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Capítulo 5. Tempo, espaço e trabalho: de uma empresa familiar à sua fusão com o grupo

2. Empresa familiar e critérios de seleção: a descendência como sinônimo de “bom caráter”

2.4. A fusão e disjunção da empresa em questão

Conforme dados coletados em livro elaborado pela empresa, o grupo anglo- holandês começa a construir sua filial em São Paulo em 1929, como já citado.

Segundo Andreff (2000), o investimento direto estrangeiro (IDE) acelera-se em período de crise e acrescenta:

Durante os anos trinta, os IDE americanos e alemães desaceleram-se, os IDE holandeses, ingleses, franceses e belgas aceleram-se (...) O peso das multinacionais nas economias nacionais e na economia mundial tende a aumentar no momento das crises (Andreff, 2000: 20).

As afirmações deste autor mostram que a vinda do capital anglo-holandês foi ocasionado por uma crise mundial, a queda da Bolsa de Nova York.

O primeiro produto fabricado por esta empresa foi um dos sabões que, até então, era importado da Inglaterra, porém não foi muito bem sucedido. De acordo com o relato do primeiro vendedor desta empresa: “O consumidor brasileiro ainda não estava preparado para receber o que os ingleses queriam comercializar46”. Deste modo, apenas em 1930, começava a funcionar a fábrica construída na Vila Anastácio, a doze quilômetros do centro de São Paulo, fábrica esta que foi desativada em 2000, para cumprir as metas de reestruturação sugeridas pelo grupo anglo-holandês.

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Praça Ramos de Azevedo, no centro de São Paulo, nos anos 40: o primeiro endereço do grupo anglo-holandês no Brasil.

Fonte: livro elaborado pela empresa sobre sua história

Em 1930, a fábrica da Vila Anastácio.

Ainda segundo dados da empresa, os anos 30 e 40 do século passado foram marcados pela crescente concorrência com a empresa do Sr. José Milani, que durou mais ou menos 30 anos. Em 1944, este grupo anglo-holandês amplia sua atuação no mercado brasileiro, com a incorporação de firma de perfumaria. Na década de 50, lançam uma marca de sabão em pó e o primeiro detergente em pó do Brasil. E, finalmente, em 1960, incorpora a companhia localizada em Valinhos, seu forte concorrente nacional nos segmentos de sabões, sabonetes e creme dental, passando, desta forma, a formar uma só empresa, como já citado.

A compra desta empresa representou para o grupo anglo-holandês um grande passo na conquista do mercado brasileiro de produtos de limpeza e higiene pessoal, segundo dados da empresa. À época, a Companhia contava com cerca de 1500 trabalhadores e produzia, além de sabões e sabonetes, óleo comestível, glicerina, perfumaria, produtos pessoais, entre outros.

De acordo com a narrativa de Carlos, os primeiros anos da junção não foram tranqüilos. A justificativa dada pela empresa foi a concorrência, porém, na interpretação de Lodi (1978), estes conflitos acontecem por causa das diferenças entre as gestões familiares e de uma Sociedade Anônima. Segundo este autor:

O propósito da firma familiar é resolver os problemas econômicos da família e ajudá-la a manter uma posição na sociedade. A seleção gerencial é baseada tanto nas relações de família como nas habilidades, inteligência e desempenho profissional. A grande empresa moderna, a grande S/A, está pouco preocupada com as necessidades e lealdades familiares. A operação bem sucedida dessa empresa requer gerentes com um tipo específico de treinamento, experiência e capacidade. As decisões são baseadas em critérios impessoais. O desempenho é julgado por critérios objetivos como produção, marketing, custos e retorno sobre o investimento. O processo de seleção encoraja os gerentes a desenvolverem um método racional, objetivo e calculado para com os problemas do negócio (Lodi, 1978: 128)

Apesar da referência deste autor a um processo de seleção objetivo, a empresa, mesmo após a junção, continuou a encorajar a contratação de pessoas conhecidas de seus trabalhadores, assim como seus filhos, haja vista o caso de Carlos e seu filho Rodrigo. Conforme Carlos, estas mudanças citadas acima foram mais sentidas com a introdução de tecnologias e mudanças no modelo de gestão, a partir dos anos 80.

A distinção deu-se com o distanciamento entre empresa e política local, segundo a narrativa de Carlos. Com a junção, uma das metas estabelecidas pela empresa era sua modernização. Para isto, não poderiam continuar a adotar uma prática considerada “arcaica”, como o coronelismo, pois seus dirigentes tinham por objetivo sua inserção no mercado internacional.

Superados os primeiros anos de integração das suas fábricas, esta empresa começa uma série de investimentos, os quais contribuíram para consolidar sua posição no mercado. Para isto, aperfeiçoou suas técnicas de marketing, implantou novos sistemas de vendas, diversificando o mercado (inserindo a produção de alimentos, por exemplo).

Em 20 de fevereiro de 1966, a fábrica de perfumaria do Rio de Janeiro é desativada, e a operação é transferida para a fábrica de Valinhos, que começa a produzir os xampus, perfumes e colônias. O Departamento de Vendas e Marketing ficou subordinado ao Diretor de vendas da empresa na cidade de São Paulo.

A partir da divisão, segundo dados da empresa, esta cresce e diversifica-se, não se caracterizando somente como uma Companhia de Detergentes, mas também como uma Companhia de produtos de Toaletes. E esses produtos de toaletes produzidos pela fábrica de Valinhos eram readaptações das fórmulas, perfumes e embalagens criadas na Inglaterra.

O ano de 1969 foi o apogeu de lançamentos e promoções de produtos de toalete devido ao crescimento do mercado brasileiro, de acordo com dados coletados em livro produzido pela empresa. Em 23 de junho de 1969, surge a TP (Divisão de Produtos de Toalete) na Companhia para a região de São Paulo, em virtude dos desdobramentos que estavam acontecendo com a Divisão de Toalete da Inglaterra e dos ambiciosos planos de expansão da empresa.

Esta diversificação fez com que a fábrica de Valinhos, na década de 70, se dividisse em três áreas: de sabões, sabonetes e saponáceos; de creme dental, talco, perfumaria, xampu, creme de barba e cabelo e de margarinas, absorvendo produtos da fábrica de São Paulo e todas as linhas produzidas pela Casa de Perfumaria do Rio de Janeiro.

No início dos anos 70, a empresa, ao expandir-se e construir uma fábrica na cidade de Vinhedo-SP, começa a empregar um número considerável47 de mulheres. Para Lobo (1991), a entrada de novos grupos de mulheres no mercado de trabalho brasileiro e

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especificamente como assalariadas do setor industrial, à época, explica-se pela articulação de quatro fatores principais:

a obrigação de contribuir no orçamento familiar, causada pela queda de salário real, a partir de 1964; a natureza e a dinâmica do crescimento no Brasil, que ocasionou, principalmente em certos segmentos da indústria metalúrgica, a criação de grande número de novos empregos que exigiam habilidade, destreza e comportamento minucioso, qualidades ‘próprias’ da mão-de-obra feminina; as modificações na organização do processo de trabalho, que se traduziram, nas grandes empresas, por uma decomposição mais acentuada das tarefas e, portanto, por um trabalho mais simples, mais rotineiro, menos qualificado, o que permite a utilização de mão-de-obra nova, não-qualificada ou semiqualificada; as mudanças no processo de trabalho, que provocaram a transferência, em nível burocrático, das funções de planificação e de organização da indústria e, por isso, a criação de cargos de execução simplificados, ocupados de preferência por mulheres (Lobo, 1991: 19).

Algumas autoras destacam o crescimento da força de trabalho feminino no Brasil no mercado formal de trabalho, sobretudo urbano, a partir do final dos anos 60. Segundo Segnini (1998) considerando tão-somente a década de 80 (1981/1989), verifica-se que mais de sete milhões de trabalhadoras entraram no mercado de trabalho no período, o que representou um crescimento de mais de 48% em termos relativos; ou seja, duas vezes o aumento relativo masculino (24%). (Fonte FIBGE-PNAD/1981 e Pnad/1989). Esta autora destaca outros aspectos que revelam também permanências na inserção da mulher no mundo do trabalho presentes desde a Revolução Industrial. Um deles refere-se,

à estreita relação entre o papel que a mulher ocupa no espaço privado- na casa e na família- e sua inserção no espaço público, notadamente no mundo do trabalho remunerado. Trata-se da relação entre as atividades de reprodução (produção social de seres humanos) e as atividades de produção (produção social de bens) (Segnini, 1998: 105).

A autora citada acima acrescenta que, ao mesmo tempo em que se vem observando um crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho é também constatada em quase todo o mundo uma segregação dos postos de trabalho por sexo. Na empresa em questão, como será visto, tem acontecido algo semelhante principalmente em cargos que exijam mais autoridade ou que são responsáveis pelo lucro ou prejuízo de uma unidade de negócios.

Conforme Muniz (2001b), a fábrica localizada na cidade de Vinhedo, diferentemente das outras pertencentes ao grupo anglo-holandês, era considerada no passado, período de sua inauguração até 199448, como festeira, informal, divertida, superficial, elitista, glamourosa, cheia de nomes famosos e de pessoas interessantes (Sadia, Matarazzo etc.). Diziam ainda que esta sabia se divertir e que mantinha pouca distinção entre o profissional e o pessoal, segundo dados coletados por Barbosa49 (1996/97) e confirmado por trabalhadores entrevistados em pesquisa anterior. A divisão de Produtos Pessoais era denominada, segundo alguns relatos, o “barco do amor”, ou seja, “todo mundo tinha caso com todo mundo” (Barbosa, 1996/97: 17). Num dos relatos coletados por Barbosa (1996/97), uma trabalhadora comenta que havia ensaios de peças de teatros realizadas por trabalhadores e trabalhadoras, que acabavam conduzindo os participantes a outras coisas. Segundo esta pessoa entrevistada, “loucuras aconteciam depois do teatro. Aí você acordava na cama de não sabe quem...” (Barbosa, 1996/97: 17).

A questão sexual, como observado nos relatos do Sr. José, não foi algo isolado a esta fábrica. Na narrativa deste senhor e de D. Maria, aparecem situações muito parecidas às descritas por Barbosa (1996/1997). A diferença, conforme os relatos destes entrevistados, eram as punições exemplares na fábrica em Valinhos, que passaram a ser adotadas em Vinhedo. Entretanto as punições na fábrica, na qual trabalhou a família referenciada, restringiam-se aos relacionamentos pessoais entre trabalhadores, não atingindo comportamentos, tais como os citados por D. Maria, nos quais o próprio chefe “convidava” os operários para observarem as peças íntimas de suas subordinadas.

Stolcke (1993), em uma pesquisa com famílias de camponeses, mostra que os homens não aceitavam muito bem que suas mulheres e filhas trabalhassem em espaços nos quais não estavam sob sua supervisão, principalmente em turmas de trabalhadores, pois consideravam como “lugares de moral duvidosa, impróprias para mulheres respeitáveis” (Stolcke, 1993: 100). Conforme esta autora, os “turmeiros” tinham fama, que não era

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A partir desta data, há mudanças na presidência desta divisão, por causa dos maus resultados financeiros apresentados pela fábrica. Esta mudança também será estendida ao comportamento dos trabalhadores da divisão, com o intuito de melhorar sua imagem junto ao grupo ao qual pertence. Este assunto voltará a ser discutido. Para uma visão mais aprofundada, ver Muniz, 2001b.

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Esta antropóloga realizou uma pesquisa contratada pela fábrica em Vinhedo em 1996 e 1997, de acordo com relatos e relatórios apresentados pela empresa, fábrica esta a qual também realizei minha pesquisa de dissertação de mestrado em 2000 e 2001.

infundada, de se aproveitarem de sua posição para seduzir as trabalhadoras. Esta suspeita era ainda reforçada,

pela crença generalizada de que as mulheres que não têm proteção/supervisão de seus homens facilmente sucumbirão às investidas de outros homens. Esta desconfiança é fruto da moralidade tradicional, que garante aos homens direitos exclusivos à sexualidade de suas mulheres (o que requer o controle destas), e do temor muito concreto das conseqüências que poderia ter o contato das mulheres com homens não- pertencentes à família, “homens de fora”, para a sobrevivência desta (Stolcke, 1993: 100).

Pode-se perceber, a partir da citação de Stolcke, que a “sedução” não se concentrava apenas no trabalho industrial, no trabalho agrícola isso também ocorria. A justificativa dada para explicar tal fato, ou seja, “direitos exclusivos” dos homens sobre a sexualidade de suas mulheres, não traduzem a realidade vivenciada por D. Maria na fábrica em Valinhos. O cuidado com as esposas e filhas tinha por fundamento um comportamento que parecia ser corriqueiro em ambientes de trabalho mistos. Esta questão se apresenta mais como uma estratégia para “expulsar” as mulheres de um lugar ao qual não pertencem, ou seja, o trabalho “fora de casa”. Por isto, o incentivo para que as mulheres, ao se casarem, demitirem-se de seus empregos. Além disto, no momento em que há uma inserção maior destas no mercado de trabalho brasileiro, na década de 1970, é exatamente em 1978 a inauguração da fábrica em Vinhedo, o comportamento “sedutor50” surge como inerente à administração da mesma, justificando até mesmo seus maus resultados no negócio. Segundo Barbosa (1996-97), “a existência da festa funcionava como pólo contrastivo negativo e englobava quaisquer aspectos positivos do negócio” (Barbosa, 1996/97: 20).

O professor Porto-Carreiro (1930) ofereceu uma justificativa considerada por ele mais científica para a divisão entre trabalhos masculinos e femininos, cujo conteúdo é muito interessante para se refletir essa questão sexual na empresa em referência:

A atitude psíquica do homem e da mulher é apenas o reflexo da sua atitude física na conjunção amorosa: um procura, estreita, penetra, possui; a outra atrai, abre-se, entrega-se, recebe. O trabalho, pura sublimação de impulsos da vida, será sempre distribuído pelos sexos, de acordo com aquelas atitudes (Porto-Carreiro, 1930: 361).

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Como não foi possível entrevistar mulheres que trabalharam, à época, na fábrica citada, não se pode descrever suas representações sobre tal comportamento, mas, em pesquisa anterior, as operárias que relataram serem “cantadas” na área produtiva achavam que seus colegas o faziam para que estas se demitissem. Este assunto fará parte das discussões posteriores.

Este professor, ao dar suas explicações “científicas” para a divisão sexual do trabalho, o faz através de conotações sexuais: o homem “procura, possui”, a mulher “atrai, recebe, entrega-se”; aquele domina, esta recebe, submete-se ao outro. Esta analogia é muito curiosa, pois, como citado acima, o elemento sexual permeava as relações de trabalho em todos os níveis hierárquicos da fábrica em Vinhedo, como comprovado por relatos do Sr. José e D. Maria na fábrica em Valinhos.

De acordo com Barbosa (1996-97), a fábrica localizada em Vinhedo, no passado, aparece, metaforicamente falando, como uma figura feminina ambígua:

A ambigüidade nasce da combinação dos aspectos positivos associados a uma mulher – divertida, glamourosa, sensual, festeira – com aspectos negativos, que tornam uma mulher vulnerável no seu caráter: pouco séria (muitos casos, misturando vida privada com o trabalho); caprichosa (decisões paternalistas); pouca efetividade (trabalho, investimento com pouco retorno); instável e superficial nos seus procedimentos (Barbosa, 1996/97: 19).

É muito interessante a metáfora da mulher utilizada por Barbosa para definir esta fábrica no período anterior a 1994. Isto porque, apesar de todas as mudanças realizadas a partir desta data, ainda pôde-se perceber que havia alguns elementos desse passado, citados por esta pesquisadora, que poderiam explicar o incomodo das trabalhadoras da fábrica estudada, quanto ao que elas chamam de “cantadas”. As festas deixaram de existir, a empresa passou a prosperar, mas permaneceu a “mistura” entre o profissional com o pessoal, através destas “cantadas51”. Este assunto voltará adiante.

A partir da década de 1970, segundo Barbosa (1996), já começa a se observar uma mudança de paradigma na percepção da realidade, do que seja o conhecimento e do próprio papel do indivíduo. Estas mudanças vão impactar nas concepções de como uma empresa deve ser gerida e do tipo de relações de trabalho que devem prevalecer no seu interior, afirma Barbosa. Para ela, o aparecimento de novos pólos econômicos, como Japão, traz novas perspectivas sobre o que significa administrar.

No próximo capítulo, estará sendo apresentada a narrativa do Sr. Ernani, trabalhador da fábrica em Valinhos, o qual ingressa na empresa através do programa de trainee e participa de todo o processo de automação da mesma. Seus relatos serão de suma

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importância para observar o discurso da empresa, já que os expõe com muita ênfase, além da comparação com a narrativa de Carlos e Rodrigo sobre os trainees e a automação.

Capítulo 6. As representações sobre o programa de trainees: