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O INTERROGATÓRIO E O DIREITO AO SILÊNCIO

3. O interrogatório e sua natureza jurídica

3.6. A garantia do direito ao silêncio e as vítimas

Consideramos que é muito importante numa sociedade civilizada, dispor de uma justiça produtiva e eficaz, e para conseguirmos obter bons resultados temos que resolver o problema da impunidade dos crimes. E para compreendermos melhor, ensina-nos Frederico Isasca que “ […] se é certo que a reposição do direito se não pode fazer à custa da negação ou da limitação dos direitos de defesa, não é menos verdade que ‘do outro lado’ existe uma vítima que é o suporte individual de um bem jurídico fundamental que foi violado e que espera uma resposta célere e em conformidade como as expectativas – tanto substantivas, como adjectivas – criadas pela Ordem Jurídica. Não podemos pois correr o risco de imolar a realização da justiça na ara dos direitos do arguido, sob pena de total descredibilização do Sistema. Uma tal atitude criaria na vítima e na colectividade um sentimento de absoluta frustração e compreensível revolta, podendo em última instância conduzir a motivações para uma auto-tutela dos interesses ou para formas marginais de ‘justiça’, pondo em causa o próprio Estado de Direito”280

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É através do processo penal, que tem como finalidade, como vimos a dizer ao longo deste trabalho, a realização da justiça e a descoberta da verdade processualmente válida, a protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos, para o restabelecimento da paz jurídica, que a concretização do direito penal material, a averiguação da existência de um crime e a determinação das suas consequências jurídicas são alcançadas. É verdade que as discussões à volta da verdade material e dos direitos fundamentais dos cidadãos têm levado o restabelecimento da paz jurídica para segundo plano.

O processo penal não pode desiludir as expectativas da sociedade. A este propósito, Francisco Garrett diz que “ […] O processo penal deve zelar pela confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e produzir nos delinquentes uma dissuasão capaz de os fazer arrepiar caminho. Só assim é possível atingir quer a finalidade politico-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime, quer o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade”281

.

280 F

REDERICO ISASCA, «A prisão preventiva e restantes medidas de coacção» in Jornadas de Direito

Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, p. 103. 281 F

RANCISCO ALMEIDA GARRETT, Sujeição do arguido a diligências de prova e outros temas, Porto, Fronteira do caos Editores Lda., 2007, p. 27.

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No século XX o processo penal foi o processo do arguido, dos seus direitos e deveres, as vítimas quase não tinham lugar no julgamento, uma vez que o que se discutia era a condenação do acusado, logo, o que se tornava mais importante era dar resposta ao agente do crime, através da sua condenação. O que estava em causa era reparar o dano para a sociedade, ou seja “a perturbação da paz pública e a quebra da confiança no direito”282

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Mas a vítima foi, paulatinamente, ocupando um papel na acusação ao lado da acusação pública, e passou a ser considerada sujeito do processo, usufruindo de medidas de protecção. Com esta evolução não quer dizer que a vítima seja o centro do processo penal e a decisão judicial seja orientada para satisfazer a sua vingança pessoal, mas tem que dar resposta ao seu sofrimento, porque por vezes não se trata apenas da reparação social, através de indemnização, mas sim da dignidade da vítima afectada pelo crime. Segundo Fernanda Palma283 “este objectivo deve ser prosseguido por um Processo Penal público, em que o Estado assuma a reparação dos danos afectados. Porém, a condenação do arguido não deve servir, por si mesma, de reparação do dano da vítima”.

É ao estado que cabe o dever de reprimir os comportamentos ilícitos na medida do possível para a convivência social com o inevitável limite da culpa, mas deve também promover a reparação do dano causado à vítima. Para alcançar este propósito é crucial criar um conjunto de novos mecanismos que reparem a vítima do dano que lhe foi causado e que ao infractor lhe seja retirado o lucro que obteve com tal infracção.

Temos que pensar em reforçar os direitos de participação da vítima no processo especialmente no recurso de decisões que afectem a sua posição processual.

Tendo em conta os novos contornos da criminalidade moderna Figueiredo Dias diz- nos: “ Trata-se, em meu parecer, antes e sobretudo de, no estabelecimento da concordância prática entre os interesses conflituantes, integrar o interesse das vítimas reais e potenciais, presentes e futuras, da grande e nova criminalidade. Tem aqui preciso lugar o apelo a uma

acrescida solidariedade indispensável para oferecer um futuro à humanidade. Por esta via

chego à exigência – político-criminalmente imposta – de uma consideração diferenciada e

diversificada de todo o problema”284, a que propõe que “o ponto de equilíbrio dos interesses

282 F

ERNANDA PALMA, A vítima no processo penal, Jornal Correio da Manhã, Publicação de 30/11/2008.

283 Idem. 284 F

IGUEIREDO DIAS, O processo penal português: problemas e perspectivas, in Mário Ferreira Monte (coord.). Que Futuro para o Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 812.

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conflituantes já deve ser outro, e diferente, para a grande e nova criminalidade, concretamente, para o terrorismo e a criminalidade organizada. Aqui, as ‘vítimas’, na acepção ampla em que delas venho falando, têm um direito indeclinável a uma proteção reforçada e, consequentemente, a uma intensificação do intervencionismo estadual. Com uma dupla e inultrapassável limitação, em todo e qualquer caso. Logo, a que resulta do respeito pelo

núcleo irredutível da dignidade humana que pertence também ao criminoso mais brutal e

empedernido. E depois, a que deriva da exigência jurídico-constitucional de não diminuição, pela legislação ordinária e pela sua aplicação, ‘da extensão e do alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais’ em matéria de direitos, liberdades e garantias, e portanto também daqueles que pertencem à chamada Constituição processual penal. Através de uma e de outra limitação ficarão preservados, na maior medida possível, os princípios processuais penais clássicos, próprios de um Estado de Direito”.

Assim, segundo Mário Ferreira Monte “cremos que, nesta linha, dentro de certas condições, não é de excluir uma solução segundo a qual as declarações do arguido proferidas em actos anteriores, perante autoridade judiciária, possam ser lidas em audiência – podendo e devendo ser submetidas ao contraditório, e portanto por si rebatidas. Isso devia ser assim em situações em que os interesses das vítimas o imponham”285.