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A imaginação e a história

4.2. A Ficção histórica

Uma chave para a análise dessas questões é encontrada na crítica literária contemporânea, que faz uso do termo ―ficção histórica‖ para compreender tais obras. Sem denegar o ―romance histórico‖, considerado dentro de seu contexto romântico oitocentista e que foi tão trabalhado por Herculano, a ―ficção histórica‖ abrangeria uma maior gama de estilos literários que também fazem uso do aporte historiográfico para se constituir, sendo

222 HERCULANO, Alexandre. ―O Bobo‖. In: O Panorama – Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, Lisboa, n. 58, p. 37-40, 4 de fevereiro de 1843. p. 37.

considerados, para além do romance, o drama, a novela, o conto, o poema narrativo, dentre outros.223 Dessa forma, percebemos nesse conceito uma designação mais adequada para textos como a própria ―Crônica do Descobrimento do Brasil‖ e as demais narrativas de Herculano que não compõem sua tríade romanesca, e que não se enquadram exatamente na definição de romance, sobretudo por sua estrutura e seu tamanho relativamente reduzido.

Apesar de ―ficção histórica‖ ser um conceito moderno, sua aplicação se justifica pela abordagem teórica contemporânea exclusivamente para fins de análise, não deixando de considerar a perspectiva histórica de como os textos seriam designados na época de sua produção, nem suas características ligadas ao desenvolvimento do romance histórico em si.224

A ―ficção histórica‖, no entanto, vem ao encontro da proposta dessa dissertação ao estabelecer uma tensão entre a ficção e a história. A fim de compreender como a ficção se adequa à análise da literatura sobre a qual nos debruçamos, convém retornar à sua formação conceitual. De acordo com Catherine Gallagher, a composição do conceito moderno de narrativa de invenção se deu ao lado da mudança de significado da própria ficção, ocorrida entre os séculos XVII e XVIII. A nova acepção de uma composição inventada, com eventos e personagens imaginários substituiu a antiga idéia de ficção como engano e fingimento: ―Se a etimologia da palavra tem algo a nos ensinar, devemos concluir que a ficção foi descoberta como modalidade discursiva com estatuto próprio somente quando os leitores desenvolveram a capacidade de distingui-la tanto da realidade como – sobretudo – da mentira.‖ 225

A verossimilhança aparece aqui como um elemento constitutivo dessa literatura, característica não comportada pela narrativa ficcional até então.226 A passagem do romance ao novel, considerada dentro da tradição crítica americana e inglesa a partir da qual a autora constrói sua análise sobre a constituição da narrativa ficcional, remete a uma

223 CAVALIERE, Mauro. As coordenadas da viagem no tempo : uma contribuição para a teoria da ficção historica baseada em alguns textos portugueses dos seculos XVI, XIX e XX, Stockholms: Stockholms Universitet, 2002. p. 25.

224 Ibidem, p. 23.

225 GALLAGHER, Catherine. ―Ficção‖. In: MORETTI, Franco (org.). O Romance 1 – A cultura do romance, Cosac & Naify, 2009. p. 631.

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mudança epistemológica, em que a limitação do conceito de verdade ligado à exatidão histórica passa a incluir uma acepção mais ampla a partir da simulação mimética: ―A aceitação geral da verossimilhança como forma de verdade, antes que de fraude, está na origem do conceito de ficção e, ao mesmo tempo, na do romance como gênero literário.‖ 227

Logo, ao pensar a ficção histórica a partir da definição tradicional que caracteriza a ficção pela ausência total dos elementos definidores do real 228, e a história como presa necessariamente ao relato de acontecimentos reais, os dois gêneros seriam automaticamente excludentes. No entanto, Mauro Cavaliere, amparado por estudiosos como Umberto Eco, Gérard Genette e José Maria Pozuelo, afirma a inexistência de aspectos textuais totalmente determinantes a partir dos quais se possa distinguir entre um texto factual e outro ficcional, da mesma forma como o conceito de verdade absoluta não seria o elemento distintivo entre o ficcional e o histórico.229 Nessa mesma linha Wolfgang Iser considera que um texto literário não pode ser definido apenas por sua ficcionalidade: ―Just as the text cannot be confined to those of its elements which are taken from referential reality, so it cannot be pinned down to its fictional features‖. 230

Mas sim, como uma combinação entre realidades e ficções, uma interação entre o que é dado e o que é imaginado, motivo pelo qual deslegitima a antiga oposição entre ficção e realidade, propondo uma tríade de conceitos em seu lugar: o real, o fictício e o imaginário.231

Seguindo a proposta de acordo com a qual um texto literário não necessita de uma total ficcionalidade para se constituir, tanto a ―Crônica do Descobrimento do Brasil‖ quanto ―O Bobo‖, ―O Bispo Negro‖, Eurico o Presbítero e as demais obras semelhantes dos autores, comportariam concomitantemente a imaginação, o fictício e uma parcela de realidade, dada pelo aporte histórico e documental e pela postura crítica de historiadores que Varnhagen e Herculano mantém mesmo quando escrevem trabalhos de gênero distinto. Como salienta Pedro Telles da Silveira, ao considerar a ―Crônica do Descobrimento do

227 Ibidem, p. 634 228

ISER, Wolfgang. The fictive and the imaginary: charting literary anthropology, Baltimore, Ml.: The Johns Hopkins University Press, 1993. p. 2.

229 CAVALIERE, op. cit., p. 27-28.

230 ―Assim como o texto não pode se limitar aos seus elementos que são tirados da realidade referencial, também não pode se prender à suas características ficcionais.‖ (livre tradução) ISER, op. cit., p. 1-2.

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Brasil‖ como uma recriação ficcional do descobrimento do Brasil, coloca-se em questão os elementos definidores da história e da ficção no contexto oitocentista, já que, nesse caso, a ficcionalidade é obtida a partir de um documento, ―enquanto o ficcional engendra a narrativa e a veracidade histórica‖.232

O mesmo pode ser observado em relação às obras de Herculano, em que a separação entre o literário e o histórico não são mais totalmente verificadas frente a relativização das funções tradicionais de tais elementos.