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A Geografia da Violência: território, lugar e fronteira

“Há mais de três séculos o Recife suporta as consequências de ser a metrópole regional do Nordeste” (Virginia Pontual)

Recife se modernizava e transformações físicas e culturais passaram a ocorrer ao longo dos anos, mas como já foi dito, a cidade preservava ainda na década de 40 e 50 divisão de territórios que inclua extensas áreas rurais. O Recife urbano avançava cada vez mais e ampliava seu entorno suburbano não apenas nas malhas das construções, mas principalmente nas relações de vizinhança cada vez mais distantes das características de relações pessoais do mundo rural. O bairro de Afogados, por exemplo, na zona oeste, é um dos bairros com mais crime de sangue presente nos processos, porém aqui assume características bem específicas para a época, quase não se registra esfaqueamento ou conflito interpessoal de outra instância, na prática Afogados representa aquilo que os jornais passaram a chamar de “a batalha de Recife”,

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já que para época é o local por excelência para crimes envolvendo veículos dos mais diversificados, bondes descarrilhando, carros e caminhões em choque, usuários de trem que procurando desembarcar antes da parada, terminavam sendo colhido pelas rodas. A falta de segurança no transporte automotivo era a tônica. Ao longo dos pontos, filas enormes de passageiros aguardavam sua vez de andar em ônibus abarrotados, somado a um sistema viário que não conta com calçadas adequadas e seguras para a circulação de pedestres. Vale lembrar, para uma rápida comparação, que somente na década de 90 as leis de trânsito e fiscalização ficaram mais consistentes, reduzindo pela metade o índice de mortalidade.

Era o tempo de cinemas de bairros como o Cine Eldorado, localizado em Afogados, local de grande atração de pessoas e ao mesmo tempo de intenso fluxo de veículos, todos os dias. O bairro de Afogados nessa época se fortalecia com o crescimento do comércio reforçando ainda mais o trânsito, resultando em alto índice de atropelamentos como o caso em que o motorista João Fernandes, vindo em velocidade excessiva, atropelou, causando ferimentos sérios, em Olímpio Francisco Vieira206 quando este se encontrava praticamente a frente do Cine Eldorado. Se tratando do bairro de Afogados, acidentes como este passaram a ser corriqueiros, acompanhando as notícias dos jornais da época é possível identificar semanalmente fatos desse tipo. A cidade crescia e com ela seus problemas de ordenamento e segurança.

Virgínia Pontual (1996) em seus estudos esclarece que: o crescimento demográfico nas décadas de 40-50 e 50-60 foi de, respectivamente, 50,6% e 51,9% e reforça a análise de Mário Melo207 (1978, p.120) para o qual a

expansão demográfica “trata-se evidentemente de incremento explosivo a ser explicado pelo aumento correspondentemente acelerado da parcela de crescimento vegetativo e do incremento da parcela, tudo indica que ainda maior representada pelos fluxos migratórios ou, mais precisamente, pelos saldos do balanço migratório”.

206 MJPE. Processo Criminal nº 1420, cx. 931, ano 1962.

207 MELO, M. L. de. Metropolização e subdesenvolvimento: o caso do Recife. Recife: Universidade Federal de PE/Dep. De Ciências Geográficas, 1978, p. 120.

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Tabela 6 - Migrações para o Recife entre 1940-1960 Decênio População inicial Crescimento

natural Saldo das migrações População ao fim do decêncio 1941-1950 348.424 89.346 86.912 524.682 1951-1960 524.682 158.296 114.256 797.234

Fonte: SUDENE/Deptº de Saneamento do Estado de Pernambuco. Planejamento do Sistema de A aste i e to D’Água da Área Metropolita a do Re ife. 6 , p. .

Segundo os próprios dados do IBGE, o bairro de Afogados, que tomamos, por exemplo, obteve um crescimento urbano entre os anos de 1950 a 1960 de 42,22%, passando de 71.702 para 101.971 habitantes208. Entre as

áreas de maior crescimento populacional de Recife, temos além de Casa Amarela, que já se destacava desde a década de 40 com a ocupação dos morros, e de Beberibe na década de 50, outros bairros que passaram a um vertiginoso aumento populacional, com destaque para Afogados, Encruzilhada, Madalena e Graças. (Pontual)

Em Casa Amarela a geografia peculiar se apresenta diferenciada, como dito anteriormente são os morros que passam a ser ocupados e a peculiaridade geográfica não para por aí. Enquanto em Afogados se formava um aglomerado comercial, Casa Amarela se caracteriza por ser um bairro residencial de grande aglomerado populacional. A proximidade [do convívio] e o distanciamento [dos laços] torna-se a tônica do bairro que convive com uma agitada rede de vizinhança, contatos, trocas de relações e claro, crimes.

Devido a falta de policiamento que ora se observa no subúrbio de Casa Amarela, de cujo comissariado saem poucas rondas no decorrer da semana, o Largo D. Luiz, naquela jurisdição policial, está transformado em local predileto para reunião de indivíduos de profissão duvidosa, que ali se reúnem para aperriarem as famílias.

Com efeito, uma súcia de vagabundos misturados com menores desocupados, indicando-os na vida de desregramentos, faz plantão naquele Largo e ali pratica um inacabado jogo de futebol, pois o malfadado divertimento começa logo de manhã, mas nunca se sabe bem a hora em que termina.

208 IBGE, Anuário Estatístico de Pernambuco, ano XIV . Rio, 1950, p.25 e Deptº de Saneamento do Estado de PE/SUDENE. O Planejamento do Sistema de Abastecimento D’Água da Área Metropolitana. Recife, 1968, p.68.

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Além do mais, outros preferem entregar-se ao jogo do “Caipira” atirando dados de vez em quando e a dinheiro, e a uma parada mais violenta, os gritos de palavras obscenas são ouvidos á distancia e com toda liberalidade.

Tudo isso constitue um verdadeiro inferno para as famílias que são domiciliadas não só naquele Largo, como também nas imediações. As queixas que chegaram ao conhecimento do repórter são tanto mais graves, diante da atitude dos indivíduos que ali permanecem o dia inteiro atirando pilherias grosseiras as senhoras e as mocinhas que necessitam passar pelo local. A esse respeito, já o DIÁRIO, nesta secção, teve a oportunidade de referir-se, chamando a atenção das autoridades policiais, não sendo, também, descabidas umas visitas do pessoal encarregado de fiscalizar os menores, nas ruas, serviço afeto, aliás, ao Juizado de Menores, afim de que o mal tenha fim, para tranquilidade das famílias de Casa Amarela209.

Não queremos, contudo, passar a falsa impressão de que a presença de moradores nos morros acarretou o aumento da criminalidade, já discutimos o quanto uma análise profunda feita por Alba Zaluar na década de 1980 sobre pobreza e o aumento da criminalidade desmonta essa tese, o que torna pontual aqui é o fato de estarmos ainda no início do processo democrático, em pleno ano de 1947, onde os jornais experienciavam sua liberdade de expressão e onde cenas do cotidiano ganhavam bem mais destaque numa perspectiva classista que enfrenta a disputa dos espaços urbanos, nos seus usos, com a população menos favorecida economicamente. Nessa construção de discurso, os “vagabundos misturados com menores desocupados” passam a prática de futebol constante no Largo D. Luiz, prática que assim como tantas outras recebe um enfrentamento. O espaço geográfico mesmo que permaneça com pouca ou nenhuma mudança em sua forma, torna-se palco de disputa em seu uso, a urbanidade privilegia a constituição de uma cultura que fortaleça relações impessoais e que otimize a vida pautada no trabalho.

É pontual notar que os jornais ao longo do final da década de 1940 em comparação a suas edições de 1950 e 1960 detalham mais o cotidiano das relações violentas, exploram as motivações, questionam as ações policiais,

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articulam debates sobre a norma. As décadas que precedem 1940 vão pouco a pouco afinando seu discurso de cooperação com as instituições, deixando parco espaço para a crítica do status quo. Casa Amarela aparece no futebol, nas jogatinas, nos bares e principalmente nos crimes passionais.

Fervilhado notícias de jornais sobre crimes por toda a região metropolitana, o cotidiano passa a ser retratado em quaisquer de seus contextos, seja nos momentos e espaços de lazer ou trabalho, no público ou no privado, fazendo com que crimes de sangue apareçam em situações inesperadas, fora de um contexto planejado. Um encontro familiar, uma negociação qualquer de bens pode ser o catalizador de uma transformação de uma situação que gera uma ação inesperada, o ato de matar ou morrer. A ação irrompe quase sempre de forma imediata, tomando a característica de serem crimes fúteis. Mesmo a ação premeditada, quando ocorre, estabelece um espaço mínimo de tempo entre o desafeto ocasionado e o momento oportuno do revide, onde condições favoráveis estabelecem uma nova realidade para operar a ação. É o que podemos considerar como tempo da emoção, onde ainda ressentindo com os acontecimentos, busca a reparação da ofensa.

Quando, por exemplo, Luiz Vicente Cândido, antigo presidente da troça carnavalesca Traquinas teve sua casa invadida pelo atual presidente da agremiação, o indivíduo Marximiano Rodrigues da Silva, como consta no processo criminal, têm-se no depoimento do agredido,

[...] no ano passado a diretoria da referida troça, deu um desfalque de sete mil e setecentos cruzeiros; que tendo sido levado o caso a delegacia de investigações, foi resolvido pelas autoridades que o então presidente Luiz Vicente Cândido, indenizasse a referida troça com a importância de três mil cruzeiros, pagando semanalmente a importância de cem cruzeiros210.

Nesse ínterim, o tesoureiro da agremiação procurou Maximiano e pediu que apresentasse os respectivos recibos das despesas que o acusado alegava ter feito com direitos autorais da sociedade; como Maximiano nada apresentara alegando ter deixado o recibo em casa, o tesoureiro, oficiou ao ex-presidente

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Luiz Vicente Candido, afim do mesmo sustar os pagamentos até que houvesse reunião da diretoria para resolver o caso.

[...] no dia quatro do corrente estava na casa de Luiz Vicente Candido aproximadamente a dezenove horas [...] quando ali chegou Maximiano Rodrigues da Silva, que logo entrou em discussão com ele declarante relativo ao dinheiro da sociedade já referida, que a discussão tem início em face de Maximiano tentar receber de Luiz Vicente mais uma prestação, as quais foram interceptadas em face do ofício expedido por ele declarante ao ex-presidente da já citada sociedade; que no meio da discussão precipitadamente Maximiano saca de uma faca pexeira investindo contra ele declarante; que num esforço tremendo do declarante procurou livra-se dos golpes que lhe eram deferidos por Maximiano, que não obstante, ele declarante foi atingido nas costas, nas mãos e na face esquerda211.

Notadamente, apesar de noticiarmos a existência do Sindicato da Morte, a maioria dos crimes de sangue ocorre vinculada a esfera do cotidiano relatado onde o criminoso é pai, amigo, vizinho, colega de trabalho, ou seja, de alguma forma mantém laços na esfera das relações pessoais. O irromper da violência em meio a um ambiente tão próximo de relações sociais evidencia o seu uso como desfecho, imposição, fim do espaço de negociação, ao mesmo tempo em que banaliza esse uso, fortalecendo uma cultura da violência. Essa violência que se apresenta no corriqueiro das ações termina por fortalecer o não reconhecimento do outro enquanto sujeito de direito, abdica-se da esfera contratual da sociedade para agir de forma a sobrepor-se ao adversário.

De maneira especial os conflitos são necessários, no seu bojo está o próprio processo de negociação mediante posições opostas, sendo ambiência para o desenvolvimento de uma sociedade democrática. Havendo mesmo a necessidade que a harmonia e a desarmonia esteja presente como argumenta Simmel (1983) em seus estudos.

Quando passamos a ler sequencialmente os casos apresentados nos processos criminais, tornou possível compreender que a violência urbana, se afastarmos os atropelamentos, batidas e demais crimes de trânsito, terminamos por nos deparar com a criminalidade crescente, no que se refere ao crime de sangue, sendo apresentada muito mais no espaço privado das

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relações do que no espaço público. Normalmente é a residência o lugar de maior ocorrência desse tipo violência.

Sendo o lar espaço de maior vulnerabilidade, nos apresenta o contraponto do ideário que estabelece para esse espaço a concepção de lugar seguro. É evidente que há modalidades de crime que estão propensos a ocorrerem em espaço público como as “lanças” e os “cadáveres”, porém, em termos de espaço privilegiado para a prática do crime, o contexto e as circunstâncias remete a questão para o ambiente das relações, se distanciando assim de uma agência de determinismo geográfico que solidifique espaços suscetíveis a violência.

4.2 A honra violada e o “direito” de restituí-la pelo sangue: o confronto entre

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