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4 A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE

4.3 A função social da propriedade

León Duguit conseguiu dar grande impulso à teoria da função social dos direitos e, em especial, à função social da propriedade. A respeito da propriedade, ele dizia que

A propriedade é, para todo possuidor de uma riqueza, o dever, a obrigação de ordem objetiva de empregar sua riqueza para manter e aumentar a interdependência social [...]. Só ele pode aumentar a riqueza geral fazendo valer o capital que possui. Assim, está obrigado socialmente a realizar tal tarefa, e só será protegido socialmente no caso de cumpri-la e na medida em que o fizer (trad. nossa).

E continuava logo com sua famosa definição de propriedade: “a propriedade não é o direito subjetivo do proprietário, mas a função social do possuidor da riqueza” (DUGUIT apud ALEGRE, 2012, trad. nossa). Segundo Farias (1998, p. 235- 236), a abordagem de Duguit está inserta num processo de socialização da propriedade, porém, não no sentido de “coletivização” nem de supressão da propriedade privada, senão como uma transformação da sua concepção, para entender a propriedade como uma “utilidade social” que desempenha seu papel como integrante da interdependência ou solidariedade social, constituindo “um dos elementos das relações sociais cada vez mais diversificadas e interdependentes”.

O reconhecimento da função social da propriedade implica que o proprietário, por ser um membro da comunidade, tem direitos e obrigações sociais. Os direitos são manifestos no poder de uso e desfrute da terra e as obrigações são traduzidas na necessidade de certos cuidados para que a terra não perca sua capacidade produtiva e proporcione frutos em benefício direto para o mesmo proprietário e em benefício indireto para a satisfação das necessidades dos demais cidadãos (VIVANCO, 1967 apud. BORGES, 1996). Assim, a função social constitui um ônus para quem detém o direito de propriedade, que implica compatibilizar seus interesses particulares com os de toda a comunidade (GARABELLI, 2007). A propriedade continua sendo garantida pelo ordenamento jurídico. No entanto, o direito subjetivo decorrente dela “deve ser exercido à luz da função social que lhe é inerente” (GODOY, 1999).

Convém agora realçar que, a partir das teorias de Duguit têm surgido diversas interpretações para a função social da propriedade, que podem ser agrupadas em duas vertentes principais:

Como limitação ao exercício do direito de propriedade: admitindo vários matizes, muitos autores consideram que o cumprimento da função social representa

uma restrição ao direito de propriedade, visto que, a partir de sua exigência, o usufruto do proprietário de seu bem deixa de ser completamente livre, passando a estar condicionado ao cuidado com o bem-estar social. No entanto, esta restrição não necessariamente representa um ataque à propriedade, mas constitui uma regulação do direito sobre ela, com o intuito de assegurar seu exercício racional relacionado ao bem comum (RUIZ MASSIEU, 1988). Nesta perspectiva, a função social se apresenta como uma “limitação externa” imposta pelo Estado através da lei (CUNHA, 2013).

Como um dever inerente à propriedade: esta posição, provavelmente a que representa maior fidelidade com a teoria de Duguit, sustenta que a função social não deve ser vista como uma restrição (conotação negativa), senão como um “dever positivo do proprietário”, implicando para ele a obrigação de conferir-lhe um destino, uma utilidade ou função (PEREIRA, 2000), procurando seu efetivo aproveitamento (BRATZ, 2007). A função social passa a formar parte do próprio conceito jurídico de propriedade, mudando sua estrutura intrínseca (GRAU, 1988 apud. MELO, 2009). Desta forma, “o direito individual de propriedade transforma-se no direito-dever social de propriedade”, com vistas a contribuir com o bem-estar geral (RAMELLA, 2007, p. 318, trad. nossa).

Além destas interpretações, Cunha (2013) acrescenta mais uma interpretação, sendo aquela que entende a função social da propriedade como um “elemento estrutural da propriedade”. A partir deste entendimento, a função social é um atributo do bem que é objeto de propriedade, e não do direito que o indivíduo possua sobre ele. Em consequência, os autores deste grupo preferem afastar-se da expressão “função social da propriedade”, por considerar que “propriedade” é uma abstração jurídica, sendo que a função cumprida, na realidade, pela terra, está muito além do título sobre ela (MARÉS, 2003 apud. BRATZ, 2007).

Seja como for, todas estas interpretações sobre a função social da propriedade constituem uma tentativa de atingir um equilíbrio justo entre o interesse individual e o interesse coletivo, tanto na limitação dos direitos como na imposição de deveres (RUIZ MASSIEU, 1988).

Finalmente, devemos apontar que a função social da propriedade é um conceito que está estreitamente relacionado com a procura pela justiça social

(BRATZ, 2007). Nesse sentido, Amaral (2003) como transmitido por Barroso (2009) entende que

Emprestar ao direito uma função social significa considerar que os interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais. Função social significa não individual, sendo critério de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades da ordem econômica. Seu objetivo é o bem comum, o bem-estar econômico coletivo. [...] A função social é por tudo isso, um princípio geral, um verdadeiro standard jurídico, uma diretiva mais ou menos flexível, uma indicação programática que não colide nem torna ineficazes os direitos subjetivos, orientando-lhes o respectivo exercício na direção mais consentânea com o bem comum e a justiça social.

Em razão dessa orientação de justiça social, Araújo (1999, p. 160) tem afirmado que “a função social da propriedade consiste na correta utilização da terra e na sua justa distribuição, de modo a atender o bem-estar da coletividade, mediante o aumento da produtividade [...] e de justas relações de trabalho”, a fim de “assegurar a justiça social a toda a comunidade rural”. Desta forma, o autor faz uma extensão da abrangência da noção de função social da propriedade quando referida à propriedade rural, visto que, não somente seria cumprida com o efetivo aproveitamento da terra senão também mediante sua distribuição adequada.

4.4 O processo de incorporação do conceito de função social da propriedade