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Uma vez descoberta a natureza e a necessidade de pautar as ações políticas pelo que é bom por si e não mais pelo cumprimento estrito das “leis ancestrais”, o homem se encontra, segundo Strauss, diante da problemática de buscar qual seria o melhor regime que permitiria desenvolver da melhor forma suas potencialidades, segundo a lei natural, e é justamente sobre esse tema que pretendemos discorrer agora. Ensina-nos Aristóteles que o homem é por natureza um ser social (zoôn politikón)43. Aprendemos, então, com esse filósofo, que o homem não é

constituído para viver bem sem estar na companhia de outros, o que se evidencia pela própria linguagem, que é o grande diferencial do homem em face dos demais animais e aquilo que torna possível, então, a sua sociabilidade. Essa sociabilidade, que não procede do cálculo dos prazeres, e sim de sua natureza mesma, se manifesta em sentimentos como a amizade, afeição, piedade, que são naturais a todos os homens, e é exatamente a partir dessa constatação do que é “natural” no homem que Strauss, seguindo a afirmação aristotélica, percebe o que constitui, então, a base do direito natural clássico e um princípio de objeção à existência de uma suposta liberdade irrestrita. De fato, partindo do argumento com base na natureza humana, Strauss nos apresenta que “não há nenhuma relação humana em que o homem seja absolutamente livre para agir conforme lhe aprouver ou lhe for conveniente” (STRAUSS, 2014, p 156).

Ora, verifica-se, então, que, com base no direito natural clássico, o argumento hedonista se faz fraco, uma vez que a liberdade para a satisfação de todos os prazeres é algo impraticável, precisamente porque que o homem é, por natureza, como vimos, um animal político. Isso significa que, com base no uso da razão, a percepção da liberdade é acompanhada pela própria consciência de que o exercício ilimitado da liberdade não é algo correto. Pois bem, se tal é assim, o autocontrole, portanto, é algo natural ou anterior ao próprio uso irrestrito da liberdade. Sobre tal questão em particular, Strauss nos assevera que “enquanto o homem não tiver cultivado devidamente a sua razão, ele terá inúmeras noções irreais sobre os limites de sua liberdade e conceberá os mais absurdos tabus” (Ibid., p 157).

Em relação às sociedades que desconhecem a filosofia, como se explica no início do nosso trabalho, isto é, em relação aos povos chamados de “selvagens”, pode-se dizer que é justamente por desconhecerem o uso da racionalidade e o que significa a sociabilidade natural (a qual exige a virtude do autocontrole) que eles praticam seus atos desregrados. Portanto, os selvagens não agem como agem pelo prazer de serem “selvagens”, mas sim por acreditarem ter

direito a uma liberdade desenfreada44. Por isso os defensores do direito natural clássico afirmam a necessidade do cultivo da razão45.

Segue-se daí que o homem não pode atingir a perfeição senão na sociedade civil (ou na cidade [pólis]), tal como pensada pelos clássicos, a qual era necessariamente uma sociedade fechada, capaz de criar o ambiente em que as pessoas se conhecem diretamente e, se conhecendo diretamente, partilham de alguma forma de conduta comum, produzindo, em última instância, a confiança mútua. Como explica Strauss, “uma sociedade que é feita para a possível perfeição do homem tem de manter sua coesão pela confiança mútua; e esta pressupõe que as pessoas conheçam umas às outras. Sem tal confiança, pensavam os clássicos, não pode haver liberdade” (Ibid., p. 157).

A cidade é uma comunidade feita com base no conhecimento natural e imediato dos homens. Ora, a fundação e as leis da cidade, tal como pensada pelos clássicos, têm por necessidade, segundo Strauss, um guiamento que possibilite para qualquer homem maduro, com o uso de sua razão, uma orientação imediata para as coisas relevantes, sem a necessidade de se apoiar em informações indiretas, para resolver questões de urgência e importância vital. Ora, a liberdade política, especialmente aquela liberdade política tal como pensada pelos clássicos, baseada no direito natural clássico, é liberdade pautada na virtude46. Liberdade essa que tem como norte, pois, a realização da excelência humana47. Para tal, Strauss nos apresenta, em Direito Natural e História, que essa forma virtuosa de liberdade não é nenhuma dádiva que vem pronta dos céus, e sim, o cultivo, por meio de um esforço zetético, para conservação de tal ideal, para, a partir de tal conservação, poder, então, o homem se desenvolver, desenvolver tais potencialidades, mantendo sempre a vigilância em relação ao que possa corromper tal ideal.

Ora, como chegamos a tal constatação, a partir do direito natural, da necessidade de uma sociedade fechada? Strauss explica que, para os clássicos, a possibilidade de que todas as sociedades humanas sejam igualmente capazes de atingir a liberdade excelente, virtuosa, é muito pequena, uma vez que, na visão deles, tudo que é muito precioso é raro. Ora, ao aceitar várias comunidades cada vez maiores e plurais dentro de si, a cidade necessariamente se fragmenta em “várias cidades”, que não estarão caminhando para o mesmo caminho da excelência ou no mesmo nível de maturidade moral. Inclusive, “a probabilidade de que as sociedades inferiores se sentiriam menosprezadas pelas superiores seria enorme” (STRAUSS,

44 Cf. STRAUSS in STRAUSS & CROPSEY, 2016b, p. 54 45 Cf. LACERDA, 2009, p. 129

46 Cf. REALE, 2014, pp. 276-279 47 Cf. REALE, 2014, pp.242-243

2014, p. 159). Ora, dessa maneira, Strauss nos apresenta que uma sociedade que tudo aceita ou abriga dentro de si está em um plano inferior em relação a uma sociedade mais fechada, que, com base no direito natural clássico, visa atingir o máximo de excelência e liberdade condicionada à virtude, se esforçando ao longo de gerações com o intuito de atingir a perfeição humana. Assim, Strauss nos apresenta que o argumento em defesa de uma sociedade menor e fechada está de acordo com a visão clássica do direito natural, postulando, inclusive, como, a partir de tal visão, o argumento em defesa de tal sociedade não se faz contraditório com a justiça, nem impede que outras sociedades, vistas como inferiores, possam se desenvolver de acordo com o patamar moral por elas alcançado:

Há um elemento de escolha e mesmo de arbitrariedade na “conglomeração” de determinados seres humanos em detrimento de outros – o que só seria injusto se a condição desses excluídos fosse prejudicada em razão de sua exclusão. Mas a condição do povo que ainda não dedicou nenhum esforço sério à busca da perfeição humana é, necessariamente, ruim num aspecto decisivo: não pode de modo algum ser piorada pelo simples fato de que aqueles entre eles que tiveram suas almas animadas pelo chamado da perfeição se esforçaram para respondê-lo. Além disso, não há nenhuma razão necessária pela qual aqueles que foram excluídos não formem a sua própria sociedade. A sociedade civil, como sociedade fechada, é possível, necessária e conforme a justiça porque é conforme a natureza (STRAUSS, 2014, p. 159). Pois bem, para que tal sociedade possa manter-se nessa busca constante pela perfeição humana, ordenada pela virtude, Strauss nos apresenta, então, a necessidade da coerção, que, apesar de ser algo ruim, faz-se necessária para o alcance de tal intento. Ora, se a justiça e a virtude são, necessariamente, uma forma de poder, dizer que o poder em si é algo corruptor é o mesmo que afirmar que a virtude é algo mau ou corruptor em si mesmo. Tendo isso em vista, “a atividade política se orienta adequadamente quando dirigida à perfeição ou virtude humana” (Ibid., p. 161). Porém, para tal, precisamos compreender que, do ponto de vista dos clássicos, não há igualitarismo, de tal modo que, “embora todos os homens, isto é, todos os homens normais, possam ser virtuosos, alguns deles precisam ser guiados por outros, enquanto outros prescindem por completo da ajuda alheia ou dependem dela num grau menor” (Ibid., p. 162).

Ora, ainda que não houvesse naturezas “melhores” e naturezas “piores”, é evidente que nem todos os homens se esforçam pela virtude com igual dedicação; porém, o homem, como um animal político (como já exposto), só pode viver, ou viver bem, em sociedade, a qual, por sua vez, na visão do direito natural clássico, só pode atingir o bem e a justiça de acordo com a natureza se os indivíduos que a compõem se esforçarem o máximo para atingir a excelência.48

Ora, se isso é assim, percebemos que “a igualdade de direitos era vista pelos clássicos como algo muito injusto” (2014, p. 162). Os clássicos viam, sem nenhum problema, que alguns homens são, por natureza, superiores a outros, mais virtuosos, e, exatamente por isso, em consonância com o direito natural, esses teriam o dever de governar os demais.

O termo que os clássicos empregavam para designar todos esses aspectos da sociedade civil era politeia. Tal termo é via de regra traduzido por “constituição”. No contexto político contemporâneo, porém, quando usamos o termo “constituição”, geralmente queremos falar das leis, das normas jurídicas fundamentais que compõem ou fundam um determinado Estado. Ora, para os antigos, embora a palavra “politeia” estivesse ligada à noção de lei fundamental do país, não era tida como um fenômeno estritamente jurídico; antes, num sentido mais amplo e para além dos dispositivos legais, referia-se ao modo de viver de um povo específico, abrangendo o modo por meio do qual o poder é distribuído por esse povo. Fazendo alusão a um fato moderno, poder-se-ia conceber a noção de politeía antiga como uma espécie de “common law”, que está mais interessada pelos costumes de um povo enquanto fonte do direito do que com a ação dos juristas propriamente dita. Temos, a esse respeito, o exemplo da Constituição americana, que retrata o modo de vida desse povo, ao mesmo tempo em que ratifica a construção do seu direito ao longo do tempo e com base nas transformações sociais49. Strauss nos apresenta que, contemporaneamente, utilizamos o termo “constituição” para traduzirmos “politeia” porque assim pensamos no governo. Porém, tal tradução é inexata pelo fato de que, quando os antigos usavam esse termo, procuravam referir-se muito mais ao modo de vida daquela comunidade; assim, a tradução por “regime” seria mais adequada para solucionar essa problemática.

Por que, enfim, apresentamos tal termo? Ao empregar politeia, queremos dizer que “o caráter ou temperamento de uma sociedade depende daquilo que ela considera mais respeitável e mais digno de admiração” (STRAUSS, 2014, p.165). Assim sendo, ao considerarmos certos hábitos e atitudes como “respeitáveis”, é fato que a sociedade assim

49 Pangle chama a atenção para o fato de que a Declaração da Independência dos Estados Unidos é justamente o

documento evocado logo no começo de Direito natural e história: “Essa obra se inicia com uma solene invocação da proclamação da Declaração de Independência das verdades ‘evidentes’ de que ‘todos os homens são criados iguais’, são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre esses estão a Vida, a Liberdade e a busca da felicidade. Strauss prossegue observando que ‘a nação dedicada a essa proposição tornou-se, em parte em consequência desta dedicação, a mais poderosa e próspera das nações da terra’". (“That work opens with a solemn invocation of the Declaration of Independence’s proclamation of the ‘‘self-evident truths’’ that ‘‘all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty, and the pursuit of Happiness. Strauss goes on to observe that ‘the nation dedicated to this proposition has now become, no doubt partly as a consequence of this dedication, the most powerful and prosperous of the nations of the earth”). (PANGLE, 2006, p. 15).

também os admite, contrapondo-os a outros comportamentos e hábitos, que para ela não são dignos da mesma reverência; serão, então, os primeiros reconhecidos pela comunidade e naturalmente considerados como superiores aos que não dispõem do mesmo status. Desse modo, os seres humanos ou grupos dentro da sociedade que incorporam tais hábitos e costumes com maior perfeição são vistos pelos demais com maior dignidade; esses indivíduos tornam-se uma espécie de autoridade genuína, por serem aqueles que representam – naturalmente e com maior perfeição – as crenças, hábitos e costumes daquele povo50.

Para serem verdadeiramente dotados dessa autoridade genuína, tais pessoas ou grupo têm, dentro de suas comunidades, no sentido mais direto possível, a última palavra acerca das questões morais principais e são eles que devem nortear o regime. Cumpre dizer que, seguindo a terminologia da filosofia política clássica, usaremos o termo “regime” para definir o objeto de desejo que alimenta as aspirações do cavalheiro (definiremos este termo na continuação do trabalho), tal como esse objeto é visto pelo prisma do filósofo. Ora, o melhor regime, compreendido na forma clássica, explica Strauss, não é apenas desejável (como deseja o cavalheiro), mas também possível ou realizável, uma vez que é conforme à natureza e não necessita da total abolição do mal na terra. Em outras palavras, por estar em consonância com a natureza, o melhor regime é possível. Entretanto, embora possível, explica Strauss, é muito difícil que tal regime seja posto em prática, uma vez que, até certo ponto, ele é fruto do acaso. O homem não pode controlar as condições nas quais nasce ou que são necessárias para a realização do melhor regime. O melhor regime só é justo e legítimo quando dispõe de condições favoráveis; do contrário, sobre condições menos favoráveis, apenas é possível um regime mais ou menos imperfeito, variando de acordo com as condições naturais.

Obviamente, além do melhor regime, existem várias outras formas políticas que, apesar de legítimas, não conseguem – dadas as condições acima expostas – atingir a mesma perfeição. Se, por um lado, o melhor regime exige várias condições favoráveis para a sua realização, por outro, qualquer regime legítimo – seja ele ideal ou não –, necessita ser moralmente válido tão-somente por ser legítimo, em qualquer lugar. Sobre essa necessária distinção entre melhor regime e regimes legítimos, Strauss apresenta os seguintes esclarecimentos:

Todas as coisas nobres são justas, mas nem todas as coisas justas são nobres. Pagar dívidas é justo, mas não é nobre. Um castigo merecido é justo, mas não é nobre. Os lavradores e os artesão levam, segundo o melhor regime de Platão, uma vida justa, mas não uma vida nobre: falta-lhes a oportunidade para agirem de modo nobre. O que um homem faz sob coação é justo no sentido de ele não 50Cf. LORD in STRAUSS & CROPSEY, 2016b, p. 127-128.

poder ser acusado por aquilo que fez; mas jamais será nobre. As ações nobres, exigem, como diz Aristóteles, certo “preparo”, sem o qual elas não são possíveis. Não obstante, somos obrigados a agir de modo justo em todas as circunstâncias. Um regime muito imperfeito pode oferecer a única solução justa aos problemas de determinada comunidade; mas, visto que tal regime não pode ser efetivamente encaminhado à perfeição completa do homem, jamais será nobre (STRAUSS, 2014, p. 169).

2.3 O DIREITO NATURAL EM PLATÃO, ARISTÓTELES E TOMÁS DE