• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II | TERCEIRO SECTOR E GOVERNAÇÃO EM REDE: REVISÃO

2. O contexto evolutivo da Administração Pública

2.4. A Gestão do Valor Público

No processo de governação, a Gestão do Valor Público, como o próprio nome indica, tem como principal objetivo a criação de valor público, isto é, a criação de resultados que sejam valorizados por todos. O valor público é mais do que uma soma de preferências individuais dos utentes e dos fornecedores de serviços públicos; a noção do que é valor público passa pela construção coletiva através da discussão e da decisão, envolvendo todos os agentes da comunidade (Stoker, 2006, p.42).

Baseando-se no estudo de Kelly & Muers (2002), Stoker (2006, p.44) aponta as diferenças substanciais que existem entre este paradigma e a APT e a NGP, nomeadamente ao nível dos objetivos-chave, do papel dos gestores, da definição do interesse público, da abordagem ao ethos do serviço público e do sistema preferencial de prestação de serviço:

i. A Gestão do Valor Público apresenta como objetivo-chave a obtenção de “valor público, implicando uma maior eficiência na forma de resolver os problemas mais urgentes do público”, sem negligenciar a manutenção do serviço e o seu fornecimento. Este paradigma contrasta com a APT e a NGP neste aspeto, uma vez que, na APT, os objetivos são “fornecidos politicamente e os serviços são monitorizados através do controlo burocrático”, enquanto que na NGP, os objetivos- chave passam por “gerir inputs e outputs de forma a assegurar economias e resposta aos consumidores”;

ii. O papel dos gestores, na APT, era apenas “assegurar que as regras e os procedimentos eram estritamente seguidos”. Já na NGP os gestores “ajudavam a definir e a dar resposta aos objetivos de desempenho previamente acordados”, e na Gestão do Valor Público, o papel dos gestores passa por “guiar as redes de decisão e de prestação de serviços, contribuindo para a manutenção geral do sistema”;

iii. Relativamente à definição do interesse público, como já vimos anteriormente, este passa pelo envolvimento de todos os agentes para a definição de valor público, “através de um processo complexo de interação que envolve reflexão e decisão entre todos os atores”, contrariamente ao que se assiste na APT, cujo interesse público era definido pela via política, e ao que se assiste na NGP, em que o interesse público era justificado pela “agregação de preferências individuais recolhidas pelas escolhas dos consumidores”;

iv. Para a Gestão do Valor Público, “nenhum sector detém o monopólio sobre o ethos do serviço público”, ou seja, o serviço público não deve pertencer somente ao sector público, como é nomeado pela APT, nem deve pertencer ao sector privado, como na NGP; aqui, é “essencial manter redes de relações” entre as diversas esferas da sociedade, através da partilha de valores. Assim, o sistema preferencial para a prestação de serviço deve corresponder a um “menu de alternativas

selecionadas de forma pragmática”, que pode vir da esfera pública ou privada, interessando apenas selecionar a alternativa que melhor presta o serviço em causa (Stoker, 2006, p.44).

A acrescentar às características nomeadas anteriormente, Stoker (2006, p.47) afirma que o paradigma da Gestão de Valor Público pode ser explicitado através de quatro proposições. Primeiro, “as intervenções públicas são definidas pela procura de valor público. Aqui, importa saber se o serviço em questão produz resultados sociais ou económicos com valor, de forma a criar valor público. Para tal, é necessário envolver todas as partes interessadas e os responsáveis do governo e debater sobre a questão.

Segundo, “existe a necessidade de dar mais reconhecimento à legitimidade de uma diversidade de stakeholders” (Stoker, 2006, p.47). O paradigma da Gestão do Valor Público, assenta na conceção de legitimidade dos stakeholders ao formar arranjos de governação, pois “uma decisão para ser legítima ou uma apreciação ser feita, é necessário envolver todos os stakeholders” (Stoker, 2006, p.47), sejam eles parceiros privados, líderes locais, aqueles com conhecimento sobre serviços enquanto profissionais ou utentes, e aqueles que se encontram numa posição de avaliação, como auditores ou reguladores.

A terceira proposição afirma que a Gestão de Valor Público assenta numa “abordagem de relação despreconceituosa de prestação de serviços, moldada por um compromisso com um ethos do serviço público (Stoker, 2006, p.48). No mesmo seguimento, o autor afirma que “a prestação de serviço eficaz requer uma perspetiva aberta para identificar o melhor fornecedor, quer ele pertença ao sector público, privado ou voluntário, não existindo nenhuma dimensão ideológica que decida quem presta o serviço e não há nenhuma virtude moral no facto de receber os salários diretamente do governo” (Stoker, 2006, p.48).

Finalmente, “o desafio da prestação de serviço público necessita de uma abordagem adaptável e baseada na aprendizagem, pois, de acordo com vários investigadores (Rhodes, 1997; Jessop, 2000 apud Stoker, 2006, p.49), ”a intervenção dos diversos atores, no contexto da governação em rede, é vista como um processo na qual a adaptabilidade e a flexibilidade são virtudes-chave”. Assim, o gestor do Valor Público ideal é aquele que faz parte de um “processo de contínua evolução e aprendizagem” (Stoker, 2006, p.49).

A questão da accountability também se diferencia da APT e da NGP. Enquanto que na primeira são as “eleições competitivas que fornecem líderes capazes de conduzir e supervisionar” (Stoker, 2006, p.50) de forma a assegurar a accountability, na NGP, são os gestores públicos que tem de assegurar que os objetivos e as metas definidas politicamente são atingidas. Na Gestão de Valor Público, a accountability depende de uma troca complexa e contínua entre liderança e cidadãos e é conseguida através da “supervisão atenta e pela negociação dos objetivos” (Stoker, 2006, p.50).

A evolução registada dos três paradigmas da AP conduziram a uma alteração das estruturas organizacionais das entidades públicas e privadas. A governação de redes e a Gestão de Valor Público refletem a crescente complexidade por detrás da atuação das organizações e na

muitos dos objetivos das organizações apenas são atingidos se atuarem numa lógica de governação em rede.

Como sublinha Araújo (2005, p.4), “a interdependência entre organizações está a aumentar, pois os recursos são escassos, o conhecimento especializado não é exclusivo de um só ator, havendo, portanto, a necessidade de fomentar a cooperação”. Desta forma, é cada vez mais urgente e necessário abrir espaço para o diálogo, através da discussão pública e da colaboração entre os atores sociais que detém o conhecimento e os recursos, de forma a criar valor e resultados que todos valorizem. Para além disto, a atuação das organizações em rede apresenta uma série de benefícios, nomeadamente o incentivo a um sentido de pertença, seja a uma causa, ou a um território; permite a criação de diversas oportunidades para os indivíduos e entidades se envolverem no processo de tomada de decisão; permite a divulgação de informação à comunidade; e uma maior mobilização e participação cívica.

Assim, um modo de governação do tipo top-down, na qual os objetivos são unilateralmente definidos e impostos aos outros atores, e com o recurso à hierarquia, já não é adequado (Araújo, 2005, p.4). Urge a necessidade de promover a cooperação interorganizacional, incentivando os atores a desempenhar novas responsabilidades e a desenvolver competências que permitam a “construção e a manutenção de relações complexas com uma grande variedade de atores” (Araújo, 2005, p.6).

Apesar deste discurso, as questões repercutidas pela Gestão de Valor Público ainda são uma realidade distante, em Portugal. Do que se constata, as instituições governamentais e mesmo as do terceiro sector continuam bastante sufocadas pela burocracia e pela hierarquia. Internamente, as organizações deparam-se com bloqueios burocráticos, uma vez que o próprio sistema da gestão da qualidade sufoca com burocracia e processos, às quais os colaboradores têm de dar resposta.

As OSFL, de forma a darem continuidade à sua existência, sobrevivem de subsídios, de programas governamentais, principalmente para conseguirem manter postos de trabalho, e muitos dos seus projetos são fomentados apenas com prémios ganhos no âmbito da responsabilidade social de grandes empresas do sector privado.

O trabalho voluntário, que se revela uma grande força para as organizações do terceiro sector, ainda revela valores relativamente baixos em Portugal, uma vez que ainda não existe a consciência plena das vantagens da participação e envolvência dos cidadãos em causas que são preconizadas pelas OSFL.

Numa primeira vista, o impacto que uma governação em rede causaria na sociedade seria de extrema importância para atenuar os problemas vividos pela sociedade e englobar todos no processo de decisão.

Assim, nas palavras de Neves (2010, p.210), terá de se ter em conta a complexidade da nova governação e das redes entre os atores da nova governação e entre os serviços públicos, para uma aplicação do novo desenho de arquitetura da AP, “permitindo a participação, o exercício da cidadania, e as parcerias com todos os atores que concorrem ou podem intervir na resolução de problemas e no desenvolvimento sustentável dos diversos sistemas sociais”.

3. Relação entre Terceiro Sector, Governação em Rede e Capital