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A estrutura lógica subjacente à criação: construção de relações inusitadas

como pertencente à esfera das artes, enquanto que a descoberta estaria classificada como pertencente à esfera da ciência. Um dos fatores que explicaria estas associações, entre criatividade/arte e descoberta/ciência, é que na arte se pode criar uma representação de um mundo não real, sem implicações ou conseqüências desastrosas. Na ciência, há uma relevante correspondência com o mundo objetual, na tentativa de descrição da realidade, e buscando em descobrir qual a teoria que melhor se adequa às manifestações fenomênicas.

Mediante esta aparente distinção, a descoberta seria passível de ser analisada no viés da filosofia da ciência, inserida no contexto da justificação e do surgimento de novas teorias. As distinções se diluem, na medida em que as teorias científicas também são criadas, a partir de elementos que fornecem subsídios para se ter acesso a padrões de ordem constitutivos da própria natureza, e sistematizados em formulações teóricas.

Nesta seção, apresentamos exemplos que caracterizam o desenrolar do processo de criação nos âmbitos da arte e da ciência. Na argumentação de Peirce sobre abdução, não parece haver uma distinção pontual e excepcionalmente diversa do processo de criação desenvolvido nestas áreas. Os dois segmentos, arte e ciência, partem da abdução para inserirem em seus contextos as elaborações de hipóteses.

Conforme ressaltamos até aqui, segundo Peirce (CP 2.96) o raciocínio abdutivo expressa um tipo de inferência que apresenta novos elementos à argumentação. Esta

inferência poderia ser tomada como uma resposta razoável, ou conclusão provisoriamente válida, mediante a constatação de uma anomalia. Processos abdutivos ocorrem nas ciências e nas artes, com possibilidade de conduzir à descoberta de novas teorias e criações artísticas.

Segundo Peirce (CP 6.144), a ação mental é regida por leis de ordem lógica, nas quais o raciocínio abdutivo está inserido, que tem como base a associação de idéias como lei fundamental, de modo que “o que tem por nome de associação de imagens é na realidade uma associação de juízos” 35. Nas palavras de Peirce:

Análises lógicas aplicadas aos fenômenos mentais mostram que existe uma lei da mente, a saber, que as idéias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se encontram em relação a elas numa peculiar relação de afetabilidade. Nessa difusão elas perdem intensidade, e especialmente o poder de afetar outras, mas adquirem generalidade e ficam fundidas com outras idéias. (CP 6.104) 36

Este tipo de ação mental impulsiona o desenvolvimento dos processos que envolvem a lógica da descoberta e da criação. Qualquer linha de raciocínio deve ter um ponto de partida que elabore proposições originais, que segundo Peirce, não poderia ser absolutamente incognoscível (CP 5.310). 37

Peirce (CP 1.383) afirma a existência de uma compulsão interior que nos leva a juntar idéias a partir de nossas perspectivas de tempo e espaço, tendo em vista o interesse de alcançar a inteligibilidade por meio das construções de sentido formadas nas conexões de idéias que estabelecemos em nossas mentes. Dentro deste contexto, Peirce argumenta:

As realidades compelem-nos a colocar algumas coisas num relacionamento estrito, e outras num relacionamento não tão estrito, de um modo altamente complicado e inteligível no [para] o próprio sentido; mas é a habilidade da mente que apanha todas essas sugestões de sentido, acrescenta muita coisa a elas, torna-as precisas e as exibe numa forma

35 (CP 5.307) “[…] what goes by the name of the association of images is in reality an association of

judgments”.

36 “Logical analysis applied to mental phenomena shows that there is but one law of mind, namely, that

ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of affectibility. In this spreading they lose intensity, and especially the power of affecting others, but gain generality and become welded with other ideas”.

37 (CP 5.310) “The principle now brought under discussion is directly idealistic; for, since the meaning of

a word is the conception it conveys, the absolutely incognizable has no meaning because no conception attaches to it”.

inteligível nas intuições de espaço e do tempo (CP 1.383, trad. in: 1995, p.17).38

Na perspectiva acima, no que diz respeito ao raciocínio abdutivo, o trabalho do artista e do cientista não se diferiria em muito, como ressalta Peirce: “O trabalho do poeta ou novelista não é tão profundamente diferente do trabalho do homem de ciência” (CP 1.383). Como por exemplo, no caso da arte Impressionista, de Eduard Manet, Claude Monet, August Renoir, entre outros. Estes artistas tomaram como leitura perceptual de mundo, transpondo para suas composições, que a realidade se desfaz em aparências, captadas por meio de fenômenos óticos, resultando na percepção retineana de uma mescla de pontos cromáticos e luminosos. Assumindo que a percepção dos objetos no mundo possui uma realidade tão forte quanto a do próprio objeto. A ótica Impressionista impõe que uma pintura seja impressão evocativa e não descrição mimeticamente idealizada (ARGAN, 2002, p. 98). Nas palavras de Argan:

[Na percepção adotada no impressionismo] Não há mais distinção entre os corpos sólidos e o espaço que os contém; na imagem (e para Manet a imagem é a sensação visual) não existe elementos positivos e negativos, tudo se apresenta à vista através da cor. As figuras e o espaço formam, pois, um único contexto: Manet não vê as figuras dentro, sim com o ambiente (2002, p.97, grifo do autor).

Para apresentar esta nova forma de se ver o mundo, os artistas impressionistas tiveram de mudar o trato com a imagem, sendo que um de seus pressupostos é de não haver linha na natureza, logo, essa suposição foi transposta para a técnica compositiva, em que não faria sentido o uso da linha na representação de uma nova compreensão da realidade. Os elementos da composição passam a se distinguir através da cor, como podemos observar nas obras: O Parlamento em Londres (fig.6) e na Impressão do sol

levante (fig.7), ambas de Monet.

Entendemos que a produção artística dos impressionistas rompeu com a arte tradicional do final do século XIX. Em outras palavras, houve a inserção de premissas que antes não faziam parte do escopo argumentativo da tradição artística de até então, em que cor, nuances e tons passaram a ser elementos não só presentes nas composições, porém constitutivos, estruturais das mesmas.

38 “The realities compel us to put some things into very close relation and others less so, in a highly

complicated, and in the [to?] sense itself unintelligible manner; but it is the genius of the mind, that takes up all these hints of sense, adds immensely to them, makes them precise, and shows them in intelligible form in the intuitions of space and time”.

Estes artistas impressionistas detectaram, de alguma forma, uma estrutura rígida incapaz de se adequar à nova perspectiva de mundo. Eles buscavam e retratavam em suas pinturas técnicas que pudessem representar essa nova visão de mundo, e para tanto houve uma lógica da criação que teve início por meio do raciocínio de tipo abdutivo,

grosso modo, da seguinte maneira:

1) (Detecção da anomalia) A mola propulsora do sentimento crescente de insatisfação, que o modelo acadêmico de pintura não era adequado para expressar essa nova percepção da realidade;

2) (Hipótese levantada) Adotando a técnica de mistura ótica das cores que incluísse a nova representação de mundo;

3) (Acolhimento da crença) Portanto, os artistas admitiram tal técnica como hipótese plausível e apropriada para resolver o problema em questão.

Com a adoção desses procedimentos, houve uma cisão com a arte tida por tradicional um salto evolutivo. Em outras palavras, houve a inserção de “premissas” que antes não faziam parte do escopo “argumentativo” da tradição artística de até então, em que cor, nuances e tons passaram a ser elementos não só presentes, mas constitutivos das composições artísticas impressionistas. 39

A história da arte está permeada de exemplos deste tipo, em que são geradas hipóteses que derivam do raciocínio de tipo abdutivo, com intuito de encontrar soluções para problemas que se apresentam como relevantes em certas épocas.

Outro exemplo que podemos mencionar refere-se aos elementos pictóricos que compõem quadros abstratos de M. Rothko. Entre eles, a obra: Vermelho e amarelo (Fig. 8) é caracterizada por manchas de cor retangulares que ora se alargam, ora se estreitam, mantendo proximidade entre as manchas por meio de relações tonais formando uma mescla de cor contínua. Neste exemplo, podemos tomar por referência, e análise, não o artista, mas o fruidor.

Quando um espectador que não possui hábitos de leitura de obra de arte abstrata se depara com um quadro deste tipo, a princípio poderia perguntar: “Isto é arte”? No repertório de referência de arte deste espectador não reconhece esse padrão como arte,

39 No contexto desta pesquisa, nos remetemos à poética impressionista de modo mais geral, sem levar em

conta a pluralidade deste tipo de manifestação artística. Para o propósito de nossa demonstração, nos limitamos a abordar o tema do impressionismo, por meio de conceitos gerais, fundamentando nossa argumentação na perspectiva de Argan.

mas como uma “anomalia”. Talvez hoje, para nosso olhar já habituado às composições contemporâneas de arte, não nos cause estranheza uma situação deste tipo. Porém na década de 50, foi bastante comum este tipo de reação frente às obras produzidas por Rothko.

Neste contexto, o raciocínio abdutivo se pontua na elaboração e escolha de hipóteses que possam resolver o problema apresentado. Consequentemente, a disposição para a aquisição de novas crenças e estabelecimento de novos hábitos é necessária para que se desenvolva todo o processo de criação do fruidor. Neste exemplo, a abdução se desenvolve nas etapas:

1) (Percepção de uma anomalia). O fruidor habituado a identificar um padrão de obra de arte por meio da representação de formas reconhecíveis, não encontra na composição de Rothko elementos que corroborem para a compreensão da obra, com base na adequação da leitura da obra pautada no hábito de leitura anterior;

2) (Geração de hipótese plausível). Busca de uma nova forma, mais adequada, de leitura da composição de Rothko;

3) (Seleção da melhor hipótese e adoção de crença tida provisoriamente como válida). A leitura poderia ser feita com relações com a cor de conotação emocional.

Há uma série de outros exemplos na arte que poderiam ser citados. Porém, passamos a descrever exemplos sobre raciocínio abdutivo nas ciências, trazemos à baila o caso de Kepler ao descobrir a órbita elíptica dos planetas.

Kepler, segundo Gribbin (2002, p.54-67), refletiu que se a órbita planetária fosse circular, bastariam três observações, pois três pontos definem um círculo. Os pontos deveriam ser observados em oposição, já que em oposição é irrelevante se é a Terra ou o Sol que se movem, por causa do alinhamento dos corpos. Naturalmente qualquer conjunto de três observações deveria resultar na mesma órbita. Como Marte é o planeta externo com maior excentricidade dos conhecidos até então, um círculo não poderia corresponder à realidade das observações. Em 1605 Kepler descobriu que a órbita planetária se movia na forma elíptica, com o Sol em um dos focos. Segundo Peirce (CP 2.97), “cumpre observar que o argumento era bem diferente do que teria sido se Kepler houvesse apenas tomado todas as observações de longitude, latitude e paralaxe e se

houvesse elaborado, a partir delas, uma teoria que se adaptasse a todas” 40. Também neste exemplo, o processo da lógica da criação segue os mesmos passos estruturais que os tratados nos exemplos anteriores:

1) (Percepção da anomalia) Percepção que o modelo anterior de órbita dos planetas não se ajusta à realidade;

2) (Geração de hipótese) Rejeição da crença anterior e busca de uma hipótese que possa explicar o evento em questão;

3) (Adoção de uma nova crença, mais adequada) Abandono da crença anterior em prol da hipótese mais adequada.

Nestes exemplos há em comum o uso do raciocínio de tipo abdutivo, gerando hipóteses plausíveis, e conseqüentemente possibilitando a estes autores criarem e descobrirem as resoluções para os problemas com os quais se depararam.

A descoberta pressupõe, neste contexto, o reconhecimento de padrões já existentes, como no caso do comportamento dos elementos químicos e na percepção da órbita elíptica dos planetas, que não foram criados, mas descobertos. A partir deste reconhecimento de padrões, os cientistas elaboraram teorias para explicar as anomalias encontradas.

Houve, no exemplo dos artistas impressionistas, a criação de uma nova técnica, que anteriormente não havia sido empregada. O mesmo ocorre no exemplo da leitura da obra de Rothko, em que o fruidor cria novas perspectivas relacionais, contextualmente mais adequadas, para sua leitura imagética, resultando na adoção de novos hábitos de leitura imagética.

No capítulo seguinte apresentamos as contribuições de pensadores que se dedicam á analise da natureza da criação e da lógica da descoberta, que cunham novos conceitos que permitem compor uma análise sistematizada deste tema inserido na visão de mundo da contemporaneidade.

40 (CP 2.97): “It will be observed that the argument was very different from what it would have been if

Kepler had merely taken all the observations of longitude, latitude, and parallax and had constructed from them a theory that would suit them all”.

2.5 Resumo do capítulo

Neste capítulo enfatizamos a natureza da abdução, nos aspectos comparativos entre os demais tipos de raciocínio, a saber, dedutivo e indutivo. Ressaltamos o duplo aspecto do raciocínio abdutivo, que corresponde à quebra de um hábito, e posterior instauração de um novo, estabelecendo uma nova regularidade.

Os processos investigatórios principiam, em geral, em uma percepção de algum tipo de anomalia e desembocam na justificação das hipóteses geradas por meio do raciocínio abdutivo, que está associado à capacidade criativa. Neste contexto, apresentamos os exemplos de ocorrência deste processo na arte: na produção dos artistas impressionistas, e no processo de leitura de obra de arte. Na ciência, apresentamos o modelo de órbita elíptica desenvolvido por Kepler.

No próximo capítulo analisamos o que julgamos constituir aplicações do raciocínio abdutivo na descoberta científica e artística, analisada a partir da perspectiva de filósofos contemporâneos.

CAPÍTULO 3

PERSPECTIVAS SOBRE O CONCEITO DE CRIATIVIDADE

“Nós estamos acostumados a falar de um universo externo e no interno mundo do pensamento. Mas, eles são meramente vizinhanças sem real linha de fronteira entre eles” (CP 7.438).

3 Perspectivas sobre o conceito de criatividade 3.1 Apresentação

Nosso objetivo central neste capítulo é analisar concepções contemporâneas sobre a análise do processo de criação. Mediante este propósito, apresentamos a argumentação de alguns filósofos que dedicaram escritos aos estudos sobre criatividade.

Na seção 3.2, reconstruímos a visão apresentada por Bohm, sob sua perspectiva da ordem implicada, trazendo à tona seus argumentos referentes à fundamentação sistêmica da criatividade.

Apresentamos na seção 3.3 as contribuições de Boden às pesquisas sobre criatividade, em que ela classifica: criatividade de tipo P (pessoal - CP) e de tipo H (histórica - CH). Segundo a perspectiva de Boden, reconstruímos o conceito de espaço

conceitual definido como um campo abstrato permeado por uma ordenação de

elementos que constituem e estabelecem forma a um dado sistema. Ainda nesta seção, reforçamos a relevância da apreensão e expansão de espaços conceituais na compreensão dos processos criativos.

Na seção 3.4, apresentamos a argumentação de T. Kuhn sobre as revoluções científicas e mudanças paradigmáticas, para compreendermos os aspectos subjacentes dos espaços conceituais e em que certos contextos se originam. Numa segunda etapa, buscamos apontar, por meio dos contextos paradigmáticos, como se constituem e são definidos os critérios de relevância para que se possa considerar uma idéia genuinamente criativa. Apresentamos também a perspectiva desenvolvida por Hanson em Patterns of Discovery (1958), na qual ele propõe um conjunto de critérios para analisar a natureza do processo de geração de hipóteses, fundamentando assim uma lógica da descoberta científica. A estrutura do pensamento de Hanson, sobre a lógica

da descoberta, também encontra suas bases no pensamento de Peirce, mais

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