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A fase construtiva do discurso: a visibilidade geométrica e os indícios de um futuro

CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA CABRALINA EM EXERCÍCIO

2.3 A fase construtiva do discurso: a visibilidade geométrica e os indícios de um futuro

Na tentativa de aprimorar a plasticidade anunciada nas primeiras obras, o poeta propõe, no livro O engenheiro (1942-1945), um projeto geométrico de construção para os seus poemas, evidenciando a objetividade e a clareza como procedimentos ideais no ato da concretização de sua linguagem. Como já observamos, nesta obra, acentuam-se os diálogos com nomes como de Le Corbusier, Joaquim Cardozo, Vicente do Rego Monteiro e outros, cujas obras reforçam a perspectiva de um fazer artístico modulado pela busca da visibilidade. Por outro lado, ressaltamos que, nesses poemas, há o propósito simultâneo de alcançar o potencial expressivo da linguagem e de esclarecer a perspectiva do discurso, através da proposição de que o entendimento do poema depende da lógica de sua composição. Essa lógica, lembramos, não se limita apenas à simetria do texto ou à depuração do subjetivismo, mas se estabelece no uso enfático de palavras concretas para corporificar o pensamento, convertê-lo em imagem viva, pois, segundo ele, “é muito mais fácil eu dar a ver com palavras concretas, que se dirigem aos sentidos, do que usando palavras abstratas.”(MELO NETO, 1989) O final do poema “A lição de poesia” explicita a lógica pretendida:

A luta branca sobre o papel que o poeta evita,

luta branca onde corre o sangue de suas veias de água salgada. A física do susto percebido entre os gestos diários;

susto das coisas jamais pousadas porém imóveis – naturezas vivas. E as vinte palavras recolhidas nas águas salgadas do poeta e de que se servirá o poeta em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas de que conhece o funcionamento, a evaporação, a densidade menor que a do ar.

(MELO NETO, 1986, p.355)

As vinte palavras recolhidas darão sentido à objetividade do poeta na medida em que darão corpo ao seu pensamento, tornando vivas as suas percepções. Nesse sentido, a base do racionalismo cabralino pressupõe um tipo de experiência estética que fratura o modelo da tradição realista brasileira, uma vez que, segundo Angélica Soares (1978), o exercício da visualização em Cabral é levado às últimas conseqüências, até que o aspecto plástico se sobreponha ao discursivo na poesia desse autor. Costa Lima, antes disso, já tinha alertado para o fato de que o aspecto pictórico da poesia cabralina “importa ser considerado à medida que indica um elo mediatizador com a realidade.” (1968, p.260).

Com o receio de repetir aspectos já discutidos à exaustão pelos críticos acerca dos livros que compõem a fase construtiva da poética cabralina, assinalamos, de forma sucinta, que livros seguintes, como Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1946-1947), Uma faca só lâmina (1955), Serial (1959-1961) A educação pela pedra (1962-1965): e A escola das facas (1980) são textos que, resguardadas as suas diferenças,

confirmam a trajetória de João Cabral, enquanto aquele poeta que continuamente pesquisa processos de construção poética que possam dar a ver o seu objeto, sem se limitar apenas ao rigor formal ou à geometrização do discurso, mas que aprende as quatro lições da pedra: a de dicção, a de moral, a de poética e a de economia, como ressalta João Alexandre Barbosa (1975, p.227):

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições de pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la.

Depois de aprendidas as quatro lições da pedra, somos levados a articular as relações existentes entre essas quatro lições e o espaço-sertão onde a pedra se instala:

Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma. (MELO NETO, 1986, p.11)

Por se encontrarem em “um território ostensivamente mineral”, como lembra Secchin (1999, p. 236), as imagens apresentadas no poema são solidificadas pela linguagem, confundidas com ela. No entanto, é preciso lembrar que, O cão sem plumas (1949-1950) e a maioria dos livros publicados depois, foram escritos fora do Brasil. Advindas de outros espaços, as imagens cabralinas organizam-se também em conformidade

com esses espaços, como em “Tecendo a manhã”, também de A educação pela pedra (1962-1965):

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro: de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação, A manhã, toldo de um tecido tão aéreo Que, tecido, se eleva por si: luz balão. (MELO NETO, 1986, p. 19)

Inicialmente é importante lembrar que a imagem do grito, trabalhada na primeira estrofe, é revista pelo poeta em vários poemas, como Auto do frade (1984) “Ocorrências de uma sevilhana” e “A entrevistada disse, na entrevista”47, do livro Agrestes (1985). Nos quatro momentos, está relacionada à medida de distância, como reza a cultura espanhola. No dizer do poeta: “Talvez eu tenha me repetido porque achasse que não tinha sido ainda explorada completamente essa metáfora, essa imagem”(MELO NETO, 1989). Assim, no poema em estudo, o grito sugere a marcação do espaço entre os galos, possibilitando ao leitor a configuração geométrica dos fios do sol, da teia tênue, da tela e da tenda/toldo, da

manhã.

Além desse aspecto, ao atentarmos para as estratégias de composição do poema, observamos que o texto resulta de um intenso trabalho intelectual. O poeta afirma que

gastou dez anos para concluí-lo. Na sua rigorosa elaboração, percebemos uma articulação de diferentes planos de percepção do real e de representação de valores a partir de metáforas sinestésicas que envolvem o olhar, a audição e o tato, as quais nos remetem a dimensões de espaço e tempo em poesia.

Nesse caso, o uso de palavras concretas corporifica a idéia de um amanhecer, ou seja, dá corpo a uma imagem abstrata. A concretude da manhã é sugerida inicialmente pelo verbo usado no título do poema: Tecendo a manhã. O ato de tecer é tátil, depende das mãos daquele que tece. Além do mais, sugere uma marcação temporal, pois exige paciência e cuidados, é lento.

Quanto à representação de valores, quando um galo tece, ele adota o mesmo princípio produtivo de uma aranha, isto é, implica um trabalho que enreda outros seres, outros galos, que ao final, entram e se entretendem todos no toldo da manhã. A sonoridade do canto conjunto dos galos também é ouvida na aliteração do fonema /t/, que aparece nos últimos versos do poema, reforçando essa idéia de coletividade.

Sem a pretensão de esgotar a leitura do poema em estudo, lembramos que todas essas observações são importantes na medida em que esclarecem os processos de composição do poeta e revelam as formas de intercurso dessa literatura com outras linguagens artísticas.

No sentido de evitar análises exaustivas de poemas pertencentes a todos os livros de João Cabral, neste capítulo selecionamos alguns textos, nos quais tentamos evidenciar os fundamentos do projeto visual de João Cabral e os seus modos de organização diante das exigências da vida moderna. Nos capítulos seguintes, continuamos delimitando nosso

corpus, restringindo nossas análises apenas aos poemas que, de algum modo, explicitam os

2ª PARTE

JOÃO CABRAL DE MELO NETO EM DIÁLOGO COM AS

ARTES ESPANHOLAS