• Nenhum resultado encontrado

Até este ponto, avançamos no argumento de que os jogos são sistemas de regras formais capazes de criar um universo à parte que é influenciado e moldado pelo jogador e que, assim, pode ser caracterizado como ambiente representativo. A interação que estabelece a fronteira dos jogos em relação a mídias narrativas tradicionais também trabalha para que haja um grau de imersão mais alto que é necessário para que o jogo

ocorra. A narrativa criada pelo jogo, aliada ao grau de investimento necessário para que o jogo transcorra (exigindo um esforço não-trivial, como afirma Aarseth [1997]) causam imersão. Os jogos, como afirma Juul, criam um universo meio real (JUUL, 2005), no qual os jogadores interagem com regras que os constringem, mas essas regras são aplicadas a mundos ficcionais, criando suas histórias.

O esforço deste trabalho tem sido duplo: situar o campo de estudo dos jogos (digitais), ao mesmo tempo em que evitamos falsas dicotomias e conceituações (que, talvez pela relativa incipiência das explorações acadêmicas sobre o assunto, têm sido frequentes). A ideia de que a narrativa é construída por uma intersecção com o espectador não é exclusiva aos videogames, por exemplo. Ela já era explorada por Bakhtin (1997):

A representação, é verdade, aproxima-se da arte, da ação dramática precisamente, mas é só com o aparecimento de um novo participante, exterior, não envolvido pela representação - o espectador, que começa a admirar a representação das crianças do ponto de vista do todo do acontecimento da representação, que é portanto seu contemplador dotado de uma atividade estética e é, parcialmente, seu criador (por tê-la transposto a um novo plano, estético, e convertido num todo estético significante) – não obstante, com isso o acontecimento inicial se transforma, enriquece-se de um elemento – do espectador-autor - o que acarreta a modificação de todos os outros elementos, na medida em que estes são integrados a um novo todo: as crianças que representavam são agora heróis, em outras palavras, estamos diante de um acontecimento que já não é representação e sim teatro embrionário, ou seja, um acontecimento artístico. O acontecimento voltará a ser uma representação se o participante, renunciando à sua função estética, deixar-se envolver por ela, pelo fato de haver ali uma vida interessante para ser vivida, e começar a participar dela na qualidade de segundo viajante ou de bandido, embora seja necessário bem menos para anular o acontecimento artístico - basta que o espectador, mesmo permanecendo empiricamente em seu lugar, identifique-se com uma das personagens em particular e que, formando um só todo com ela, trate de viver essa vida imaginária (BAKHTIN, 1997, p. 91).

Mesmo com a identificação do espectador com o personagem no palco de um espetáculo de teatro, o fato sempre permanecerá que a participação do jogador é fundamentalmente maior:

O leitor, mesmo que fortemente envolvido no desdobrar de uma narrativa, é impotente. Como um espectador em um jogo de futebol, ele pode especular, conjecturar, extrapolar e até mesmo proferir xingamentos, mas ele não é um jogador. Como um passageiro em um trem, ele pode estudar e interpretar a mudança do cenário, pode descansar seus olhos onde quiser e até ativar o freio de emergência para sair, mas não tem a liberdade de mover os trilhos em uma direção diferente. Ele não tem o prazer do jogador de influenciar: “Vamos ver o que acontece quando eu faço isso.” O prazer do leitor é o prazer do voyeur. Seguro, mas impotente. O leitor do cibertexto, por outro lado, não está seguro e, portanto, pode-se argumentar, não é um leitor. O cibertexto coloca o leitor em uma situação de risco: o risco de rejeição: o esforço e a energia exigidos

pelo cibertexto de seu leitor o levam da interpretação para a possibilidade de intervenção (AARSETH, 1997, p. 4).27

É evidente que, deste modo, os jogos são meios narrativos e discursivos. Eles são capazes de apresentar histórias, personagens, enredos, encadeamentos. São capazes de colocar os jogadores em posição de intervenção em sua história; se não de forma plena, de forma que seja relevante para seus interesses enquanto participante imerso. A partir de suas vivências e experiências, formam narrativas relevantes internamente e interessantes para o observador externo.

Todas essas estruturas são interessantes de serem analisadas por si só e, de fato, há uma literatura crescente que pretende tratar desses assuntos numa perspectiva isolada e mais abrangente. Contudo, esse não é o objetivo deste trabalho.

O objetivo que ancora a nossa reflexão é o de analisar a formação das estruturas narrativas a partir do fato inegável de que os videogames são produtos e como produtos podem e devem ser pensados no seu alicerce de consumo. Assim, ao elencarmos as características principais dos jogos, estamos em posição de isolá-las e coloca-las em contato com as teorias que tratam da sociedade de consumo.

Logo não é leviano afirmar que os jogos são afetados pelos modos, pelos locais e pela cultura de consumo. A recente ascensão (e o declínio mais tarde) dos jogos free-to-

play ou freemium – encabeçados pela desenvolvedora Zynga e títulos como FarmVille

(2009) – ilustra até onde vai a submissão da narrativa dos jogos à estrutura do consumo. São jogos que quebram a quarta parede ao pedir para que o jogador intervenha neles não através do ato de jogar, mas do ato direto de consumir – através da compra de ferramentas, power-ups, novos estágios etc.

Ora, se o jogo, autocontido, é capaz de gerar uma narrativa imersiva, os jogos

freemium colocam boias nos braços dos jogadores para que eles emerjam desse universo

à parte. O videogame, de acordo com essa visão, não precisa dispor de regras e conteúdos iguais para todos os jogadores; visto que os conteúdos não variam apenas de acordo com a agência do jogador, mas também de acordo com o quanto ele deseja pagar.

Claro que essa não é a única maneira pela qual o âmbito do consumo invade o terreno do jogo. Há uma complexidade palpável nesse olhar. São características outras e mais abrangentes e são elas que nos movem e nos inquietam na direção do nosso objeto de estudo. Assim sendo, exploraremos exemplos e analisaremos como a cultura e a

Sociedade do Consumo afetam os jogos em sua faceta narrativa. Porém, primeiro é necessário fazer uma exposição e elaboração acerca dessa sociedade na qual o consumo alicerça todas as relações sociais. É justamente o que faremos no próximo capítulo deste trabalho.