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A gênese do romance em Bakhtin

No documento Cinismo: forma de vida, modo de gozo (páginas 111-116)

CAPÍTULO III A literatura e o cinismo; os gêneros menores

3.1. A gênese do romance em Bakhtin

Em seu livro Questões de Literatura e de Estética^ Bakhtin estuda o romance desde suas fontes, e no capítulo denominado “Epos e Romance” (Sobre a metodologia do estudo do romance)^, desenvolve sua análise a partir da premissa de que o romance seria um gênero “inacabado”, e propõe um paralelo com a epopéia.

A epopéia é um gênero “acabado” e “definido”, segundo Bakhtin, uma forma enrijecida e quase esclerosada. Sua perfeição, moderação e a total falta de “espontaneidade” artística, falam sobre sua antigüidade enquanto gênero, revelam seu longo passado. Um dos seus traços constitutivos é a representação do mundo no passado absoluto das origens e dos grandes acontecimentos nacionais. Assim sendo, é a memória, muito mais do que o conhecimento, o principal elemento criador e a força dessa literatura.

Bakhtin cita, então, três características da epopéia: em primeiro lugar, o seu objeto é sempre o passado nacional épico. Em segundo lugar, a experiência pessoal não atua como fonte na epopéia. E, finalmente, o mundo

' BA K H TIN , M ikhail, Q u estões d e L iteratu ra e d e E stética - A teo ria d o Rom ance, 2 edição. Editora Hucitec, São Paulo, SP, 1990

épico é isolado do presente, isto é, está separado do tempo do escritor, do autor e dos seus ouvintes, pela distância épica absoluta.'^

Assim, o mundo da grande literatura da época clássica é projetado no mito, no plano da memória lendária e não resgata um passado real e relativo, que se ligaria ao presente por transições temporais constantes. O passado de que nos fala a epopéia está distanciado, acabado e fechado como um círculo. O presente, enquanto atualidade viva, não é representado nesse gênero.

Segundo o teórico russo, a idealização do passado nos gêneros “elevados” tem um caráter oficial. Os mortos, por exemplo, são honrados de maneira diferente, uma vez que são retirados da esfera de contato e podem, e devem, ser evocados em outro estilo. O discurso sobre um herói morto difere profundamente do discurso sobre um vivo. Não se pode ser “grande” no seu tempo. Atribuir “grandezas” é sempre tarefa da posteridade. A vida atual, o presente “vulgar”, instável e transitório, sem começo nem fim, foi deixado inteiramente aos gêneros menores, não-épicos. “Mas, antes de mais nada, ela {a vida atual) era o principal objeto de representação daquela região mais vasta e rica da criação cômica popular. ... É justamente aqui - no cômico popular - que é necessário procurar as autênticas raízes folclóricas do romance.”"^.

O riso popular originou espontaneamente no solo clássico um domínio literário bastante vasto e diversificado, que se denominou spoudogéloion, ou seja, o domínio do sério-cômico.

Entre os exemplos de obras do campo do sério-cômico, citam-se os mimos de pequeno enredo de Sofrônio, toda a poesia bucólica, a fábula, a primeira literatura de memórias e os panfletos, além do “diálogo socrático”, da

^ lb id .,p á g . 405 e 406, ‘'Ibid . pág. 412.

vasta literatura dos simpósios (literatura que descreve os festins e bebedeiras na Grécia antiga) e, ainda, a “sátira menipéia”. Em suma, com limites às vezes difíceis de precisar, o campo do sério-cômico encerrava gêneros diversos cuja originalidade essencial os opuseram aos gêneros sérios.

Tais gêneros, segundo Bakthin, podem ser considerados como os autênticos predecessores do romance europeu. Ainda que desprovidos de uma sólida “ossatura composicional” e do tipo de enredo a que estamos acostumados a encontrar no gênero romanesco, esses gêneros antigos foram etapas essenciais na evolução do romance. “Todos esses gêneros sério- cômicos representam a primeira etapa, legítima e essencial, para a evolução do romance enquanto gênero em devir.”'*’

No campo do sério-cômico, a atualidade serve como objeto e como ponto de partida e de formulação. Pela primeira vez, de acordo com esse crítico russo, o objeto de uma representação literária surge sem qualquer distanciamento, no nível da atualidade, dentro de uma zona de contato direto e sem falsos pendores. Recusa-se o distanciamento épico, pois é a atualidade e não o mito que fornece o ponto de partida.

No processo de destruição das distâncias, o princípio cômico adquire um significado especial. É o riso, conforme Bakhtin, que destrói a “distância épica”. Um objeto não adquire comicidade numa imagem distante; torna-se necessário vê-lo de perto, para que se tome cômico. O cômico é próximo, e toda obra cômica pressupõe proximidade com o presente e o cotidiano.

O riso, assinala Bakhtin, tem o extraordinário poder de aproximar o objeto do fruidor, que pode apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados, revirá-lo, virá-lo do avesso, examiná-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo,

'I b id .,p á g .4 1 3 .

desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade. O riso destrói o temor e a veneração que o fruidor sente perante o objeto e o mundo, e prepara-o para realizar uma investigação absolutamente livre do mundo. A familiarização com o mundo facultada pelo riso e pela fala popular marcou uma etapa extraordinariamente importante no caminho para o estabelecimento do livre conhecimento e para o advento de uma criação artisticamente realista.^ O riso teria, enfim, um efeito libertário que subverteria todas as posições fixas e dogmáticas.

Nos diversos gêneros do sério-cômico “encontraremos outros aspectos, nuanças e conseqüências daquele mesmo deslocamento radical do centro axiológico-temporal da orientação artística e daquela revolução na hierarquia das épocas.”^. Estes gêneros, embora bastante distintos exteriormente, mostram interiormente várias características comuns. Por esse motivo, se constituíram numa vertente especial da literatura.

A despeito de toda a policromia exterior, sublinha Bakhtin, os gêneros do sério-cômico estão conjugados por uma profunda relação com o folclore carnavalesco e todos estão impregnados (em graus diversos) de uma cosmovisão carnavalesca, sendo que alguns são variantes literárias diretas dos gêneros folclórico-camavalescos orais.

A cosmovisão carnavalesca, segundo o estudioso russo, é dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora, e, aparentemente, de uma vitalidade “indestrutível”. Nos dias atuais, os gêneros que guardam apenas uma relação distante com as tradições do sério-cômico conservam ainda o fermento carnavalesco que os faz distintos de outros gêneros.

Ib id .,p ág. 413 ^ Ibid., pág. 416

Bakhtin destaca três peculiaridades nos gêneros do sério-cômico. A primeira, mencionada rapidamente acima, é o novo tratamento conferido à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia-a-dia, é o objeto ou, o que é ainda mais importante para esse estudioso, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade. Através do campo do sério-cômico, o objeto da representação séria e, simultaneamente, cômica, é dado, na literatura antiga, pela primeira vez, sem qualquer distância épica ou trágica, situando-se no nível da atualidade, e não no passado absoluto dos mitos e lendas. Nestes gêneros, os heróis míticos e as personalidades históricas do passado são deliberada e acentuadamente atualizados, falam e atuam através do contato familiar com a atualidade inacabada. Ocorreu, então, no campo do sério- cômico, uma mudança radical da zona propriamente valorativo-temporal de construção da imagem artística.

A segunda peculiaridade apontada por Bakhtin é inseparável da primeira: os gêneros do sério-cômico não recorrem à lenda nem se consagram através dela, uma vez que se baseiam na experiência cotidiana e na fantasia livre. Na maioria dos casos, o tratamento dado à lenda é profundamente crítico e, outras vezes, cínico-desmistificador. Surgiu na cultura Ocidental, pela primeira vez uma imagem quase livre da lenda, uma imagem baseada na experiência e na fantasia. Temos aqui uma verdadeira reviravolta na história da imagem literária.

O terceiro traço distintivo do sério-cômico é a pluralidade de estilos e da variedade de vozes. Quando renunciaram à unidade estilística da epopéia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica, esses gêneros optaram pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico, empregando amplamente os gêneros intercalados: cartas, manuscritos, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados e citações recriadas em

paródia. Em algumas dessas obras, houve a fusão da prosa e do verso, além da inserção de dialetos e jargões vivos. Ocorreu, consequentemente, um tratamento radicalmente novo do discurso enquanto matéria literária.

Esses três traços são fundamentais para caracterizar todos os gêneros do sério-cômico, segundo a leitura de Bakhtin.

No documento Cinismo: forma de vida, modo de gozo (páginas 111-116)

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