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A fazenda Caiapó

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Relatar a narração da narração, transcrevendo o drama como prolegômeno inevitável, poderá contribuir em nossa busca como informação de fundo, antes do exame direto do objeto em si mesmo. Estando a cultura presente no ambiente, no grupo, nas teias de significados construídos pelo homem, é preciso perceber o tênue fio que separa o modo de representação do conteúdo substantivo. “Além do acontecimento pelo acontecimento, está o significado de falar”(GEERTZ, 1998,p.144).

“A principal característica do documento de história oral não consiste no ineditismo de alguma informação, nem tampouco no preenchimento de lacunas de que se ressentem os arquivos de documentos escritos ou iconográficos, por exemplo. Sua peculiaridade – e a da história oral como um todo – decorre de toda uma postura com relação à história e às configurações sócio- culturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme concebido

por quem viveu”. (...) “O processo de recordação de algum

acontecimento ou alguma impressão varia de pessoa para pessoa, conforme a importância que se imprime a esse acontecimento no momento em que ocorre e no(s) momento (s) em que é recordado. Isso não quer dizer – e as ciências da psique já o disseram – que tudo o que é importante é recordado; ao contrário, muitas vezes esquecemos, deliberada ou inconscientemente, eventos e impressões de extrema relevância” (ALBERTI,1990, p.5).

Oito anos transcorrem e, em 1950, morre a mãe de dona Malvina, que então estava com dezesseis anos. A mocinha logo se casa com Francisco, que tinha uma história muito semelhante à dela, como, aliás, semelhante à de quase todos os camponeses da região. Ele também tinha vindo de Minas, também tinha viajado com inúmeras dificuldades, também havia conseguido, com a família, uma rocinha; trabalhava duro e, como todos em volta, vendia o que produzia para a cidade de Goiás, que se abastecia dessa produção e ainda revendia para outras cidades goianas. Os primeiros sinais de representatividade se esboçam ao escutarmos relatos muito parecidos, quase idênticos, sobre as crenças e descrenças, as dificuldades e facilidades, assim como a origem e o conjunto de características que envolve todo um grupo que habita uma mesma região. Cada depoimento traz sua história, cada indivíduo é como cada retalho colorido, parte pequena, mas muito importante para que a “colcha” seja montada. Esses relatos foram obtidos através de entrevistas com moradores, de diversas idades, em contatos informalmente provocados.

Os imigrantes, em grande parte provenientes de Minas Geraiseram, segundo suas próprias descrições, pessoas honradas, corretas e trabalhadoras; precisavam de terra para plantar e queriam vender sua produção. Os moradores da cidade, por sua vez, precisavam se alimentar e manter a economia do local. Assim, enquanto os chegantes iam formando suas lavouras, criando seus animais e conseguindo produzir, a cidade também se beneficiava, e dessa forma, segundo a visão de nossos informantes, as “necessidades se encaixavam”.

Malvina e Francisco montaram a Fazenda Caiapó. Tiveram oito filhos, sendo que os dois mais novos já nasceram na cidade, para onde a família se mudou em 196631. O casal comprou um terreno no lado não histórico da cidade. Sintetizando os diversos relatos fornecidos, pudemos perceber que esta

31 Nomes dos filhos: Maria (1952), Rosali (1955), Divino (1959), Geni (1961), Genoveva (1963), José Maria (1964), Francisco (1966), Elga (1971).

área era pouco valorizada, devido à sua localização. Também era bastante desabitada e considerada quase uma outra cidade que se formava dentro da cidade de Goiás. As raras famílias que para lá começavam a se mudar eram, em sua maioria, provenientes do campo, ou seja, das fazendas que abasteciam a cidade. Não se tratava, portanto, de um bairro habitado pelas tradicionais famílias de Goiás, em grande número herdeiras de um histórico minerador, de um passado rico em aventuras, presente em sobrenomes valorosos. Era o início desse bairro representado por nossa colcha.

Podemos encontrar, sobre a formação hierárquica da cidade de Goiás, diversos trabalhos historiográficos que se dedicam ao estudo de famílias e oligarquias goianas, sinalizando para a importante influência exercida por algumas delas. Segundo Maria Augusta Sant’Ana de Moraes (1974), “o poder dessas famílias de elite em Goiás não se baseava apenas na propriedade fundiária, mas também no poder intelectual”. Do texto de Heliane Nunes (Apud CHAUL,2001, p.66), História da Família no Brasil e em Goiás: tendências e debates, extraímos:

“A formação de grupos selecionados por ‘castas’ familiares vai transformando Vila Boa de Goiás num laboratório de conchaves políticos e troca de favores”. [...] “As formas práticas de casamentos com famílias de elite, ou mesmo casamentos endogâmicos, demonstram que a sociedade local tendia para a familiocracia”.

Esse panorama da sociedade vilaboense nos possibilita acompanhar o processo que irá se desenvolver entre nossos atores e a antiga elite política que passa a ser a elite histórica da cidade.

O marido de dona Malvina conseguiu manter o trabalho na fazenda, enquanto ela, na casa da cidade, colaborava com a receita familiar usando de sua natural habilidade para confeccionar botinas. Foi sapateira por um bom tempo, enquanto seus filhos, juntos a ela, brincavam, estudavam e ajudavam o casal. A colcha de retalhos que estamos estudando não pertence a essa época, mas,

como estamos vendo, nos remete a ela. A Fazenda está presente na fazenda: a Caiapó na colcha.

A produção da Fazenda Caiapó nunca parou. A família usou as laterais do terreno da casa da cidade para construir um mercadinho e um sobrado. A vida econômica foi se ajeitando, os filhos e filhas foram crescendo e se casando. Todos continuaram morando ali por perto, no bairro João Francisco.

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