêntricos e de setores de círculo, predominando esses últimos sobre os primeiros, tal como se vê na FIG. 15111.

110 O conceito “economia de viagens” parece se aproximar do conceito “mobilidade”, por sua vez hoje

distinguido por alguns especialistas do conceito “acessibilidade”. “Mobilidade” refere-se à capacidade de os indivíduos se moverem, aos seus deslocamentos diários ou viagens, e não apenas à sua efetiva ocorrência, mas às suas possibilidade e facilidade de ocorrência. “Acessibilidade” refere-se à efetividade do sistema de transporte em conectar localidades (cf. VASCONCELLOS, 2001). Assim, ainda que Flávio Villaça se valha também do termo “acessibilidade”, crê-se que é à “economia de viagens” que está se referindo.

111 Que essa estrutura – básica – se conserve inalterada na cidade brasileira hoje, essa seria uma pergunta

extra, sobretudo quando se considera que, em Espaço intra-urbano no Brasil, publicado pela primeira vez em 2001, os dados mais recentes manipulados por Flávio Villaça são de meados da década de 90 no século XX.

FIGURA 15 – Espaço intraurbano no Brasil: estruturação segundo setores de círculo

Fonte: VILLAÇA, 2001, p.340.

Diferente daqui, nos “países de primeiro mundo”, que apresentam “grandes classes médias e menores desníveis sociais”, os “bairros das burguesias” espalham-se “pelos quatro cantos da cidade”, e o centro é “solicitado a crescer mais ou menos uniformemente em todas as direções”, o que resulta numa “estruturação segundo círculos concêntricos” (VILLAÇA, 2001, p.341), tal como se vê na FIG. 16.

FIGURA 16 – Espaço intraurbano nos países de primeiro mundo: estruturação segundo círculos concêntricos

Fonte: VILLAÇA, 2001, p.340.

Como já visto na Introdução a esta tese, para Flávio Villaça (2001, p.45, grifos nossos), a estruturação do espaço intraurbano brasileiro “só remotamente se relaciona com as transformações por que tem passado o capitalismo nacional e mundial nas últimas décadas”. Mais do que isso, explica ele, a “lógica básica” desse espaço – intraurbano, brasileiro – “pouco se alterou nos últimos cem anos, por mais que, nesse período, o capitalismo brasileiro tenha se alterado, seja nacionalmente, seja em distintas regiões do país” (Ibidem, p.27). Tal lógica seria a segregação socioespacial, por meio da qual se manifestariam os “traços nacionais definidores da estrutura e dos conflitos de classe” e a “dominação política e econômica através do espaço intra-urbano”, “bastante inelásticos em face de algumas transformações sociais e econômicas nacionais e planetárias” (Ibidem, p.27).

Foram duas as leituras que fiz de Espaço intra-urbano no Brasil (VILLAÇA, 2001): uma primeira, penetrando na linha de pensamento do autor; uma segunda, captando o detalhamento da estrutura urbana básica por ele apresentada, com a intenção de desdobrá-la a partir do seu próprio texto. Nos capítulos 8 – “Os bairros residenciais das camadas de alta renda”, 9 – “Os bairros residenciais das camadas populares”, 10 – “Os centros principais” e 11 – “Os subcentros112”, Flávio Villaça (2001) ocupa-se de cada um dos setores do espaço intraurbano113. E se assim o faz numa sequência cronológica, não é – nem poderia sê-lo, dada a sua linha de pensamento – uma abordagem histórica que a conduz. Sob tal linha de pensamento, a estrutura urbana não se modifica, sendo, por isso, básica, isto é, basicamente desigual no que se refere à economia de viagens. Contudo, sob tal detalhamento, não se modificariam as desigualdades entre cada setor em cada estrutura? Uma terceira leitura do mesmo livro, reveladora dessas desigualdades, impõe-se então. Trata-se de reconstruir aqueles capítulos, estruturando-os não por setor mas por suas combinações em cada cidade114. Feito isso, há que se buscar, novamente, o que há de básico, agora, naquelas desigualdades.

No Rio de Janeiro

Em Sobrados e mucambos, Gilberto Freyre115 (1968, p.153 apud VILLAÇA, 2001, p.228) comenta que, na primeira metade do século XIX, enquanto as “senzalas diminuíam de tamanho, engrossavam as aldeias de mucambos e de palhoças”116, “espalhando-se pelas zonas mais desprezadas da cidade”. Seriam essas as zonas baixas: a praia – lugar “onde não se podia

112 A despeito de o autor não manter, em seu texto, o emprego dos termos “centro principal” e “subcentro” (uma

combinação, de resto, redundante) e de usar indiscriminadamente os termos “centro” e “subcentro” (que se confundem sobretudo quando se trata de São Paulo), em busca de simplicidade e clareza adotaremos, aqui, “centro” e “subcentro”, referindo-se o primeiro ao que se costuma (indiscriminadamente?) denominar “centro antigo”, “centro tradicional”, “centro velho” ou, simplesmente, o “Centro”, e o segundo, aos que o sucedem no tempo. Se, quando e para quem esse centro se torna ou deixa de ser o centro principal, disso se ocupa o autor, como veremos.

113 Ainda que não o faça igualmente para cada uma daquelas cidades que toma como objeto, deixando aqui e ali

algumas lacunas, já previstas e anunciadas por ele na Introdução ao seu livro, Flávio Villaça não se vê impedido de verificar a sua hipótese. Assim, se o Rio de Janeiro é abordado em todos os capítulos, no capítulo 9 – “Os bairros residenciais das camadas populares”, Porto Alegre, Salvador, Recife, São Paulo e Belo Horizonte não o são; no capítulo 10 – “Os centros principais”, Salvador não o é; e, no capítulo 11 – “Os subcentros”, Salvador e Recife não o são. Por essa razão é que optei, nessa reconstrução, em tomar primeiramente o Rio de Janeiro, pois é também a partir da sua estrutura que Flávio Villaça descreve, muitas vezes comparativamente, as estruturas das demais cidades. Como o autor distingue as cidades litorâneas das interioranas, adotei uma ordem que mescla essa distinção à ordem segundo a qual ele tratou das cidades no capítulo 8 – “Os bairros residenciais das camadas de alta renda”, o setor – por razões, espera-se, já óbvias – a que mais se dedicou.

114 A sequência das páginas de onde se extraíram as citações dá a medida dessa reconstrução.

115 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano.

4.ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968.

passear, muito menos tomar banho salgado”, “onde se faziam despejos; onde se descarregavam os gordos barris transbordantes de excremento, o lixo e a porcaria das casas e das ruas; onde se atiravam bichos e negros mortos” (FREYRE117, 1968, p.195 apud VILLAÇA, 2001, p.228)118 –, o mangue, o pântano. Aquelas aldeias de mucambos e de palhoças seriam, segundo Flávio Villaça (2001, p.229), um primeiro tipo de “área residencial central das camadas de baixa renda”. O segundo tipo, comum já no final do século XIX, incluiria o cortiço – segundo Gilberto Freyre117 (1968, p.234 apud VILLAÇA, 2001, p.229), “cortiços dentro de sobrados já velhos” – e as casas de cômodos. Nesse segundo tipo morariam a “criadagem livre”, migrados como agregados da elite rural, “subempregados em atividades do setor terciário”, migrados do campo e das cidades pequenas, e, em menor número, o “operariado industrial”, sobretudo estrangeiros (VILLAÇA, 2001, p.229).

As camadas de alta renda, por sua vez, localizavam-se quer “junto ao centro” (VILLAÇA, 2001, p.167), quer “fora da cidade” (Ibidem, p.163), onde havia “certas concentrações de população rica”, na “direção de São Cristóvão”, “ao longo da praia da Glória até Botafogo”119 e na Tijuca (Ibidem, p.161). Dentre essas localizações, na metade do século XIX, as camadas de alta renda concentravam-se mais “nos bairros interiores, como Alto da Boa Vista, Gávea e Jardim Botânico, do que ao longo das praias, que não passavam de Botafogo” (Ibidem, p.169). Essas camadas eram formadas por “vários grupos estrangeiros [...], diplomatas e refugiados políticos abastados, duques e até príncipes [...], a burguesia comercial integrada por portugueses, brasileiros e [...] imigrantes, e [...] a velha nobreza portuguesa” (Ibidem, p.169). Fora da cidade, os ingleses dividiam-se entre os “tentáculos” em direção à praia e a São Cristóvão; os portugueses preferiam esse último; e os franceses, a Tijuca (Ibidem, p.169).

Segundo Flávio Villaça (2001, p.256), ainda na primeira metade do século XIX, o centro teria se definido “mais claramente como área de concentração do comércio varejista, embora ainda não fosse ali exclusivo”. Nem mesmo a Rua do Ouvidor era exclusivamente comercial, ainda que, no relato de um viajante, já se distinguisse, em 1824, alguma especialização funcional entre as ruas: a Direita (atual Primeiro de Março), “paralela à orla e próxima aos embarcadouros”, rua principal, reunia “o comércio atacadista e o das firmas de importação e exportação”; a do Ourives concentrava as “bijuterias, muitas das quais sortidas

117 Ver nota 115.

118 Assim começa a frase: “As praias, nas proximidades dos muros dos sobrados do Rio de Janeiro, de Salvador, de

Recife, até os primeiros anos do século XIX, eram lugares onde não se podia passear [...]” (FREYRE, 1951, p.412).

119 Note-se que, em relação às camadas populares, a praia aparece como central e, em relação às camadas de alta

em peças de prata”; a da Candelária, as “velas”; a da Quitanda, os “armarinhos”; a da Alfândega, os “marceneiros e seleiros”; e, por fim, a do Ouvidor, a mais chique, onde se acreditava ter sido transportado a Paris (EBEL120, 1972, p.69-71 apud VILLAÇA, 2001, p.256). Na disputa pela localização central, o comércio importador/exportador e o varejista dividiam-se: o último predominava na porção entre as ruas do Hospício (atual Buenos Aires) e da Assembleia, e o primeiro, naquela compreendida pelas ruas do Ourives (atual Miguel Couto), do Hospício e Direita e pelos morros de São Bento e da Conceição.

Já há um centro nessa cidade, portanto. As camadas de baixa renda estão tão junto a esse centro quanto as de alta renda e também nele, já que nem mesmo a Rua do Ouvidor é exclusivamente comercial. O que Flávio Villaça (2001) denomina “central”, assim, parece coincidir com o que denomina “cidade”: é fora da cidade que há não uma mas algumas concentrações de população rica. Periferias? O próprio autor irá ocupar-se dessa indagação, preocupando-se, contudo, não em respondê-la mas em enxergar, sob a “penumbra de gradações” entre o “claramente rural” e o “claramente urbano” (VILLAÇA, 2001, p.161), no Rio de Janeiro de então, os diferentes tipos de chácaras existentes. Seriam eles:

– o primeiro tipo, em que a agricultura é explorada comercialmente, mas seus moradores podem se ocupar de outras atividades e levar um “estilo de vida totalmente urbano” (Ibidem, p.161);

– o segundo tipo, em que a agricultura é de subsistência, e a família, integrada ao campo, raramente vai à cidade;

– o terceiro tipo, utilizado com “freqüência e mesmo com finalidades semelhantes” à casa na cidade, de tal forma que não seria possível “estabelecer qual era a residência permanente, se o palacete ou sobrado da cidade, ou a chácara” (Ibidem, p.161);

– e o último tipo, tipicamente urbano, “localizado na cidade”, residência permanente chamada chácara “simplesmente por ocupar um terreno que, para os padrões urbanos de então, era grande” (Ibidem, p.161).

Quanto à localização, portanto, são apenas dois os tipos: a chácara fora da cidade e a chácara na cidade. A indeterminação não está aí, pois “totalmente urbana” poderia ser a vida de moradores – permanentes ou temporários – das chácaras localizadas fora da cidade, às quais o autor atribui uma “natureza urbana” (Ibidem, p.164). Mesmo os “nossos imperadores [...] freqüentaram a cidade como cidadãos comuns”, exemplifica o autor (Ibidem, p.163, grifos nossos). Só não a frequentavam regularmente os moradores das chácaras fora da cidade voltadas

à agricultura de subsistência, as quais, no entanto, não se poderiam nomear periféricas, posto que claramente rurais.

Seriam esses moradores, incomuns, as velhas de cor, com seu pente e sua mantilha? Seria daí – dessas chácaras, analogamente, de natureza rural – que elas então viriam, assombrando aqueles que se acreditavam transportados, se não à Regent Street londrina, a Paris? De qualquer modo, se a proximidade a esse centro não era disputada a ponto de se tornar exclusiva, ainda não se instalaram nesse Rio de Janeiro aquela estratificação social configurada pela localização na cidade, nem aquela luta – de classes – pelo ponto tanto quanto pelo tempo de deslocamento. A própria gradação entre o claramente rural e o claramente urbano e a desnecessidade de opção das camadas de alta renda por um ou por outro aproximam a estrutura desse Rio de Janeiro de meados do século XIX daquela estrutura proposta por Flávio Villaça para as cidades em que as burguesias podem se espalhar pelos quatro cantos, aqui, na cidade ou fora dela. Tanto o estar próximo ao centro, na cidade, quanto o estar dali distante eram valorizados ou vantajosos.

Não havia “tanta necessidade de locomoção”, pois, “embora parcelas significativas das camadas de alta renda fizessem intenso uso da cidade, a elite carioca era certamente menos urbanizada – no tocante a estilo de vida – do que no início do século XX”, escreve adiante Flávio Villaça (2001, p.175). Ainda assim, essa pouca urbanização parecia não transparecer nos trajes da elite tal como nos das velhas de cor, ao menos quando se encontravam no centro.

Já na segunda metade do século XIX é a proximidade ao centro que irá conduzir o adensamento das “áreas urbanas das elites”: os vazios entre os “bairros longínquos” serão preenchidos a partir dali (VILLAÇA, 2001, p.167). Não obstante, se, no terceiro quartel desse século, as camadas de alta renda moravam em áreas mais distantes do centro do que as camadas de mais baixa renda, ainda em 1890, “a periferia das camadas de mais baixa renda localizava-se mais ou menos em Cascadura” (Ibidem, p.169), a 17 quilômetros do centro, pelas vias principais, enquanto, de bonde, se ia, em 35 a 45 minutos, da Praça Tiradentes (centro) ao Alto da Boa Vista (área residencial de camadas de alta renda) ou da 13 de Maio com Evaristo da Veiga (centro) ao ponto final na Gávea (área residencial de camadas de alta renda) (Ibidem, p.168), este último um percurso de 11 quilômetros. Pergunta-se, então, o que fazia daquela área mais ou menos coincidente com Cascadura uma periferia? Tratava-se agora de uma localização não central das camadas de mais baixa renda, estas, sim, afastadas em relação à localização a que tinham acesso na estrutura anterior. Mais do que isso, porém, tratava-se de uma área em que dominavam aquelas camadas: instalara-se já na cidade, se não

como regra, como tendência, a segregação socioespacial, precisamente aquela em que a desigualdade entre a localização dos pobres e a dos ricos podia ser traduzida em 6 quilômetros ou, de bonde, em cerca de 20 minutos.

Se a proximidade do centro ainda era acessível a camadas distintas, tal localização, uma vez associada à proximidade da praia, irá estabelecer o setor das camadas de alta renda que perdura na cidade até hoje. Assim, enquanto na Zona Sul “os bairros aristocráticos

Documentos relacionados