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A experiência italiana de repressão ao crime organizado

5. Macrocriminalidade e crime organizado

5.1. A experiência italiana de repressão ao crime organizado

Quando o assunto é repressão ao crime organizado, logo vem a lume a experiência italiana nesse campo, que teve seu apogeu com a denominada “Operação Mãos Limpas”.

Ao longo de séculos, a sociedade italiana convive com as chamadas máfias, organizações criminosas de grande envergadura, que obtêm lucros exorbitantes atuando em atividades francamente ilícitas, como o tráfico de drogas (em especial heroína), extorsões disfarçadas de venda de proteção, evasão fiscal, assassinatos, fraude em concorrências públicas e corrupção ativa, e em atividades aparentemente lícitas, fomentadas com o capital reciclado de origem criminosa142.

As associações de modelo mafioso estão estruturadas em princípios rígidos de hierarquia e disciplina. Seus integrantes são recrutados mediante rigorosa seleção e inseridos em seus postos após juramentos solenes, verdadeiros “contratos para a vida”143. Contam com ramificações armadas para fazer valer pela força a vontade de seus líderes. São identificadas, conforme a legislação penal italiana, “pela intimidação (intimidazione), interna e difusa (chegando a atentados de matriz terrorista, como os recentemente ocorridos em Firenze: museu Uffizi e Roma); pelo perpétuo vínculo hierárquico (assoggettamento); e pela manifestação de silêncio,

141 Nesse sentido, Wilson Lavorenti assinala que “parte da criminalidade continua sendo praticada de

forma tradicional e atacando bem jurídicos individuais. Para essa criminalidade, temos formas de atuação apropriadas, contempladas no ordenamento jurídico existente. Por outro lado, parte da criminalidade surge de forma diferenciada, atuando de maneira organizada, complexa, menos ostensiva, com possibilidade de distanciamento entre vítima e autor, aproveitando-se de meios tecnológicos e da globalização, garantindo a sua impunidade e aproveitando-se de um ordenamento jurídico que ainda se busca encontrar dentro de toda essa complexidade” (LAVORENTI, Wilson e SILVA, José Geraldo da. Crime organizado na atualidade. Campinas: Bookseller, 2000, p. 18).

142 No sentido do texto, MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. A ética judicial no trato funcional com as

associações criminosas que seguem o modelo mafioso. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (coord.). Justiça penal - 3: críticas e sugestões. O crime organizado (Itália e Brasil). A modernização da lei penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 80.

143 COSTA JÚNIOR, Paulo José e PELLEGRINI, Angiolo. Criminalidade organizada. São Paulo:

omertà, conseguida junto à população”144. No desempenho de suas atividades, tais associações atuam simultaneamente em campos flagrantemente ilegais (como o tráfico de drogas, a exploração dos jogos de azar, o contrabando, o tráfico de armas, o lenocínio, etc) e em atividades aparentemente lícitas (o que fazem com o emprego do dinheiro criminoso lavado e, ao depois, investido em empreendimentos imobiliários, turísticos, artísticos, no mercado de valores, etc).

Recentemente145, a Itália elegeu o combate ao crime organizado como prioridade política.

A legislação italiana passou a reconhecer duas formas de associações criminosas: as comuns, que são as quadrilhas ou bandos sem natureza de perpetuidade e sem programas de governo, e as de modelo mafioso, que, são “associações complexas, com programa delinqüencial de execução ininterrupta e estratégia de infiltração no Estado-legal”146.

Para o enfrentamento dos crimes praticados pelas associações dessa última espécie reformularam-se os organismos policiais, o Ministério Público e a magistratura, o sistema prisional e, fundamentalmente, o processo penal147. O novo aparato repressivo do Estado e os inéditos instrumentos processuais obnubilavam

144 MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. As associações criminosas transnacionais. In: PENTEADO,

Jaques de Camargo (coord.). Justiça penal - 3: críticas e sugestões. O crime organizado (Itália e Brasil). A modernização da lei penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 62.

145 Paulo José da Costa Júnior explica que, até 1980, a Cosa Nostra, uma das principais

organizações mafiosas, era ainda “misteriosa e indecifrável”. Até então, somente eram submetidos à justiça os executores materiais dos crimes. Chefes e mandantes permaneciam impunes. Remonta àquele período uma nova concepção na repressão das organizações mafiosas, cujo foco, antes restrito às ocorrências delituosas, ampliou-se para a organização como um todo. A partir daí, o governo buscou desarticular essas associações, golpeando-as em seus pontos estruturais, que são suas alianças políticas e seus interesses financeiros (COSTA JÚNIOR, Paulo José e PELLEGRINI, Angiolo. Criminalidade organizada. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999, p. 16).

146 MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. Op. cit., p. 61.

147 Armando Spataro, em conferência realizada no dia 13 de setembro de 1996, pelo Seminário

Internacional “Drogas: debate multidisciplinar”, no Memorial da América Latina, destacou quatro aspectos da resposta institucional italiana contra a máfia, a saber: “a) a especialização da magistratura inquirente (Ministério Público), com a criação da Direção Nacional Antimáfia (DNA), assim como da Direção Distrital Antimáfia (DDA); b) a especialização da força policial; c) restrições carcerárias em relação aos mafiosos detidos (uma visita ao mês, restrições telefônicas, interceptação dessas comunicações, censura nas correspondências etc); d) atenuantes especiais e eficaz proteção em relação aos colaboradores processuais (hoje cerca de 1200 arrependidos estão sob proteção do Estado italiano), punição da ‘lavagem de dinheiro’” (Apud: GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Crime organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal. 2ª. ed. rev., atual. e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 53).

direitos e garantias individuais dos acusados, mas este ônus a sociedade haveria de suportar à vista da elevada finalidade desses institutos. Era o preço do combate ao câncer social. Parte da doutrina divisou, nessa empreitada, um novo direito ou um direito de emergência ou de exceção148.

As novas leis editadas para o enfrentamento do crime organizado poderiam ser agrupadas, segundo a doutrina149, em quatro categorias: (a) a legislação antiterrorismo; (b) a legislação anti-seqüestros; (c) as medidas de proteção aos denominados “colaboradores da justiça”; e (d) a legislação antimáfia.

A legislação antiterrorismo (Dec.-lei 625/79, convertido na Lei 15/80; e Lei 304/82) cuidou de estabelecer o conceito de organizações destinadas a cometer atos de violência para fins de terrorismo ou de subversão do ordenamento constitucional. Tipificou o crime de seqüestro, quando cometido com os mesmos fins (arts. 270 bis, 280 e 289 do Código Penal). Estabeleceu o regime jurídico do arrependido, do dissociado e do colaborador150.

148 Para Luigi Ferrajoli, consoante o testemunho de Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, a legislação

excepcional somente se tornou viável porque nascida no seio de uma verdadeira “cultura de emergência”. Inicialmente (entre 1974 e 1978) impunha-se lutar contra o terrorismo. E, aí, ampliaram- se os poderes da polícia. Depois, a legislação enfocou a magistratura (ministério público e juízes), fazendo que ela assumisse o controle da repressão ao terror, pela lida com os arrependidos. Nesse ponto, o processo penal já se apresentava como uma “máquina incontrolável sem as garantias tradicionais em favor do processado”. Na terceira fase, observada nos anos oitenta, o objetivo já não era o terrorismo, mas o crime organizado, o tráfico internacional, a criminalidade econômica e financeira, a corrupção política e administrativa, etc. Leis especiais são editadas e acabam por incidir sobre o código de processo penal de 1988, descaracterizando-o. Estabelecem o agravamento de penas, regime jurídico especial para o arrependido, o dissociado e o colaborador, ampliação do prazo da prisão preventiva, arresto de bens de pessoas próximas da vítima de seqüestro, proteção dos colaboradores da justiça, inversão do ônus da prova, inabilitações profissionais, utilização de prova emprestada, prisão cautelar obrigatória, direito premial, etc. (GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Crime organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal. 2ª. ed. rev., atual. e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 54).

149 GRINOVER, Ada Pellegrini. O crime organizado no sistema italiano. In: PENTEADO, Jaques de

Camargo (coord.). Justiça penal - 3: críticas e sugestões. O crime organizado (Itália e Brasil). A modernização da lei penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 15.

150 Segundo Ada Pellegrini Grinover, o arrependido é aquele que, antes da sentença condenatória

“dissolve ou determina a dissolução da organização criminosa; se retira da organização, se entrega, sem opor resistência ou abandona as armas, fornecendo, em qualquer caso, todas as informações sobre a estrutura e organização da societas celeris; impede a execução dos crimes para os quais a organização se formou; comete o crime de favorecimento com relação a membro da organização, mas fornece completa informação sobre o favorecimento”, sendo beneficiado com a extinção da punibilidade. O dissociado, a seu turno, é aquele que, antes da sentença condenatória, “se empenha com eficácia para elidir ou diminuir as conseqüências danosas ou perigosas do crime ou para impedir a prática de crimes conexos e confessa todos os crimes cometidos”. O dissociado é contemplado com diminuição especial da pena de um terço (não podendo superar os quinze anos) e substituição da pena de prisão perpétua pela de reclusão de quinze a vinte e um anos. O colaborador, finalmente, é

A legislação anti-seqüestros (Lei 849/80, Dec.-lei 8/91 e Lei 82/91) conferiu nova redação ao artigo 630 do Código Penal, aumentando a pena e instituindo a prisão perpétua. Outra vez, referiu-se à figura do dissociado. Estabeleceu a indisponibilidade automática dos bens da pessoa seqüestrada, dispondo que o Ministério Público deve requerer o arresto dos bens da vítima, medida esta que pode ser estendida ao patrimônio de outras pessoas próximas a ela. Podem ser declarados nulos os negócios jurídicos praticados com o objetivo de fazer chegar o preço do resgate aos autores do seqüestro. Passou-se a admitir as operações policiais controladas pelo juiz e MP.

A proteção aos colaboradores da justiça está prevista, especialmente, na Lei 82/91 (originariamente o Dec. 8/91), a mesma que dispõe sobre o crime de seqüestro. Referido diploma manda que se adotem medidas idôneas a assegurar a incolumidade e assistência às pessoas presas e a seus parentes quando expostos a perigo em razão da colaboração com autoridades policiais e judiciárias. A lei dispõe sobre o programa especial de proteção, que pode abranger, inclusive, assunção de nova identidade.

A legislação antimáfia foi reformulada pela Lei 55/90. Definiu-se a organização do tipo mafioso, como aquela “formada por três ou mais pessoas, em que os que a integram se valem da força de intimidação do vínculo associativo e da condição de sujeição e silêncio que dela deriva para cometer crimes, para adquirir de modo direto ou indireto a gestão ou o controle de atividades econômicas, de concessões, autorizações, empreitadas e serviços públicos, ou para auferir proveitos ou vantagens injustas para si ou para outrem” 151. Tornou obrigatório o confisco dos instrumentos do crime e de seu produto. Introduziu no processo penal a inversão do ônus da prova acerca da procedência dos bens, cumprindo ao acusado demonstrar a origem legítima de seu patrimônio. Estabeleceram-se inabilitações ligadas à

aquele que, antes da sentença condenatória, além dos comportamentos já especificados, “ajuda as autoridades policiais e judiciárias na colheita de provas decisivas para a individualização e captura de um ou mais autores dos crimes ou fornece elementos de prova relevantes para a exata reconstituição dos fatos e a descoberta dos autores”. Para o colaborador, a lei italiana prevê redução da pena até a metade (ou até um terço, se a colaboração é de excepcional relevância), não podendo superar os dez anos, ou a substituição da prisão perpétua por pena reclusiva de dez a doze anos. (GRINOVER, Ada Pellegrini. O crime organizado no sistema italiano. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (coord.). Justiça penal - 3: críticas e sugestões. O crime organizado (Itália e Brasil). A modernização da lei penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 16).

atividade empresarial ou a contratos com o Estado. Novos crimes econômicos foram descritos. A Polícia Judiciária teve seus poderes ampliados e foi reorganizada.

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