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A fala e a escrita do diário: A constituição do discurso não linear

Podemos dizer que os conceitos e as perspectivas do diário e de seu uso apresentados na discussão até aqui arrolada parecem enxergar o autor dessa escrita como indivíduo, isto é, in-diviso: uno, completo, inteiro (CORACINI, 2003a; 2005), e sua escrita, por conseguinte, também inteira, linear, transparente e homogênea. Defende-se nesse caso o sujeito cognoscente, cartesiano, ou seja, o sujeito capaz de se automonitorar, podendo controlar tanto sua escrita quanto seu processo de aprendizagem e trilhar esse caminho de forma crítica, consciente e autônoma. Para avançarmos no presente estudo, no entanto, precisamos agora falar de um sujeito que se constitui via linguagem, cujo discurso (escrita/fala) escapa à linearidade muitas vezes pressuposta no ensino, sobretudo, nos domínios da LA.

Discorrendo sobre sujeito no ensino-aprendizagem de LE, Neves (2002) afirma que no discurso da LA parece predominar o sujeito-origem26 formador da identidade que referencia o aprendiz bem sucedido – “bom aprendiz” – aquele que é capaz de monitorar bem suas próprias estratégias de aprendizagem, a fim de alcançar seus objetivos no processo. Buscando a origem histórica da palavra aprendiz, podemos dizer que este conceito foi constituído segundo “um esquema de racionalidade pelo qual as crianças deveriam ser medidas para avaliar o desenvolvimento de personalidades e estágios de cognição” (POPKEWITZ, 1995, p. 178). Historicamente, nesse contexto, foram desenvolvidas tentativas de medir sistemas abstratos das idéias dessas crianças (aprendizes) ao mesmo tempo em que suas identidades eram re-vistas e re-classificadas.

Alguns autores no campo da LA (ELLIS & SINCLAIR, 1989; RUBIN, 1975, entre outros), apresentam listas nas quais algumas características do bom aprendiz são agrupadas. Dessas características, destacamos as seguintes: o bom aprendiz aprende a partir das situações de comunicação; geralmente não é inibido; não tem medo de cometer erros; monitora seu

26 Authier-Revuz (1998) propõe duas formas de conceituação do sujeito e de sua relação com a linguagem. A

primeira, segundo a autora, refere-se ao sujeito-origem, ou seja, o sujeito “da psicologia e das suas variantes neuronais ou sociais” (p. 16); nessa perspectiva, o sujeito é concebido como indivíduo uno, estável, autônomo e dono de seu próprio dizer. Já a segunda, referente à perspectiva que aqui nos importa, trata-se do sujeito-efeito, relativo ao sujeito assujeitado ao inconsciente, o da psicanálise; aquele da posição enunciativa, logo, constitui- se sujeito quando fala das/nas relações sociais.

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progresso; aprende com os próprios erros (RUBIN, 1975) e sabe que aprender uma LE requer muito trabalho e tempo (ELLIS & SINCLAIR, 1989, p. 6). Podemos apontar o modo como essas características produzem sentidos na escrita do diário. Assim, de alguma forma elas se fazem presentes nessa escrita, ainda que funcionem apenas no plano do ideal, como vozes que ecoam da concepção de bom aprendiz e preenchem a escrita do diário na ilusão de assim ser, problematizada ao apontarmos na própria escrita, elementos que contradizem tais características.

Daí a noção de uma identidade fixa e acabada de um in-divido passível de ser medido, treinado, controlador e controlado. Em nossa pesquisa, no entanto, falamos não em identidade fixa e acabada, mas sim em momentos de identificação, que são compreendidos "como um processo em movimento, em que o sujeito se constitui pela multiplicidade de discursos, pela heterogeneidade e pelo descentramento de si" (ECKERT-HOFF, 2003, p. 288) e caracterizados pela infindável busca pelo desejo do outro. A identificação se dá, segundo Nasio (1989), a partir de processos psíquicos internos ao sujeito, por meio dos quais ele internaliza relações com o mundo a sua volta.

No intuito de contribuir com as discussões e a utilização do diário, nos aproximamos então das correntes teóricas que entendem o sujeito como efeito de linguagem. Buscamos em conceitos da psicanálise suas formas de constituição, não em uma "fala homogênea", mas na diversidade de uma "fala heterogênea" que é conseqüência de um sujeito dividido entre o consciente e o inconsciente (CARDOSO, 2003, p.88) constituído no interdiscurso, ou seja, naquilo que fala antes em outro lugar, o já-dito, ou nas palavras de Pêcheux (1995, p.162), o “todo complexo com dominante”, uma objetividade material que reside no fato de que algo sempre fala antes, em outro lugar e de forma independente. É por meio do interdiscurso que os dizeres que ressoaram de outros lugares, em outros tempos (já-dito) ganham espaço naquilo que é enunciado para a formação de um discurso atual (ou, intradiscurso27 que é a linearidade do enunciado). Isso faz com que também consideremos o interdiscurso como memória em sua relação como discurso (memória discursiva28). Segundo Orlandi (1999, p.

31), ela é

27 O intradiscurso pode ser ainda definido como o eixo da formulação de um discurso em um dado momento; é o

fio do discurso, isto é, o que é dito naquele momento segundo determinadas condições (PECHUX, 1995; ORLANDI, 1999).

28 Segundo Agustini (2005), muito comumente os conceitos de memória discursiva e interdiscurso aparecem

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o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré- construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.

Precisamos considerar, nos domínios do ensino-aprendizagem de LE, que nenhuma palavra é neutra de significado, de modo que todo discurso está prenhe da presença de outros e, portanto, devemos apontar sua não-linearidade no próprio fio do discurso. Assim, consideramos que tanto a escrita do diário quanto a fala29 sobre essa escrita apresentam uma forma nada linear, nada transparente. Concordando com Authier-Revuz (2004, p. 69), afirmamos que:

todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos “outros discursos” e pelo “discurso do Outro”. O outro não é um objeto exterior, do qual se fala, mas uma condição constitutiva para que se fale do discurso de um sujeito falante que não é fonte primeira desse discurso.

A partir da autora, podemos discutir dois tipos de heterogeneidade, a saber, a heterogeneidade mostrada e a constitutiva, conceitos muitos importantes para esse estudo. A heterogeneidade mostrada se refere às marcas explícitas do discurso, que são lingüisticamente descritíveis e que apontam para a presença do outro no próprio discurso, tais como discurso direto/indireto, aspas, itálicos, incisas30, ironia etc. Já a heterogeneidade constitutiva é o princípio fundamental da linguagem e diz respeito ao já-dito (interdiscurso) e ao inconsciente – o Outro, sendo este, para Lacan, o lugar de deslocamento do discurso. Segundo Teixeira (2005, p. 150):

a linguagem é duplicada numa outra cena pela própria linguagem e isso se deixa surpreender na linearidade, através de rupturas, choques, desvios. O discurso não se reduz a um dizer explícito; ele traz em si mesmo o peso de um Outro, que ignoramos ou recusamos, cuja presença permanente emerge sob a forma da falha.

Nosso papel é, pois, indagar essa escrita definida como uniforme e que pressupõe um sujeito uno e controlador tanto de seu dizer, quanto de seu lugar na constituição de seu saber em LE. Devemos então prosseguir procurando apontar não um discurso homogêneo e transparente, mas um discurso que em sua linearidade aparente podem ser flagradas outras vozes que falam também a partir desse sujeito e que são resultantes “de outras que se cruzam e se imbricam, para, na dissonância constitutiva, produzir a harmonia do discurso”

se fazer discursivisar (construção dos sentidos) é, segundo a autora, “recortado em unidades significantes, constituindo-se em memória discursiva. Portanto, a memória discursiva é constituída por aqueles sentidos possíveis de se tornarem presentes no acontecimento da linguagem” (AGUSTINI, 2005, p. 2).

29 Referimo-nos às entrevistas realizadas com alunos que escreveram os diários. Conforme será indicado na

metodologia.

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(CORACINI, 2003b, p. 208). Acreditamos, contudo, que essa harmonia não é perfeita, e que, por isso, equívocos, conflitos e contradições devem ser apontados, sendo esta uma de nossas propostas. Aliás, acreditamos que são as contradições que mobilizam a heterogeneidade constitutiva de todo discurso, dando corpo ao nosso trabalho de escuta que, segundo Authier- Revuz (2004, p. 53) “é de recorte, de pontuação, de eco e que se efetua sobre a materialidade da cadeia falada”.