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ESTATUA DE D MARIA MULAMBO

2.1 A Experiência de MaréMarê

Apontados acima os procedimentos metodológicos, passo nesta etapa da tese a descrever o percurso de sua realização a partir da hipótese com vistas a sua verificação. Na primeira etapa, como já foi mencionado, retornei ao processo de realização do ensaio anterior MaréMarê, produzido em 2007/2008.

À época, compartilhava a realização da disciplina Cinema e Dança A na Graduação em Dança da UFRJ, com a professora da área de Cinema/Vídeo, Ana Paula Nunes. Na prática da disciplina, compartilhamos o anseio de apostar no exercício da interdisciplinaridade entre a Dança e o Cinema/Audiovisual no processo de produção de um filme. Nesse contexto, dividimos a direção de MaréMarê.

O processo de produção de MaréMarê consistiu na investigação, criação e desenvolvimento de um experimento na forma de ensaio audiovisual, buscando a construção de um corpo em trânsito, inspirado nos mitos do orixá de origem africana Oxumaré. Como não se tratou de reproduzir as danças de Oxumaré, apliquei os laboratórios corporais, com base nas simbologias e características proeminentes nas danças e lendas de Oxumaré, com a finalidade de trazer os mitos para a expressão do movimento, do corpo.

Nos processos de produção desse ensaio, fui movida pelas seguintes questões: ¾ Como traduzir a gestualidade do orixá, para o mundo das opiniões, da fisicalidade, isto é, para os corpos dos bailarinos transcendendo os contornos?

¾ É possível produzir filmes que apresentem os mitos dos orixás de um modo diferente daquele apresentado nas célebres cerimônias festivas dos terreiros, freqüentadas, maciçamente, por seguidores e simpatizantes da Religião?

¾ Se isso é possível, como produzir filmes inspirados nos orixás, que atravessam fronteiras entre terreiro e sociedade, convidando espectadores, dos mais diferentes segmentos sociais religiosos ou não, a redimensionar a sua corporalidade?

¾ É possível, sob essa forma de apresentação do orixá, encontrar uma forma contemporânea de apropriação dos mitos?

¾ É possível, extrair princípios que regem os ritos e mitos dos orixás, como fontes inspiradoras do processo de criação, deixando fluir o peso e a densidade da arte contemporânea, ao invés de enquadrá-los em uma possibilidade de comprovação que necessariamente inibe a sua riqueza de sentidos?

Esse conjunto de questões reúne minhas angústias e preocupações impossíveis de serem esgotadas em uma pesquisa de doutorado. Certamente os caminhos em busca de respostas são trilhados durante uma vida inteira, nas experiências em curso, tanto do próprio autor (eu) quanto daqueles que poderão buscar nessa pesquisa referências para outras investigações.

Assim, graças ao poder da incerteza, do ilimitado, inacabado, indeterminado e infindo, mesmo depois de MaréMarê, continuei com essas indagações que, por sua vez, me levaram a outras questões e ao Doutorado com Senhora da Encruzilhada. MaréMarê foi o meu ponto de partida. Por essa razão, precisei retornar a ele para prosseguir e por isso a informação de seu processo torna-se fundamental para o argumento dessa tese.

No processo de MaréMarê, o primeiro procedimento adotado foi a construção do argumento e sinopse seguidas da elaboração do roteiro do filme (em anexo), filmagem e edição. Ao final, MaréMaré me deu indícios de que a dialogia da dança com o audiovisual é capaz de construir um corpo que modifica os contornos físicos, continuamente, tendo os mitos de Oxumaré como facilitadores desse diálogo, conformando novas e múltiplas corporalidades.

A imagem produziu um estado de continuidade gestual, mostrando uma superação da rigidez óssea. A dança criou metáforas e analogias com o audiovisual, gerando um novo espaço de convivência interdisciplinar. Contudo, conforme mencionamos anteriormente, o que vemos é a passagem do movimento ainda incidindo predominantemente na dimensão dos contornos físicos no espaço percorrido.

Logo, na experiência dialógica da dança com o audiovisual, o que vemos em MaréMarê, isto é, o que a imagem mostra é o corpo ganhando uma projeção de mundo, uma dimensão poética, desenhando formas e variando os contornos contínua e harmoniosamente no ambiente, isto é, no espaço percorrido, predominantemente.

Avaliei, com a equipe de realização de MaréMarê (Grupo PECDAN), que o primeiro ensaio inspirado em Oxumaré era um ponto de partida indispensável, na direção do corpo poético-dançante que almejava - um Corpo co-habitante de múltiplos espaços e temporalidades que ganha dimensões poéticas, ao estabelecer relações com variados mundos simbólicos, prolongando-se infinitamente em si mesmo e no outro, consigo mesmo e com os outros, para além de si mesmo, continuando assim a prolongar-se ininterruptamente.

Contudo, embora o filme nos tivesse dado pistas potentes com relação ao corpo investigado, ainda se apresentavam insuficientes. A seguir discorro sobre essas pistas. A imagem mostra corporalidades em permanente deslocamento, sinalizando para uma reconstituição contínua e linear do tempo e do espaço. Constatei que, apesar das diversas corporalidades alcançarem uma poética, no diálogo da dança com o audiovisual o corpo aparece ainda delimitado nos contornos físicos. É certo que esses contornos sofrem sucessivas modificações prolongando-se, mas não chegam a ganhar uma expansão onírica, de Mundo, prolongando-se como um continuum.

Entendi então, que eu precisava investigar se, na experiência do diálogo da dança com o audiovisual existe um potencial poético-dançante para um Corpo como dilatação, expansão, prolongamento. Mas para tanto eu precisava verificar também, os princípios norteadores de um processo de produção dialógico da dança com o audiovisual. Resolvi então prosseguir no caminho da pesquisa, a luz das simbologias da Pombagira, uma vez que percorria uma trajetória de vida, imbuída da energia dessa entidade do universo sagrado.

Assim, investi em um novo ensaio, Senhora da Encruzilhada, com o intuito das verificações acima referidas. Como em MaréMarê, o campo de observação foi novamente o campo da experimentação, isto é, da prática artística. Contudo, com os dados obtidos de MaréMarê, entendi que, agora, em Senhora da Encruzilhada, precisava intensificar a conjugação das pesquisas corporais aos laboratórios de roteiros e experimentações audiovisuais, com base em simbologias da Pombogira, desta vez, minha fonte de inspiração e fio condutor do processo criador.