• Nenhum resultado encontrado

1 A FORMAÇÃO HUMANA DOS TRABALHADORES: UM PROCESSO

1.3 A FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES COMO ESTRATÉGIA

Vimos que, no atual estágio do capitalismo, o padrão de acumulação de capital predominante é a acumulação flexível (o taylorismo-fordismo não desapareceu e permanece no interior da maioria das organizações), que faz uso intensivo das novas tecnologias de base microeletrônica e requer um novo tipo de trabalhador, que seja polivalente e detentor de competências (conhecimentos, habilidades e atributos) para que possa realizar multitarefas no processo produtivo, possibilitando, assim, uma aproximação entre a função de concepção e de execução.

Nesse sentido, a polivalência associada à noção de competência, traz elementos que aparentemente se aproximam da noção de politecnia, pois esta postula, segundo Saviani (2003, p. 138), “[...] que o processo de trabalho desenvolva, em uma unidade indissolúvel, os aspectos manuais [execução] e intelectuais [concepção]. Um pressuposto dessa concepção é que não existe trabalho manual puro e nem trabalho intelectual puro.”

Dissemos aparentemente porque a polivalência, não necessariamente enseja a intelectualização do trabalhador, enquanto a politecnia diz respeito

[...] ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho moderno. Está relacionada aos fundamentos das diferentes modalidades de trabalho e tem como base determinados princípios, determinados fundamentos, que devem ser garantidos pela formação politécnica. Por quê? Supõe- se que, dominando esses fundamentos, esses princípios, o trabalhador está em condições de desenvolver as diferentes modalidades de trabalho, com a compreensão do seu caráter, sua essência. (SAVIANI, 2003, p. 140).

Ou seja, se de um lado a polivalência prevê a realização de múltiplas tarefas no processo produtivo, escamoteando a exploração e alienação da atividade do trabalho, por outro, a politecnia, possibilita ao trabalhador, mediante o domínio dos fundamentos científicos quem permeiam os diversos processos produtivos, atuar para minimizar essa alienação, ainda que não a supere.

Ora, o capitalismo é, por essência, contraditório e, como tal, ao mesmo tempo que requer um trabalhador mais qualificado, não lhe permite exercer a atividade criativa. Isto nos remete à seguinte questão: há possibilidade material, sob a lógica do capital, de se implementar uma educação na perspectiva da politecnia para a classe trabalhadora?

Para Marx (1982), a educação politécnica, que se contrapõe à educação dual organizada pela burguesia, compreende três coisas: 1) educação mental (intelectual); 2) educação física, tal como é dada em escolas de ginástica e pelo exercício militar; e 3) instrução tecnológica, que transmite os princípios gerais de todos os processos de produção e, simultaneamente, inicia a criança e o jovem no uso prático e manejo dos instrumentos elementares de todos os ofícios.

Nessa perspectiva, a educação politécnica permitiria elevar a classe trabalhadora acima do nível das classes burguesa e aristocrática, justamente porque combinaria duas dimensões (intelectual e prática) do processo de trabalho produtivo, ausentes na educação da burguesia, restabelecendo o conhecimento do processo fabril de produção como um todo. E isto concorreria para a emancipação do trabalhador. (MARX, 1982; SOUSA JUNIOR, 1999).

Ademais, a indissociabilidade de educação intelectual, educação física e instrução tecnológica (ou a combinação das atividades de trabalho e de educação com integrantes de um mesmo processo) permitiria desenvolver plenamente os educandos, ou seja, sinalizaria para a formação integral, omnilateral, do ser humano. (MACHADO, 1989; MOURA; LIMA FILHO; SILVA, 2012).

Marx (2012), menciona as escolas politécnicas e agronômicas, que se desenvolveram espontaneamente na base da indústria moderna e as escolas de ensino profissional, onde os filhos dos operários recebem algum ensino tecnológico e são iniciados no manejo prático dos diferentes instrumentos de produção, como as escolas de seu tempo pertencentes a esse processo de transformação, as quais, evidentemente, não eram profissionalizantes, no sentido de sua subordinação à divisão do trabalho.

A formação humana integral (ou omnilateral) é, portanto, alcançada pelo desenvolvimento da educação politécnica, porém essa tipo de formação, como ressalta Tonet (2006), não se materializa na sociedade capitalista, porque exige o acesso aos bens materiais e espirituais necessários à plena realização dos indivíduos, coisas que essa sociedade desigual não permite.

Assim, a formação humana integral – o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas (intelectual, física, laboral, cultural, moral, ética, estética etc.) – coloca-se como uma possibilidade futura – o próprio Marx tinha clareza disso, pois se referia a omnilateralidade em

oposição à formação unilateral ocasionada pela divisão social do trabalho – para ser viabilizada em uma sociedade para além do capital, em uma sociedade não dividida em classes.

Manacorda, perscrutando as reflexões marxianas sobre a omnilateralidade – nos escritos de Marx não há um conceito preciso dessa palavra – concluiu que:

[...] Onilateralidade é, portanto, a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se deve considerar, sobretudo, o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em consequência da divisão [social] do trabalho. (MANACORDA, 2007, p. 89-90).

Ou seja, a omnilateralidade em Marx, é antes de tudo a superação do ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho, da exploração do homem pelo homem, da dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual, e diz respeito a totalidade de capacidades, prazeres, gostos, aptidões, valores etc. que devem pertencer a qualquer ser humano.

Com efeito, a omnilateralidade representa uma totalidade de manifestações que não se restringe ao nível da competência científica, técnica ou prática, mas a uma infinidade de elementos ligados ao comportamento do homem, cuja possibilidade apenas se apresenta na totalidade das relações determinadas pela posse coletiva dos meios de produção, pelas relações de intercâmbio baseadas na igualdade material. (SOUSA JUNIOR, 1999).

Deste modo, sublinha Tonet (2006, p. 9), “[...] uma atividade educativa que pretenda contribuir para uma formação integral terá que buscar permitir aos indivíduos engajar-se na luta pela construção de uma forma de sociabilidade para além do capital.”

A escola unitária concebida por Gramsci, em contraposição à organização escolar dualista italiana que reservava para os filhos da burguesia o ensino humanista (apartado das relações como trabalhado e destinado a desenvolver a cultura geral, o pensar e o saber para se orientar na vida) e para os do proletariado, o ensino profissional, tem conexão com a educação politécnica de Marx, à medida que aquele propõe a criação da “[...] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual.” (GRAMSCI, 1995, p. 118).

Ou seja, uma escola de caráter humanista, que não faz a separação entre formação para o trabalho e formação intelectual e que permite o acesso do proletariado à cultura restrita à classe dominante, tendo como finalidade a relação mediada entre trabalho e educação, expressa pela compreensão da ciência e da técnica e da totalidade do processo produtivo.

De acordo com Gramsci (1995), a escola unitária, de caráter preparatório, conduziria o jovem até o momento da escolha profissional (ingresso em curso de nível superior) ou ao ingresso no trabalho produtivo, que ocorreria em torno dos 16 anos (equivalente ao término do ensino médio no Brasil), formando-o entrementes como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige. Essa escola, assim, assumiria a tarefa de inserir os jovens

na atividade social, somente depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa. Na escola de tipo unitária, que articula a formação intelectual e o trabalho produtivo, o pensar e o fazer, o ensino ocorreria de forma desinteressada, isto é, não teria finalidades práticas imediatas, ainda que rico de noções concretas, e, sim, formativas, de maneira que o educando não só aprenderia os elementos característicos do funcionamento do Estado e da sociedade, como também, a fazer a leitura da realidade na qual está inserido, raciocinar, julgar e decidir autonomamente, enfim, intervir técnica e politicamente nos processos produtivos e sociais.

Especificamente no Brasil, a concepção de educação politécnica foi defendida por muitos educadores progressistas, na década de 1980, nos embates sobre educação que precederam à Constituição Federal (CF) de 1988 e continuaram em torno da LDB/1996, mesmo tendo clareza que as condições objetivas não estavam dadas e das limitações socioeconômicas44 para colocar em prática tal abordagem educativa. Essa perspectiva não conseguiu se firmar nesses documentos legais, pois prevaleceu as determinações das forças conservadoras e sua lógica de associação da educação ao mercado.

No entanto, esse enfoque educativo veio à tona durante o ano de 2003, nas discussões em torno da possibilidade de reintegrar, em um mesmo currículo, a educação profissional e o ensino médio, que estavam separados legalmente desde 1997.

Dado que as características desiguais da sociedade brasileira dificultam a implementação da educação politécnica em seu sentido original, os educadores propuseram uma solução transitória, que consistiu, de acordo com Moura (2007, p. 19), em um tipo de ensino médio que garantisse uma base unitária para todos, incluindo, assim, “[...] os conhecimentos científicos produzidos e acumulados historicamente pela sociedade, como também objetivos adicionais de formação profissional numa perspectiva da integração dessas dimensões.”

Ou seja, o que os educadores estavam propondo era a integração do ensino médio com o ensino técnico em um mesmo currículo – o que mais tarde ficou consagrado como educação profissional técnica de nível médio integrada ao ensino médio45 (ou, simplesmente, ensino médio integrado –, de modo que se pudesse conciliar a perspectiva da politecnia (domínio dos

44 O Brasil era a época e continua sendo um país com extrema desigualdade socioeconômica, obrigando, como

ressalta Moura (2013), grande parte dos filhos da classe trabalhadora a buscar, muito antes dos 18 anos de idade, a inserção no mundo do trabalho, para complementar a renda familiar. Segundo esse autor, em 2007, 42% dos adolescentes da faixa etária dos 16 aos 17 anos de idade trabalhavam, possuem baixa escolaridade e nenhuma qualificação profissional.

fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho) com uma formação profissional específica.

A esse respeito, Frigotto, Ciavatta e Ramos destacam:

[...] Se a preparação profissional no ensino médio é uma imposição da realidade, admitir legalmente essa necessidade é um problema ético. Não obstante, se o que se persegue não é somente atender a essa necessidade, mas mudar as condições em que ela se constitui, é também uma obrigação ética e política, garantir que o ensino médio se desenvolva sobre uma base unitária para todos. Portanto, o ensino médio integrado ao ensino técnico, sob uma base unitária de formação geral, é uma condição necessária para se fazer a “travessia” para uma nova realidade. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p.43, grifo do autor).

Assim, a solução proposta – ensino médio integrado – se torna viável e se conforma com a realidade concreta brasileira, pois ao conjugar o pensar e o fazer, por um lado, contribui para a elevação do conhecimento e consciência crítica da classe trabalhadora e, por outro, fornece-lhe uma formação profissional, o que permite uma inserção no mundo do trabalho com maior qualificação. Ademais, desloca a centralidade da educação do mercado para o trabalhador e contribui para a supressão da dualidade no ensino médio presente na educação brasileira.

A transitoriedade de tal solução, justifica-se, também, devido a realidade brasileira não apontar para a possibilidade de redução do fosso que separa as desiguais classes sociais, de modo que, por muito tempo, os jovens pertencentes à classe trabalhadora terão que optar por uma profissão ainda no ensino médio e, se inserirem prematuramente no mundo do trabalho.

Portanto, respondendo à questão inicialmente posta, podemos dizer que não é possível a implementação de uma educação politécnica nos termos propostos por Marx em uma sociedade capitalista. No entanto, é possível desenvolver uma educação para a classe trabalhadora que se oriente por essa perspectiva, e o ensino médio integrado se coloca como uma possibilidade.

A politecnia não se confunde com polivalência, pois diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho; a formação integral (omnilateral) corresponde ao desenvolvimento das múltiplas dimensões do ser humano (intelectual, física, laboral, moral, ética etc.) e não se materializa em uma sociedade dividida em classes, como a capitalista.

De fato, o desenvolvimento omnilateral do trabalhador, independentemente do tipo de ocupação profissional que venha a exercer, que o conduza ao domínio dos fundamentos das diferentes técnicas produtivas e à participação ativa na construção de uma sociedade justa e igualitária permanece, na sociedade capitalista, como uma utopia.

No Brasil, os cursos técnicos de nível médio integrados ao ensino médio vem sendo implementado, desde 2005, nas escolas da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (RFEPT) e em algumas redes estaduais (São Paulo e Paraná, por exemplo), com o objetivo de conduzir o educando à habilitação profissional e/ou prosseguir os estudos em nível superior.

Esta é uma ação educativa diferente da que vem historicamente se processando nas escolas de ensino médio no país (ensino propedêutico sem vinculação com a formação profissional e destinado ao prosseguimento de estudos), mas viável.

O grande desafio é torná-la uma política pública de Estado, pois o ensino médio integrado possibilita um tipo de formação ampla que não interessa, efetivamente, ao capital, mas, sim, à classe trabalhadora.

Enfim, podemos afirmar que o trabalho, a educação e a formação humana estão intrinsecamente ligados e permeiam, historicamente, a existência do homem e da sociedade, pois os seres humanos são levados ao convívio social.

Sob a ótica da sociedade capitalista a formação dos trabalhadores é a formação unilateral, pois ao capital não interessa a formação humana ampla destes e, sim, apenas uma dimensão de suas potencialidades – a laboral –, ou seja, indivíduos especializados ou polivalentes, alienados e aptos a aumentar sua produtividade e diminuir os custos de produção, resultando em maior acumulação de riquezas para o capital.

E na perspectiva da classe trabalhadora a formação desejada é a formação omnilateral, o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas (intelectual, física, laboral, cultural, moral etc.), ainda que não possa ser materializada na sociedade capitalista.

2 AS CONCEPÇÕES DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL