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A Força das Representações

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CAPÍTULO III – AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E O DISCURSO

3.1. A Força das Representações

Na proposta de perceber o discurso arqueológico em Serranópolis dentro do contexto de formação das representações sociais pensadas por Moscovici, é tarefa difícil e nos exige esforço na compreensão desses conceitos. Esse esforço

é amenizado nas contribuições que Roger Chartier faz na relação da escrita, com as representações sociais e que irá nos ajudar a entender o papel que o discurso exerce nessa perspectiva. Segundo Chartier (1990, pp.23-24):

A problemática do “mundo como representação”, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos ou das imagens que dão a ver e a pensar o real. Daí, neste livro e noutros, mais especificamente consagrados às práticas da leitura, o interesse manifestado pelo processo e por intermédio do qual é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação. Tal tarefa cruza-se, de maneira bastante evidente, com a da hermenêutica, quando se esforça por compreender como é que um texto pode “aplicar-se” à situação do leitor, por outras palavras, como é que uma configuração narrativa pode corresponder a uma refiguração da própria experiência. No ponto de articulação do mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma norma de compreensão de si próprio e do mundo.

Segundo o texto, acima citado, existe diferença de sentido e significação. Nem sempre na construção de um sentido teremos a presença de um significado. As representações sociais só conseguem aparecer quando o discurso encontra com as expectativas do ouvinte ou correspondem aquilo que é próprio de sua vivência, aquilo que é do seu cotidiano, que lhe é familiar, aquilo que remete a memória, que é acessado através da experiência.

É preciso perceber se o discurso, daquele que constrói a história, é articulado com a expectativa do ouvinte para que haja compreensão e apropriação do mundo imaginado que está tentando inserir. Segundo o historiador, “As representações não são simples imagens. Ela tem uma energia própria que persuade seus leitores e espectadores que o real corresponde efetivamente ao que eles dizem ou mostram (CHARTIER, 2011, p.27)”.

A leitura do texto, em qualquer que seja sua modalidade, faz parte de uma experiência de articulação do leitor com o mundo. Nessa articulação, a noção de experiência, enquanto um dos conceitos fundamentais da hermenêutica moderna trazidos por Gadamer (1993) apontam para o horizonte fundamental no processo

de compreensão do ser, onde o mesmo sofre os efeitos de serem seres historicamente situados. As representações sociais irão fazer sentido nesse contexto de experiência pensado por Chartier e por Gadamer no momento em que a experiência é partilhada, ela faz sentido a um grupo que à partilha e se apropria dessa experiência transformando-a em norma de compreensão coletiva.

Para Chartier (2011, p.115), o reconhecimento da experiência provocado no ouvinte, permite que o documento histórico seja reconhecido e apropriado como relato ou algo importante de partilhar. Traz a importância do passado pela memória, mesmo que não haja regras claras que possibilitem controlar os discursos relacionados ao documento, pelo simples fato que esses discursos são construídos. O compromisso do produtor desse discurso é quanto à ordem que as palavras devem ter, carregado de conhecimento sem esquecer as expectativas de quem interpreta o discurso.

Na formação teórica das representações sociais e o poder do discurso, Chartier contou com as contribuições significativas de Stephen Greenblatt (1988), Pierre Bourdieu (1998) e Paul Ricoeur (1994). A primeira contribuição (2011, p.95) é o conceito formado por Greenblatt sobre a „energia social‟ que é para ele a palavra-chave no „processo de criação estética e capacidade das obras de transformar as percepções e as experiências de seus leitores ou espectadores‟.

Segundo Greenblatt (pp.97-104), a „energia social‟ são quaisquer coisas produzidas pela sociedade que podem circular salvo se está excluída da circulação. A presença do passado nesse conceito se dá quando existe uma contemporaneidade entre as ansiedades, incertezas e expectativas do público, o público traz uma ação reativa sobre as produções, traz uma nova identidade genérica sobre as obras. Para Chartier, esse conceito é importante na ideia de representações sociais porque propõem a volta de arquétipos em momentos históricos diferentes, mesmo que em novas formulações. As imagens mentais, como no exemplo de Chartier quando cita Shakespeare, onde a palavra atesta a verdade (p.102), se origina de uma constante repetição da mesma experiência, isso irá produzir a resposta de uma necessidade, agora contemporanizada.

A segunda contribuição usada por Chartier (2011) vem do uso do conceito „campo cultural‟ de Pierre Bourdieu (pp.105-108). Nesse campo proposto, vemos o passado e seu próprio desenvolvimento onde os caminhos desse passado definem estéticas e diferentes tipos de autoria. „Um livro muda pelo fato de que não muda quando o mundo muda‟. Essa frase de Bourdieu nos chama a atenção para a necessidade de domínio prático no consumo dos bens simbólicos. As pessoas consomem aquilo que conseguem vislumbrar mesmo que não sejam frutos do seu tempo, elas resignificam os padrões culturais e valores simbólicos.

Um exemplo clássico usado por Chartier sobre o campo cultural e a ilustração usada por Cervantes40 que se apodera do mundo textual herdado de seu tempo e revoluciona a ficção não no estilo artificial da literatura já praticada, mas na prosa doméstica da vida. Cervantes desejou que a literatura fizesse sentindo para as pessoas, que elas se reconhecessem na história, que lhes fosse familiar, algo doméstico.

Mesmo que a literatura tenha temporalidades próprias na sua constituição sincrônica às formas literárias dominantes, Cervantes inventa uma maneira radicalmente nova de construir a ficção, onde o passado encontra lugar no presente se familiarizando com as pessoas. Voltando a frase citada sobre o livro, ele continua o mesmo de sua época, a mudança está no olhar de quem lê, no olhar de quem interpreta o discurso.

A terceira contribuição usada por Chartier vem do uso do conceito „Representação‟ de Paul Ricouer (p.115). Nesse campo vemos o reconhecimento do passado pela memória e o lugar do relato histórico no cotidiano. Os relatos tornam-se testemunhos, documentos mediados pela memória, é uma construção explicativa da história. A memória e sua representação individual ou coletiva irá possuir uma relação estreita com o passado.

40

Miguel de Cervantes Saavedra foi um importante poeta, dramaturgo e novelista espanhol. Nasceu em 29 de setembro de 1547 (data suposta) na cidade espanhola de Alcalá de Henares. Cervantes morreu na cidade de Madri, em 22 de abril de 1616. Considerado um dos maiores escritores da literatura espanhola, destacou-se pela novela, mundialmente conhecida, Dom

Chartier remete à memória a importância na construção das representações sociais, para isso ele traz essa perspectiva de Ricouer. Segundo a construção dessa ideia, a operação historiográfica sempre discutiu o papel da memória e sua competência na construção da verdade histórica. Ricoeur sugere que não se trata de reivindicar a memória contra a história, mas de reconhecer suas diferenças fundamentais e, também, de mostrar a relação que as une. Para o escritor o passado está no presente, à memória transmitida oralmente, marcada ou escrita, nos dá a certeza da existência de um passado histórico a ser historicizado adequadamente.

Quando observamos as referências citadas, percebemos a importância da ilusão referencial em qualquer que seja o registro na construção do discurso histórico. As representações sociais quando intermediadas e seus valores construídos com um propósito, são carregadas de sentido para os grupos envolvidos. Com esse objetivo, segundo Chartier (2011, p.118) “Para exibir esse princípio, o historiador deve introduzir em sua narração indícios ou provas desse „ter-sido‟ que funcionam com effets de réel (efeitos de realidade), encarregados de dar presença ao passado graças às citações, as fotos, aos documentos”.

Por último, Chartier simplifica três categorias relacionadas à experiência (pp.122-123); A primeira é a percepção do irrepetível, todo intermediador de conhecimento histórico deve entender que os processos são irrepetíveis e exclusivamente frutos de seu tempo com impossibilidade de replicação genuína; A segunda é a consciência da repetição, acontecimentos parecidos podem ser comparados ou atribuídos a causas historicamente parecidas e não iguais, a repetição pode ser histórica, mas não análoga; Terceira, o saber das transformações que escapam a experiência imediata, o saber que existe em um progresso cognitivo acumulado. A história nunca pode esquecer os direitos de uma memória que é insurgência contra a falsificação ou a negação do que foi.

Na perspectiva prosposta por Moscovici, o objeto da representação é sempre dinâmico e sofre pressões na sua formação, assim a consciência da repetição proposta por Chartier, é uma proposta de responsabilidade na construção do discurso histórico, aliando conhecimento e memória no discurso.

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