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CAPÍTULO 3 – VIOLÊNCIA FAMILIAR E MAUS-TRATOS ÀS CRIANÇAS E JOVENS

3.1. A Família como Espaço de Violência Doméstica

A família é hoje idealizada como um lugar seguro, como fonte de carinho, protecção e bem-estar, ocupando, na vida dos indivíduos, um lugar considerado de extrema importância na procura da felicidade pessoal (Almeida e Wall, 1995). Segundo Casimiro (2002), a família é entendida como um espaço em que os seus diversos elementos podem encontrar a compreensão e ajuda necessárias à manutenção de uma vida emocional e afectiva estável.

No entanto, de forma paradoxal, embora a família seja representada por um local de estabilidade, afeição, pólo de construção de uma identidade e de uma revelação em si, e ainda entendida como «refúgio» contra as pressões sociais a que os indivíduos estão sujeitos, vários estudos parecem apontar a instituição familiar como sendo também, surpreendentemente, uma das mais violentas: afectividade e violência podem coexistir no seio das relações familiares, nomeadamente na relação conjugal (Casimiro, 2002). Como referem Almeida et al. (1999), o meio sócio-familiar pode ser visto como unidade de análise dentro da contextualização dos maus-tratos.

Os processos de mudança e a evolução da família deram origem a formas atípicas de conjugalidade designadas genericamente de família incerta. Estas novas modalidades de família, ao tornarem menos rígida e mais flexível a sua estrutura, erradicam alguns focos de conflitualidade, mas fazem também crescer outros.

São, com efeito, vários os estudos que nos dão conta da conflitualidade e violência que se tem gerado no seio da família. Refúgio da intimidade e da privacidade, o lar é também um espaço particular de agressividade e violência – maus-tratos infantis, desde as simples sevícias e negligência, até às autênticas torturas que terminam em morte; incesto; violência sexual; violência conjugal que têm constituído uma verdadeira violação dos direitos humanos no seio da família (Almeida et al., 1999). Estes e outros tipos de violência serão abordados mais à frente neste capítulo.

Os mais atingidos por esta violência têm sido as crianças, as mulheres e os idosos, dadas as situações de grande fragilidade e vulnerabilidade social em que se têm encontrado. É de salientar que na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, que teve lugar em Viena, em 1993, a violência contra as mulheres e crianças foi considerada o maior crime contra a Humanidade, tendo mais vítimas do que qualquer guerra mundial (Pais, 1998).

Trata-se de uma violência que, por diversos motivos, tem sido silenciada, tendo ocupado um “lugar secreto” na conjugalidade, continuando ainda hoje muito oculta, não só devido à pressão social para a não denúncia, como também a imperativos de ordem sócio-cultural, pelo que tem sido considerada um comportamento normal, tradicional e socialmente legitimado na relação entre os conjugues. Os conjugues fogem à sua publicitação em defesa da manutenção do casamento que desejam ver preservado e respeitado; as crianças mostram-se incapazes de fazer valer os seus direitos e, desejosos de protecção, acomodam- se à agressividade, abandono e maus-tratos a que são votados. Recentemente, em Portugal, Lourenço, Lisboa e Pais18 (cit in Pais, 1998), demonstraram como a violência psicológica é, de um modo geral, comum a todos os estratos sociais, estando a física mais localizada nos estratos sociais baixos.

Com efeito, são vários os estudos que apontam a família como o espaço onde existe maior violência. Por exemplo, 25% da criminalidade registada ocorre no seio da família, percentagem que tende a aumentar significativamente se toda a violência que aí ocorre fosse denunciada (Pais, 1998).

A violência familiar não é um problema novo. Trata-se, contudo, de um fenómeno que começou a ser denunciado a partir dos anos 60/70 pelos movimentos feministas que, ao lutarem pela emancipação da mulher e pela sua saída para o mercado de trabalho, transformaram o problema pessoal da violência doméstica em problema social, dando visibilidade a um fenómeno cuja extensão real ainda permanece desconhecida.

O público e o privado, confundíveis nas sociedades tradicionais, diferenciaram-se nas sociedades modernas, tornando-se o privado não só sagrado e inviolável, como ainda um espaço de realização pessoal, onde a felicidade tem lugar. Os processos de privatização da família foram remetendo para a esfera privada a vivência da felicidade e o hipotético reino da harmonia, rodeado de permissividade e tolerância. Esta individualização da existência e privatização da felicidade, que o mesmo é dizer, individualismo da sociedade e organicismo da família, produzem, entre si, profundas tensões e alteram o tecido social, sobretudo familiar, que se torna mais permeável à conflitualidade e à violência. A família passa, então, a ser o palco de expressão de duas lógicas opostas – individualismo e privatização – cuja coexistência é geradora de tensões e conflitualidades diversas, onde a violência pode emergir (Pais, 1998).

Nesta linha, e embora se considere a estrutura da família patriarcal a principal fonte de violência, Davis19 (cit in Pais, 1998), diz que a história da violência familiar é a história da percepção da mudança social, da mudança dos tradicionais papéis atribuídos a ambos os sexos, bem como da alternância dos poderes e da centralidade de apenas um dos conjugues no seio da família.

Segundo Dias (2004: 31), “apesar de conhecido uma sentimentalização crescente em todos os seus domínios, a família, nas sociedades actuais, não está completamente desprovida de violência. O paradoxo reside, então, numa família que dá de si a imagem de um lugar de afectividade, de privacidade e de autenticidade, mas que é, também, um lugar de sujeição e

de exercício da violência sobre os seus membros, nomeadamente sobre as crianças, as mulheres, os idosos e inclusive, os homens”.

Por tudo isto, verifica-se assim que em contextos de modernidade, as pessoas são confrontadas com situações contraditórias e paradoxais, onde questões de permanência e mudança se colocam com grande equidade (Pais, 1998).