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A flexibilização da legislação do trabalho como “alternativa” de superação da crise

3 O ‘MODELO ECONÔMICO BRASILEIRO’ E AS TRANSFORMAÇÕES NA ESTRUTURA

3.3 A flexibilização da legislação do trabalho como “alternativa” de superação da crise

A flexibilização foi um dos temas que assumiu papel destacado no debate acadêmico e como situação a ser construída por meio de decisões políticas durante a década de noventa. As ações desenvolvidas em âmbito governamental ocorreram claramente ancoradas em uma dada visão de flexibilidade, inclusive no que concerne ao mercado e às relações de trabalho. No que concerne ao tema do trabalho, a concepção teórica presente no seio do governo, defendia que o bom funcionamento do mercado de trabalho ocorre quando os níveis de emprego e salários são determinados, endogenamente, no próprio mercado de trabalho, e que no caso brasileiro o mau funcionamento se devia, em boa medida, à existência de inflexibilidades decorrentes de

imposições governamentais aos agentes econômicos e à organização sindical. Trata-se, na realidade, da concepção ortodoxa do funcionamento do mercado de trabalho.

A concepção ortodoxa do mercado desconsidera o caráter histórico das diversas formas de organização da sociedade e da produção. Assim, trata a organização capitalista da produção como tendo caráter geral. Portanto, numa versão simplificada, tem-se que, dadas as dotações de fatores, o mercado de trabalho equilibra-se a partir da interação de duas funções.

De um lado tem-se a curva de demanda, expressa pela curva de produtividade marginal do trabalho que tem por base o postulado de que serão contratadas unidades adicionais de trabalho, até o ponto em que a receita marginal se igualar à taxa de salário ou ao custo marginal. De outro lado, tem-se a curva de demanda de trabalho, expressa pela curva de desutilidade marginal do trabalho, que tem por base o postulado segundo o qual os trabalhadores ofertam trabalho até o ponto em que a utilidade proporcionada pelos bens adquiridos com o salário compense a desutilidade decorrente do trabalho ou se equipare à utilidade que o lazer proporcionaria

(KEYNES, 1985).

O salário real é, portanto, determinado pela interação das duas funções que representam forças opostas. Ora, em decorrência do caráter subjetivo da desutilidade do trabalho, os trabalhadores poderiam sempre reavaliá-la no sentido da baixa, o que significaria a admissão de baixas do salário real como forma de manter o emprego existente ou garantir o ingresso no mercado de trabalho. Assim, segundo esta perspectiva, inexiste o desemprego involuntário em sentido estrito.

Pelo exposto, torna-se claro que a ortodoxia econômica atribui aos ofertantes de trabalho a responsabilidade pelos ajustes necessários para que se efetive a ocorrência de oportunidades de emprego e ocupação. Por isso, defendem que se promova a flexibilização das relações de trabalho, bem como a qualificação profissional como requisitos fundamentais de adequação da oferta de trabalho, de modo a assegurar acesso a novos postos de trabalho e mobilidade no mercado de trabalho, bem como de expansão do nível da atividade econômica (PASTORE, 1994).

Não se constitui propósito estabelecer um amplo debate sobre flexibilidade no mercado de trabalho brasileiro, mas vale a pena registrar que vários são os estudos que mostram que uma das características históricas do mercado de trabalho é exatamente a flexibilidade, porém não no sentido presente na ortodoxia (GUIMARÃES NETO, 1989; POCHMAN, 1999; URIARTE, 2002,

dentre outros). Em primeiro lugar, é preciso considerar que se se entende por flexibilização uma

inclusive pela própria legislação. A diversidade de salários praticados na sociedade brasileira nos distintos setores é reveladora dessa prática de flexibilidade ascendente. Ocorre, porém, que a flexibilização passou a ser entendida no sentido descendente, ou seja, como possibilidade e necessidade de subtração de direitos instituídos, de adequação de uso da força de trabalho e até mesmo de redução dos salários reais. Na verdade, até mesmo a possibilidade de dispensa de trabalhadores – flexibilidade descendente – era permitida desde a instituição do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Além disso, a própria Constituição de 1988 passou a permitir que salário e jornada de trabalho se tornassem também objeto de flexibilização descendente desde que resultado de negociação coletiva (KREIN, 2003).

Na realidade, o que passou a ser objeto de pauta foi um processo de desestruturação do mercado de trabalho. Na realidade, não se pode inferir que este processo seja decorrência única e imediata de mudanças legislativas ou de modificações de interpretações judiciárias, mas que atuaram conjuntamente com a dinâmica econômica e política, bem como ao embate entre os trabalhadores e o empresariado. Então, parte-se da concepção de que a estrutura jurídica erigida em torno do trabalho constitui-se em parte orgânica do complexo de reestruturação produtiva, fundado na flexibilidade, que se encontrava em curso no país desde a década anterior, mas que foi amplamente aprofundado na década de noventa. Assim, elenca-se a seguir a legislação que foi elaborada nos anos noventa tendo por objetivo transformar relações de trabalho em relações civis e, portanto, partindo do pressuposto de que trabalhadores e empresários assumem posições de poder simétricas, conferir a estes últimos todas as facilidades jurídicas para flexibilizarem a alocação e a remuneração da força de trabalho, bem como promover o afastamento sistemático do Estado das relações de trabalho, através da redução do poder da Justiça do Trabalho na mediação entre os trabalhadores e o empresariado. Toma-se por base a legislação compilada e discutida por Krein (2003) referente ao trabalho na década de noventa.

A legislação promotora da flexibilização da alocação do trabalho instituiu o Trabalho por

tempo determinado (Lei n° 9.601/1998), desvinculando o contrato da natureza do serviço

prestado, mudando os critérios para rescisão contratual e reduzindo as contribuições sociais; a

Denúncia da Convenção 158 da OIT (Decreto n° 2.100/1996) eliminando mecanismos

impeditivos de demissão imotivada; as Cooperativas profissionais ou de prestação de serviços (Lei n° 8.949/1994) que possibilitaram a prestação de serviços às empresas sem a caracterização de vínculo empregatício; o Trabalho em tempo parcial (MP n° 1.709/1998) para, através da vinculação dos salários e dos direitos a uma jornada de trabalho menor, promover as suas

reduções; a Suspensão do contrato de trabalho (MP n° 1.726/1998) através do artifício de sua associação a alguma atividade de qualificação do trabalhador mediante “negociação” com os trabalhadores; a generalização do Trabalho temporário (Portaria n° 2/1996) através do aprofundamento de legislação anterior sobre o tema; a Demissão no Setor público (Lei n° 9.801/1999 e Lei Complementar n° 96/1999) através do estabelecimento de limites de despesas com pessoal e de prazos para o ajuste no Serviço Público; a intermediação do trabalho do aprendiz, através do Contrato de Aprendizagem (Lei n° 10.097/2000) e o Trabalho-estágio (MP n° 2.164/1999) Lei n° 6.494/1977 desvinculado-o da formação acadêmica.

A legislação propiciadora da flexibilização da remuneração acabou com a política de

reajustes salariais instituída pelo Estado, proibiu reajustes automáticos e induziu a “livre

negociação” (Plano Real - MP n° 1.053/1994); eliminou a nacionalização do nível do Salário

mínimo (MP n° 1906/97) e instituiu a Participação nos Lucros e Resultados (MP n° 1.029/1994;

Lei n° 10.101, a partir de 19.12.2000, que reproduziu a MP n° 1.982-77/2000) com vistas à eliminação da vinculação do salário real à produtividade, promovendo uma política de salários estabelecida pela via da negociação direta entre o empresariado e os trabalhadores no âmbito das fábricas sem a mediação sindical ou da justiça do trabalho.

A legislação relacionada à flexibilização do tempo de trabalho promoveu a anualização da jornada de trabalho para que houvesse a compensação do uso do trabalho extraordinário, com a criação do Banco de horas (Lei n° 9.061/1998 e MP n° 1.709/1998) e promoveu a Liberação do

trabalho aos domingos (MP n° 1.878-64/1999) no comércio varejista em geral.

Por fim, destaca-se que a legislação incentivadora da solução direta dos conflitos criou as

Comissões de Conciliação Prévia (CCP) (Lei n° 8.959/2000) para que funcionassem como

primeira instância dos dissídios individuais em categorias ou empresas com mais de cinqüenta empregados; o Rito sumaríssimo (Lei n° 9.957/2000) para os dissídios cujos valores não excedessem a quarenta vezes o valor do salário mínimo vigente à época do dissídio e dificultou a

fiscalização em casos de conflitos entre as normas legais e os acordo/convenções, bem como

permitiu que estes abdicassem de direitos anteriormente acordados (Portaria n° 865/1995).

A legislação atinente à desregulamentação dos direitos e à flexibilidade guardou coerência com o leque de propostas implementadas durante a década de noventa, pois o propósito último era tornar o “mercado” a instituição única de mediação de relações entre classes e segmentos de classe. Daí a redefinição do papel do Estado no que concerne à atuação direta ou enquanto instância de regulação das atividades econômicas ou ainda como mediador de relações entre as

classes fundamentais da sociedade. Portanto, embora segundo Krein (2003, p. 284) não tenha ocorrido completa modificação no “sistema de representação sindical” e nos “procedimentos formais de negociação coletiva”, o conjunto das normas legais esteve a serviço da flexibilização ocorrida com a reestruturação produtiva durante os anos noventa e que provocou intensa precarização das formas de contratação e das remunerações do trabalho.