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A falaciosa justificativa do Pacote Anticrime

3. PASSO PARA TRÁS: A REDUÇÃO DA PROTEÇÃO QUE JÁ ERA INSUFICIENTE

3.2 A falaciosa justificativa do Pacote Anticrime

Como afirmado no item 1.4.2 deste trabalho, o projeto de lei convertido na lei 13.964/2019 fundamenta o aumento do limite de cumprimento da pena restritiva de liberdade em 10 (dez) anos por considerar a significativa mudança na expectativa de vida da população brasileira. Todavia, percebe-se que o aumento da esperança de vida de modo geral no país não impõe necessariamente aumento da expectativa de vida da população carcerária, a qual é diretamente afetada pela alteração provocada pelo pacote anticrime.

Considera-se, portanto, que a justificativa se mostra ao menos superficial, por não esmiuçar e especificar o próprio argumento, demostrando a ausência absoluta de accountability, muito presente nas reformas penais nacionais, nas quais “não há transparência nas justificativas; não se medem resultados; não se prestam contas; não se analisam experiências anteriores para projetar ações futuras. Em síntese: inexiste responsabilidade político-criminal” (2019, CARVALHO, p. 171). Diante disso, a justificativa do pacote anticrime, caso desejasse fundamentar o aumento do limite do tempo de cumprimento das penas com o aumento da

expectativa de vida, deveria responder os seguintes questionamentos: “quem são as pessoas presas no Brasil?” e “qual é a expectativa de vida dessas pessoas sob as condições do sistema penitenciário brasileiro?”.

Isso porque tratar a população brasileira branca/ negra, rica/ pobre, presa/ não presa como uma massa homogênea, desconsiderando os distintos índices de qualidade de vida nas diferentes regiões do país parece provocar situações de flagrante inconstitucionalidade vez que contraria um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previsto no inciso III do artigo 3º da Constituição da República. Nesse sentido, cita-se dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional, que entre o período de julho de 2019 a junho de 2020 reportou 2.400 (duas mil e quatrocentas) mortes nas unidades prisionais monitoradas (BRASIL, 2020). Entre as causas de falecimento, saltam aos olhos o número de mortes não naturais que representam cerca de 38% (trinta e oito) do número total. Das não naturais, os suicídios chegam a 184 (cento e oitenta e quatro), as mortes acidentais a 22 (vinte e dois), as sem causa conhecida ao número de 380 (trezentos e oitenta) e, por fim, 324 (trezentos e vinte quatro) criminosas.

Ademais, importante notar o número de pessoas portadoras de infecções sexualmente transmissíveis. Em junho de 2020, havia 7.469 (sete mil quatrocentos e sessenta e nove) pessoas infectadas com o vírus da imunodeficiência humana (HIV), entre elas 6.465 (seis mil, quatrocentos e sessenta e cinco) homens e 1.004 (mil e quatro) mulheres. Esse número espanta principalmente por representar mais de 10% do total da população carcerária, visto que em junho de 2020 havia 702.069 (setecentas e dois mil e sessenta e nove) pessoas presas. Sobre o tema, Chies e Almeida relatam que “a taxa de óbito por causas externas por 100 mil habitantes no Brasil é significativamente mais elevada na população encarcerada (95,23) do que na população em geral (29,1)” (2018, p.88).

Nessa esteira, outro dado também importante e referente ao atual momento de calamidade pública trata-se sobre a COVID-19, que em uma instituição total superpopulada e em precárias situações sanitárias se transmite em uma velocidade de 8 a 10 vezes superior à sociedade livre (ZAFFARONI, p.41, 2020). Estudo realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro questiona o “caráter democrático do vírus”, demostrando o elevado índice de letalidade dentro das unidades prisionais brasileiras:

“Tal desigualdade se manifesta de forma ainda mais forte quando se comparam os números de contágio dentro e fora do sistema prisional. Em uma população prisional de 748.009 pessoas há 4.045 casos confirmados e 59 óbitos decorrentes de Covid-19 (DEPEN, 2020), o que, segundo o parecer da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ) com a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) (Grupo de Trabalho Interinstitucional de Defesa da Cidadania, 2020) expõe que as taxas de incidência e de mortalidade são, respectivamente, até 38 vezes, e 9 vezes superiores à da população em geral. Tais números colocam o Brasil como o quarto país com mais pessoas privadas de liberdade diagnosticadas com Covid-19 no mundo.” (COSTA, SILVA, BRANDÃO e BICALHO, 2020).

Assim, a saúde física e psicológica das pessoas presas se mostra nitidamente prejudicada pela condição de estar encarcerada, não havendo como aplicar dados colhidos levando em consideração toda a população nacional para representar a qualidade e expectativa de vida da população encarcerada, muito menos razão assiste que estes mesmos dados sejam usados para fundamentar redução de direitos desse grupo de pessoas. Deve-se ponderar, ainda, o grande percentual de pessoas negras que compõe o complexo prisional. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, 301.621 (trezentas e um mil, seiscentas e vinte e um) das pessoas presas são pardas e 96.195 (noventa e seis mil, cento e noventa e cinco) das pessoas presas são pretas. É dizer, 397.816 (trezentas e noventa e sete mil, oitocentas e dezesseis) pessoas negras estavam presas em junho de 2020, representando 66,31% de toda a população prisional. Nesse sentido, o levantamento de dados divulgado pela Casa Fluminense afirma que a diferença da expectativa de vida entre brancos e negros no Brasil é de cerca de 8 (oito) anos a mais para a população branca (BRASIL, 2020).

Dessa maneira, o que se busca afirmar nesse tópico, é que diferente do apresentado pelo projeto de lei que culminou na modificação no aumento do limite máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade, não se pode ignorar as especificidades da situação do sistema carcerário brasileiro, o Estado de Coisas Inconstitucional reconhecido pelo STF, a diferença de qualidade de vida dentro e fora dos presídios, a significativa presença de corpos negros criminalizados, o enfraquecido sistema de saúde nessas instituições e a violência vivenciada nesses locais. Nessa esteira, Nilo Batista ensina que o juiz ao aplicar a pena restritiva de liberdade deve levar em conta não só o dever ser, o direito penal abstrato aplicado no caso, mas sim “a realidade letal” dos sistemas penais concretos (página 91, 2018). Assim, indaga-se: quando considerada a realidade institucional brasileira, estipular o patamar máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade em 40 (quarenta) anos é suficiente para dar cabo ao mandado constitucional de vedação das penas de caráter perpétuo?