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1. A EMPRESA NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-SOCIAL

1.4. A fase publicista das relações da empresa

A partir do momento em que o Estado passou a ver no crescente poderio econômico da burguesia comercial um problema que deveria ser enfrentado e mesmo controlado como condição de manutenção do seu domínio político, tratou o Poder Público de trazer para si a responsabilidade de normatizar as relações comerciais até então disciplinadas pelas corporações de mercadores. Essa modificação de postura coincidiu com o período dos descobrimentos e com o início da exploração colonial nas Índias e nas Américas, no decorrer do século XVI.

Por isso mesmo, esse período foi historicamente denominado de mercantilismo, significando, precisamente, a fase em que os países europeus e então estruturados como Estados absolutistas, passaram a explorar mercantilmente as terras recém descobertas no Novo Mundo e os seus recursos naturais, assim como os produtos e especiarias do oriente com a abertura de rotas para as Índias. A expressão mercantilismo representa, de modo apropriado, o exercício da atividade de exploração econômica pelo Estado, em estreita colaboração com a burguesia comercial, detentora da experiência técnica necessária à exploração mercantil.

É justamente nessa fase inicial do mercantilismo, principalmente a partir do século XVI, que o Estado passa a assumir a responsabilidade pela regulação da atividade comercial. E essa preocupação do Estado com a atividade comercial não resultava, apenas, do aspecto legislativo em si, nem do controle tributário da função comercial, mas decorria também, movido pela pragmática, da própria necessidade de obtenção de lucros que remunerassem os investimentos feitos com a armação e equipagem das frotas destinadas à exploração mercantil.

Nesse período, com efeito, nenhuma exploração colonial era realizada sem que a Coroa responsável pelo porto de saída da expedição tivesse a

garantia de divisão dos resultados com os ganhos obtidos pelos capitães de navios, banqueiros financiadores e exploradores das novas terras. 39

É na fase do mercantilismo, por exemplo, que surge a sociedade por ações, quando a Inglaterra e a Holanda, no século XVI, criaram companhias de exploração colonial, estruturadas para oferecer títulos de investimentos (ações) ao público, garantindo, em contrapartida, a responsabilidade limitada dos acionistas e a perspectiva de pagamento de dividendos em razão dos lucros obtidos com a atividade econômica.

O conceito de ação como título societário tem sua origem na expressão holandesa aktio, que significa, justamente, a titularidade de um direito de ação contra a companhia, como contrapartida do investidor pelo capital aplicado no negócio aberto ao público.

Na medida em que o Estado avançava na exploração da atividade econômica, determinando regras para a criação de companhias de comércio mediante a atribuição de outorgas reais (oktroi),40 e concedendo o direito de monopólio para a exploração de determinados produtos nas colônias, o espaço de auto-regulação da atividade comercial pelas corporações de mercadores foi sendo, progressivamente, reduzido. E tal redução da autonomia normativa privada resultava, em conseqüência, na perda do prestígio e da aplicabilidade dos preceitos históricos da lex mercatoria, ficando os comerciantes sujeitos à legislação publicista e à jurisdição estatal para a solução de conflitos.

A política mercantilista estatal estava assim orientada, de modo predominante, para a expansão do comércio colonial e, para alcançar esse objetivo, os investimentos na indústria naval eram considerados prioritários.

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Sobre as características da aliança entre o Estado e a burguesia mercantil ascendente nessa fase inicial do mercantilismo, comenta CARMEN ALBORCH BATALLER: “No obstante, el Estado (la monarquía) no se limitará simplemente a concederles el monopolio de explotación, sino que también interviene en la financiación de las empresas. Podríamos decir que se lleva a cabo una alianza entre la monarquía y la burguesía, alianza perfectamente explicable dado que con el feudalismo la monarquía se debilita enormemente”.(BATALLER, Carmen Alborch, El

derecho de voto del acionista, Madrid, Editorial Tecnos, 1977, p. 38).

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LAMY FILHO, Alfredo, e PEDREIRA, José Luiz Bulhões, A Lei das S.A., Rio de Janeiro, Renovar, 1992, p. 41.

Além da Inglaterra e da Holanda, também Portugal, França e Espanha vieram a construir frotas navais em larga escala, solução imprescindível para a exploração do continente americano, previamente dividido, desde 1494, pelo Tratado de Tordesilhas. Esse alto investimento na exploração mercantilista representava uma preocupação permanente dos Estados absolutistas com a fixação de regras estáveis para as relações e contratos comerciais, tanto nos territórios de origem, nas suas colônias, como perante outras nações.

O apogeu dessa regulação publicista da atividade mercantil pelos Estados absolutistas consolida-se na França, através das Ordenações de 1673, que regulava o comércio marítimo, e das Ordenações de 1681, tendo por objeto o comércio terrestre, editadas sob a iniciativa e influência de COLBERT, Ministro das Finanças de LUIS XIV. 41

O direito corporativo e estatutário no qual o direito comercial medieval se alicerçava, foi sendo paulatinamente eclipsado e substituído pelo direito estatal, consubstanciado na ordenação pública da atividade econômica privada.

Mesmo constituindo o comércio internacional e a contratação mercantil um sistema de intercâmbio dominado por agentes privados, a intervenção legislativa do Estado passou a condicionar o pleno exercício dessa atividade quando realizada em larga escala. E essa situação afastou, do quadrante jurídico, a incidência dos preceitos do direito originário das corporações de mercadores, que feio a se tornar, a partir desse marco, um mero referencial histórico da fase de ascensão do comércio, entre o período feudal e o mercantilista.

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A propósito do conteúdo publicista das normas estatais disciplinadoras do comércio e do marco histórico fixado pelas Ordenações Francesas, TULLIO ASCARELLI observa: “Lo Stato regola più stretamente le corporazioni (onde poi la naturale considerazione, nell’Ordinanza Francesa del Commercio del 1673, anche del artigiani) e com lo sviluppo del mercantilismo verrà dettata uma minuta disciplina pubblicista del commercio, che occuperà invero la massima parte degli articoli dell’Ordenanza de Luigi XIV che tra poco ricorderemo, venendo minutamente disciplinato (in ordine alla sua localizzazioni, alle sua modalità e via dicendo) l’exercizio dell’atività econômica. La fonte del Diritto Commerciale si trova ormai, accanto alla consuetudine, nelle ordinanze dell’autorità.” (ASCARELLI, Tullio, Corso di Diritto

Desse momento em diante, como ápice do período publicista, inaugura- se a fase de codificação do direito comercial, a partir do Código Comercial francês de 1807, considerado por NAPOLEÃO BONAPARTE como um dos pilares fundamentais da legislação do império na sua fase áurea de conquista da Europa. Outros códigos se seguiram desde então, como os códigos de comércio da Espanha (1829), de Portugal (1833) e da Itália (1865). 42

No Brasil, o Código de Comércio do Império, de 1850, adotando as premissas e estruturas básicas do código francês, contemplava as regras definidoras da atividade dos comerciantes, das sociedades comerciais, dos contratos mercantis e bancários e do direito marítimo. Esse movimento de codificação do direito comercial no âmbito internacional seguia, destarte, o processo de codificação do direito civil, de tal modo que a “primeira metade do século XIX traduz-se por essa preocupação de elaborar os códigos, levando em conta sobretudo, o direito interpretado, o direito jurisprudencial, o direito das escolas estatutárias”. 43

No campo das relações mercantis, todavia, a ausência de organismos supra-estatais de regulação do comércio e de positivação das normas destinadas à disciplina e uniformização de modelos jurídicos para o tráfico mercantil entre países, jamais representou empecilho para as operações de importação e exportação de bens e mercadorias.

Sem embargo, a atividade comercial jamais quedou limitada ou contida pela falta de um sistema normativo mercantil próprio. Afinal, o comércio sempre foi influenciado e dominado, desde a sua mais remota origem, por uma índole cosmopolita, que não encontrava restrições de maior envergadura para o tráfico mercantil, salvo quando diante de situações de guerra ou da presença de monopólios estatais.

E o comércio internacional, mesmo se submetendo a modos e formas diversificadas de intervencionismo estatal, não se despiu das suas principais

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MARTINS, Fran, Curso de Direito Comercial, Rio de Janeiro, Forense, 24ª edição, 1999, p. 8.

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características negociais, fundado esse tráfico mercantil, especialmente, na autonomia da vontade e na liberdade de contratar.

O direito comercial, não obstante o aumento do grau de intervenção legislativa estatal, prosseguiu formulando as suas próprias normas e construindo os seus modelos negociais, fundado nos princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual. E essa praxis mercantil, que em nenhum momento abandonou os costumes sedimentados ao longo dos séculos, reconhecia, de modo invariável, os interesses das empresas comerciais e do tráfico mercantil acima das limitações impostas pelas leis nacionais. O exercício do livre comércio sempre foi considerado, ademais, corolário fundamental decorrente do secular princípio da autonomia da vontade. 44

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