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A formação dos educadores alfabetizadores e a valorização da cultura afrodescendente

O cotidiano escolar e a formação dos educadores alfabetizadores, por serem processos sociais e implicados com a história e com as divisões sociais e de poder, acabam colaborando com a validação de postulados que conservam a preservação de interesses dominantes e com a manutenção do status quo, especialmente no que se refere a incorporação, entendi- mento e respeito à diferença e diversidade étnica.

A negação e/ou minimização do debate acerca da valorização da cultura de grupos étnicos interpretados como “minoritários”, ainda que sejam maioria, como por exemplo a

comunidade negra-afrodescendente na Bahia, não está devida e profundamente colocado nas práticas formativas dos educadores. A questão se agrava na formação dos alfabetizadores, talvez porque o foco nos processos cognitivos e psicológicos ainda sejam a marca orientadora fundamental da formação desses profissionais. É bem verdade que o debate começa a fluir desde a Lei 10.639, que prevê a incorporação no currículo da Educação Básica do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira.

E no aproveitamento dessa fruição, deve-se conceber a formação dos alfabetizadores significando-a como processo que possibilita a valorização cultural dos seus educandos em seus múltiplos elementos étnicos, até então ocultados ou discriminados, seja no plano cien- tífico, seja no plano sociopolítico e histórico.

Por isso, trazer a cultura das crianças de origem afrodescendente como conteúdo sig- nificativo no processo de alfabetização e defendê-las como sujeitos de direito à manifesta- ção étnica é tarefa desafiante, e em certa medida problemática, que se impõe para os educadores das classes de alfabetização no contexto atual, visto que a exclusão e desprestígio dessa cultura, enquanto fonte de produção para o conhecimento coletivo, é fato histórico e político solidamente construído.

Sendo assim, o exercício de passo para os alfabetizadores é reconhecer que a criança afrodescendente tem conhecimento rico oriundo da sua própria constituição cultural em seus aspectos étnico-raciais e que têm direito de expressar sua autenticidade nas classes de alfabetização e na escola de forma geral. Nesse sentido, o conceito de alteridade é útil para a compreensão do que é ser culturalmente afrodescendente, num espaço que privilegia, na maioria das vezes, um “outro” diferente dele. O alfabetizador deve compreender que ele é mediador dessa relação e participa diretamente da produção de conhecimento dessas crian- ças.

A alteridade (ou outridade) é um conceito e concepção na perspectiva de que o ser humano é social e por isso interage e tem relação de interdependência com os outros. A existência, nesse sentido, do “eu-indivíduo” só acontece na mediação com o “eu-outro- coletivo”. O seu humano individual só existirá, nessa concepção, mediante a existência do outro, que parte do olhar sensibilizado de um pela experiência do outro. O diálogo com o

outro permite a compreensão do mundo a partir de olhar diferenciado que não o olhar mesmo do ser-indivíduo. A vida social será fruto das dinâmicas das relações sociais entre eu-outros. Dessa forma, a diferença é base da vida social, ainda que repleta de tensões e conflitos. É o conhecimento da cultura do outro que nos auxilia a conhecermos a nos mesmos e à nossa cultura mesma.

Para La Plantine, (1988, p. 21) a experiência da alteridade e sua elaboração

[...] leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ‘evidente’. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de ‘natural’. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento [...] da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reco- nhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.

Por isso ao alfabetizador é importante essa aproximação com o conhecimento das di- versas culturas que compõem o espaço da sala de aula e da escola.

A cultura afrodescendente torna-se assim elemento de diálogo, formação e produção de conhecimento, não apenas para as crianças alfabetizandas, mas para os próprios alfabetizadores. Especialmente num estado como a Bahia que apresenta uma predominan- te3 representação dessa cultura. Por isso também a cultura afrodescendente deve estar pre-

sente na seleção de conteúdos, no ambiente alfabetizador e na formação do educador. A ausência da representação dos valores, crenças e conhecimentos dessa cultura na escola e nos materiais didáticos, nas práticas educativas (aulas, textos escritos, orais...) ainda é fato no cotidiano escolar.

O desafio é ampliar o “campo de possibilidades” formativas para o alfabetizador, a fim de assegurar uma abertura possível para uma outra compreensão dos aspectos do processo de alfabetização. A produção de conhecimento da criança de origem afrodescendente e sua

cultura tem se constituído em objeto de preocupações pedagógicas e acadêmicas na contemporaneidade.

Portanto, é importante conceber a formação do alfabetizador em uma perspectiva crí- tica, aquela defendida como processo social que possibilita caminhos de autoria de si e dos educandos e de valorização cultural de grupos ora excluídos dos processos qualitativos de educação. É preciso a busca por uma fundamentação formativa do alfabetizador crítico como ação necessária em nosso cotidiano escolar, e que seja construída na diversidade de grupos étnicos distintos.

Para isso, há de se validar a perspectiva construtiva no processo de alfabetização. A postura construtivista em muito colabora nesse processo. Se por processo construtivo en- tende-se o ato de produção de conhecimento

[...] considerado como processo de incorporação de um conteúdo (ato ou representação do mundo) resultante da relação entre sujeito-cognoscente e objeto-conhecido (ou sujeito-sujeito) em seus aspectos sócio-culturais, formadores da intelectualidade, são os agentes cognitivos, seres ativos no processo de conhecer (ao mesmo tempo classificadores, analisadores, processadores, construtores, reconstrutores do conhecimento) e não apenas meros receptácu- los de informações. O construtivismo é uma forma de validar este ato ativo ou representação do mundo e da natureza humana não como acabado, fixo, pronto, sem transformação nem movi- mento, destituído da dialeticidade, imutável. Ao contrário, o construtivismo deve ser pensado como uma possibilidade de mudança no estado das ‘coisas’.[...] É uma nova visão do mundo e da natureza humana [...]. É transformar processual e relacionalmente o estado dessas ‘coi- sas’ dadas como prontas e acabadas. (SANTOS, 2003)

Essa visão construtiva viabiliza uma formação do alfabetizar mais aberta à complexida- de das demandas contemporâneas em alfabetização com destaque, neste texto, para os pro- cessos de alfabetização que contemplam a cultura da infância afrodescendente, visto que valoriza a compreensão dos aspectos sócio-culturais presentes na formação das crianças no contexto das séries iniciais do ensino fundamental.