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Capítulo 2: A Formação Continuada de Professores

2.3 A experiência como processo de formação continuada de professores e sua

Optamos por revisitar a noção de experiência, uma vez que esta assume diversas possibilidades de compreensão. Tanto no cotidiano da vida comum, quanto no território conceitual acadêmico, a palavra experiência pode ser lida de diversas formas. A trilha que escolhemos para iniciarmos a investigação dessa noção é a etimologia, assim como faremos ainda algumas vezes ao longo dessa dissertação com alguns outros conceitos. De onde vem a palavra experiência?

O termo experiência vem do latim experientia, que por sua vez deriva do verbo experior que significa "provar", "ter a experiência de". No grego há um substantivo originário peîra (prova, experiência), do qual se derivam algumas palavras interessantes: empeiría (experiência), péras (limite, fim), ápeiron (não atravessável, imenso, sem limite, infinito), póros (passo, caminho), aporía (sem caminho, sem saída, impossibilidade), empórion (centro de trânsito, mercado), e peiratés (aquele que atravessa o mar, pirata). Em português, algumas palavras que derivam desta raiz são: experto, perito ("que tem a experiência") e perigo. Perigo vem de periculum que, originariamente significa ensaio, prova. De forma tal que na raiz da palavra experiência há uma preposição (ex) que indica origem, procedência, e um tema verbal

(perí) que indica um movimento que atravessa, um percurso que não tem destino certo e por isso é indeterminado, perigoso. Como o indica sua etimologia, toda autêntica experiência é uma viagem, um percurso que atravessa a vida de quem a sustenta. É também um perigo (Kohan, 2000)

Partindo da etimologia da palavra experiência, é possível percebermos que, desde sua origem, ela indica uma dimensão processual. A experiência, nesse sentido, não existe senão em movimento, um movimento em direção ao que ainda não se sabe. Essa noção contraria diretamente a ideia de experiência como acúmulo de vivências, diversas vezes relacionada com o universo do trabalho. Nessa esfera, o indíviduo tido como “mais experiente” é aquele que conseguiu amealhar mais situações vividas, o que já conseguiu incorporar, em seu fazer, um número significativo de momentos passados. A essa noção de experiência, relacionada ao que se guarda, Larrosa (2002) dirige uma crítica, a qual define que, quanto mais estamos, enquanto sujeito modernos, ligados à quantidade de atividades e informações, menos chegamos perto da experiência.

Nós somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece. A experiência, a possibilidade de que algo nosaconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (p.24) Vista por esse ângulo, a experiência se distancia da ideia cotidiana que costumamos ter do termo. Ao invés da quantidade, Larrosa aponta para a qualidade dos momentos, que podem ou não ser experiências, já que esta exige uma aproximação específica e, acima de tudo, uma disponibilidade do sujeito.Um sujeito disposto à contemplação, que se permita atravessar pelos encontros. Portanto, o sujeito que experiencia está num perigo constante, pois se transforma em relação ao que com ele se passa, ao que o afeta. A segurança imóvel, que guarda a certeza previsível do porvir, ofertada pela experiência, no sentido comum, só se justifica na lógica dos créditos que a experiência nos dá. Contudo, nessa nova leitura do termo que sugerimos nesse trabalho, a experiência nada tem a ver com o que se obtém, mas aquilo que se é capaz de ofertar. “Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa

maneira de pormos), nem a ‘o-posição’ (nossa maneira de opormos), nem a ‘imposição’ (nossa maneira de impormos), nem a ‘proposição’ (nossa maneira de propormos), mas a ‘ex-posição’, nossa vulnerabilidade com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco” (p.25).

A denúncia da experiência em sua faceta paralisadora foi trabalhada pelo filósofo Walter Benjamin, no início do século XX. Em Experiência e Pobreza (1933), Benjamin aborda o contexto sócio-econômico da Europa pós Primeira Guerra Mundial. Os efeitos devastadores da guerra impelem os cidadãos europeus a um novo terreno existencial: a pobreza de experiência.

Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. (p.115)

Apesar de uma experiência vivida e intensa, Benjamin explicita o fator empobrecido da experiência da guerra e do pós-guerra de seu tempo, localizada em um contexto de franco desenvolvimento burguês e, consequentemente, capitalista. Essa experiência, entendida como pilhagem de conhecimento e identificada como um acúmulo de páginas no calendário da vida, não pode ser identificada com a acepção mais profunda do termo. Isso, porque falta a ela a articulação com a noção de sentido. A experiência é algo que só se pode fazer em primeira pessoa. Não há como transferí-la ou ofertá-la a alguém. Seu caráter subjetivo é condição ontológica de sua existência e é aí que a noção de sentido se faz importante para sua própria compreensão. Buscando diferenciar as noções de sentido e de significado, Vigotski elabora uma teorização que nos parece interessante nesse momento de nosso trabalho.

Para o autor, a linguagem e o pensamento são instâncias interdependentes e dialeticamente constituídas. Por meio de sistemas sígnicos, o ser humano vai construindo a linguagem e, também uma compreensão do mundo. As palavras, portanto, tem uma função importante nesse processo, pois a elas constituem a unidade básica tanto do pensamento quanto da linguagem. É a palavra que carrega o significado, pois

A palavra desprovida de significado não é palavra, é um som vazio. Logo, o significado é um traço constitutivo indispensável da palavra. ... deste modo, parece que temos todo o fundamento para considerá-la como um fenômeno do discurso. (...) Do ponto de vista psicológico o significado da palavra não é senão uma generalização ou conceito. Generalização e significado da palavra são sinônimos.

Consequentemente, estamos autorizados a considerar o significado da palavra como um fenômeno do pensamento (Vigotski, 2001, p.398).

Definido a relação que une pensamento, linguagem, Vigotski demonstra a importância do significado para a constituição da palavra. Ao ser significado, um conjunto de sons, adquire um reconhecimento coletivo e, assim, nasce a palavra. Contudo, o autor coloca a possibilidade de mutação que o significado sofre, a depender dos jogos de linguagem em que se inserem as palavras. Em jogos de linguagem infantis, por exemplo, o significado da palavra “água!” pode exprimir um desejo da criança. Já em outros jogos de linguagem, a palavra “água!” pode significar um sinal de alerta. Contudo, quando nos referimos assim à expressão “água!” já não mais falamos de seu significado, uma vez que extrapolamos, em nosso exemplo, a dimensão externa do termo em questão. Ao buscarmos a interioridade, a pluralidade das compreensões de uma expressão, no caso da linguagem, nos referimos ao sentido de um termo. Nas palavras do autor,

o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. (2001, p.495)

O desejo da criança transborda o significado da expressão “água!” já que adentra um terreno particular dela, uma percepção de mundo que não é obviamente compartilhada, pois diz mais do que o significado da expressão. Assim, chegamos a um ponto onde poderíamos estabelecer uma relação dual entre sentido e significado. Contudo, Vigotski nos traz uma leitura dialética entre essas duas noções, ressaltando o caráter social na constituição de ambas as noções.

Esse enriquecimento das palavras que o sentido lhes confere a partir do contexto é a lei fundamental da dinâmica do significado das palavras. A palavra incorpora, absorve de todo o contexto com que está entrelaçada os conteúdos intelectuais e afetivos e começa a significar mais e menos do que contém o seu significado quando a tomamos isoladamente e fora do contexto: mais, porque o círculo dos seus significados se amplia, adquirindo adicionalmente toda uma variedade de zonas preenchidas por um novo conteúdo; menos, porque o significado abstrato da palavra se limita e se restringe àquilo que ela significa apenas em um determinado contexto. (Vigotski, 2001, pp. 465 - 466).

Apesar do caráter sócio-histórico-cultural do processo de construção do sentido, o autor ressalta que há possibilidades múltiplas para sua composição, a depender das interações afetivas e experienciais entre o sujeito e o significado. Portanto, o sentido pode ser entendido a

partir de processos de singularização que o sujeito promove a partir do seu contato com signos socialmente compartilhados. Assim, ao falarmos sobre o sentido de uma experiência, nos referimos a um acontecimento irrepetível que se dá singularmente, a partir do encontro com um cenário signíco. Daí o caráter único da experiência, a qual não se dobra a fórmulas de composição exteriores ao sujeito.

Uma concepção de formação continuada, balizada pela possibilidade de o sujeito recriar seus modos de vida ao dedicar-se à experiência com o outro está diretamente relacionada à noção de educação filosófica que apresentaremos no capítulo seguinte. Essa característica criativa do sujeito que, ao voltar-se sobre si em uma prática reflexiva e intensa, se reinventa Foucault chamou cuidado de si. Vamos a esse conceito ainda com o intuito de chamar o leitor a habitar esse território conceitual-experiencial que a pesquisa em questão delineia.