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A fenomenologia da experiência estética

No documento CADERNO VIRTUAL DE TURISMO (páginas 101-106)

Há duas concepções de paisagem expressas nas narrativas dos pintores: uma vincula o interior do artista ao seu projeto de criação, os elementos do mundo exterior são subterfúgios, mais ou menos necessários, para a realização de si e do trabalho manual da pintura; outra se ancora sobre as qualidades externas do meio ambiente natural e construído, a serem transformadas em imagem pictórica, para a apreciação do espectador. Essas duas posições alternam-se nos pintores entrevistados. As palavras de Deborah Col Costa são exemplares dessas concepções e suas ambiguidades: “A alma se torna paisagem na reconstru-ção pictórica do mundo” (FESTIVAL DOS ARTISTAS DE PARATY, 2006, p. 20).

Mesmo em artistas voltados à experimentação, as trocas com o ambiente são sensíveis. Sérgio Ati-lano é exemplar. Em seu trabalho, o jogo da mimesis é levado para fora da tela, em dois procedimentos conjugados: primeiro, na dimensão material; segundo, na forma. No primeiro procedimento, recolhe ele-mentos da natureza, gravetos, sementes, entre outros, os quais são manipulados, reunidos, dispostos em superfícies, às vezes pintados. No segundo, o arranjo das formas entre a matéria natural e o trato artificial pode referir a ruas, montanhas, logradouros, etc. Atilano, como outros artistas estabelecidos na cidade, tem uma forte ligação com a história e os processos políticos, econômicos e ambientais da localidade. Em suas caminhadas por Paraty, recolheu caquinhos de cerâmica a beira do mar, às vezes os pintava, outras deixava na cor natural: “A aplicação disso é uma estória das pedras. A cidade, para mim, é dessa forma, ela está presente, às vezes no jeito de montar o trabalho”. Embora distante da fórmula imitativa, a referência ao lugar aparece na composição das formas e cores, articulada não à observação direta, mas à experiência do pensamento, da memória e da imaginação.

Sérgio Atilano, Ateliê Bananal, Paraty, 2009. Fotografia do autor.

As ambiguidades que emergem das narrativas dis-cernem o dualismo entre o eu e a paisagem, dentro e fora, entre sujeito e objeto da relação, as quais podem ser compreendidas pelo conceito de engajamento, conforme a abordagem fenomenológica. Afirmou Arnold Berleant (1995, p. 238): “Engajamento, então, é a direção na qual a estética da natureza nos conduz.” Continuando: “Uma estética do engajamento engloba ambas, arte e natureza, e é o que esperamos que qualquer boa explicação deva fazer – resolver mais problemas que criá-los.” (p. 241).

A formulação de Berleant acerca do engajamento foi originalmente redigida em 1970, em seu primeiro livro dedicado à fenomenologia da experiência estética. Na abordagem de Berleant (1970/2000), o con-ceito de engajamento resulta de uma revisão crítica da teoria da “arte desinteressada”, aquela que separa sujeito e objeto, além de criar categorias de distinção social e a segregação do artista e do espectador.

Particularmente, a partir das transformações artísticas da década de 1960, em happenings e performances, afirmou-se o caráter participativo do espectador. Desde então, engajamento tornou-se um conceito-chave para refletir sobre as relações entre arte e natureza e a estética ambiental.

O conceito de engajamento foi desenvolvido a partir da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e da retomada de Husserl, nas interfaces com a psicologia social de Kurt Lewin e a concepção de experiência estética em John Dewey. Arnold Berleant (2010, p. 19) conduziu o estudo do campo artístico para o espaço ambiental e social, atingindo o domínio do que designou estética política.

Portanto, trata-se de rever uma concepção corrente de estética, derivada do século XIX, na qual o esté-tico é uma exceção, experiência que “transcende” a vida cotidiana. O estéesté-tico e o artísesté-tico estão próximos no plano do conhecimento, mas tratam de problemas distintos nas ciências humanas. O primeiro diz respeito aos sentidos e à percepção. O segundo trata da delimitação de um campo social que classifica e hierarquiza os objetos.

Veja-se a definição original do termo estética, em sua etimologia, sobretudo, porque atualmente os usos vulgares são muito diversos. Na metade do século XVIII, Alexander Gottlieb Baumgarten (1750) for-neceu a definição de estética como a ciência do conhecimento sensório. Devido à vinculação da categoria do belo, foi aproximada do debate das artes durante o século XIX (em uma concepção de arte acadêmica). Porém, tratava-se de uma ciência e não uma oposição a esta, destinada a explorar a experiência sensória. Baumgarten retomou o significado dos gregos, literalmente “percepção pelos sentidos” (aisthesis) (BER-LEANT, 2010, p. 26 e 34). Assim, a dimensão estética é um domínio central da experiência.

Desse ponto de vista, a estética não é uma verdade universal e imutável, mas uma possibilidade de pensar a vida humana no que diz respeito à capacidade da experiência perceptiva. A percepção incorpora, além dos sentidos, as características psicológicas e culturais. A experiência estética não é pura, jamais é simples sensação; ela não é apenas mediada pela cultura, mas é inerentemente cultural (BERLEANT, 2010, p. 45). O campo da experiência estética não abandona a dimensão artística, mas expande-se pelas ativida-des culturais e ambientais na vida cotidiana. Em suma, a experiência estética na vida cotidiana ultrapassa os limites das diatribes do campo artístico e refere-se a tanto aquilo que é positivo quanto o que é negativo na percepção cotidiana. Toda percepção possui uma dimensão estética, invisível ou não apreendida, por vezes, notável e dominante. Desta feita, a percepção estética carrega implicações na crítica e compreensão dos julgamentos no processo social (p. 51).

Nessas reflexões sobre a experiência estética que conduzem ao conceito de engajamento, a discussão sobre a imagem da paisagem nas pinturas das cidades históricas e turísticas remete a outra chave de in-terpretação. As ambiguidades entre sujeito e objeto, interior e exterior, observador e paisagem, em última instância revelam uma totalidade da experiência. O sujeito se objetiva enquanto o objeto é subjetivado, o interior se exterioriza enquanto o exterior é interiorizado, o observador se manifesta na paisagem enquan-to a paisagem invade o observador. Não há limites precisos entre esses polos da experiência. “A apreciação da natureza é uma experiência holística para a qual contribuem múltiplos fatores.” (BERLEANT, 2012, p. 53),

Considerações finais

Situando este artigo na interface entre a psicologia da experiência estética e os estudos do turismo, segui-mos dois objetivos principais. O primeiro, colocado desde o início, chamou a atenção para o valor das pinturas nas cidades históricas e turísticas enquanto objetos da experiência estética. O segundo procurou discernir o conceito fenomenológico de engajamento para evidenciar que tais imagens participam da constituição da paisagem.

As ambiguidades daquelas narrativas encontram respaldo no trabalho do pintor, sobretudo ao reen-contrarmos as palavras de Merleau-Ponty (1964, p. 16): “emprestando seu corpo ao mundo o pintor trans-forma o mundo em pintura”. A relação estabelecida entre o corpo e o mundo circunscreve o problema da mimesis no seguinte sentido: diz respeito ao objeto icônico (a pintura) e à imagem mental, através do mundo em comum. Ambos colaboram para o exercício de conversão do mundo percebido em imagem pictórica e a produção da paisagem por meio da ação do pintor.

Quando Márcio Franco enfatiza a presença de um ponto colorido sobre um fundo verde, a imagem da paisagem começa a organizar sua forma a partir do jogo das cores. Nos artistas, André Meurer e José Andreas, os olhos percorrem a natureza e o casario, cotejando os elementos em cores, luzes e sombras. Veja-se a narrativa de Ricardo Inke na qual a luminosidade parece não pertencer ao mundo das coisas, pois move-se entre o olho, as coisas e a tela pintada na experiência unificada do pintor. Marília Inke e Júlio Paraty apontam duas perspectivas sobre o belo.

No jogo de projeções do eu sobre o mundo em comum, a expressão ou a impressão, conforme cada estilo, o que se observa é o surgimento da própria paisagem. Ela surge no movimento daqueles que perce-bem o mundo como imagem de arte, como partes integrantes do fenômeno da paisagem. Nessa medida, a proposição de Berleant ganha mais concretude. No contexto da experiência ambiental, a arte participa do conhecimento da paisagem (BERLEANT, 2012).

Todas as formas de arte fornecem perspectivas sobre o conhecimento da paisagem. A pintura paisagís-tica, há mais de dois séculos, possibilita recuperar essa experiência. Não obstante, o conceito de engaja-mento nos auxilia a evitar o equívoco de considerar a paisagem apenas um objeto visual. Berleant traduz essa questão distinguindo duas expressões: looking at e looking within. A primeira apoia-se em apenas um aspecto da experiência (o visual), enquanto a segunda insere todo o corpo do observador no movimento vivo e dinâmico da paisagem, em todas as direções e possibilidades sensíveis, como se nadássemos na pai-sagem (BERLEANT, 2012, p. 56). A paipai-sagem resulta de um processo estético, cultural e histórico, entre o artista e o espectador, por meio da pintura: “um campo estético do qual os dois fatores centrais são um evento artístico e uma localização específica” (p. 57). Todos são partes de uma única experiência.

As narrativas dos pintores de Paraty possibilitam avançar em questões tradicionais do campo artístico, sobre as correspondências entre arte e natureza, imitação e mimesis. Mas, sobretudo, colaboram para o conhecimento da paisagem das cidades históricas e turísticas em suas múltiplas perspectivas. As palavras indicam as cores, as texturas, as formas, os volumes e os movimentos que constituem a paisagem desde sua origem na experiência dos sentidos.

Agradecimentos

Agradeço a Arnold Berleant as preciosas referências e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) o financiamento à pesquisa.

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