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A gramaticalização dos verbos auxiliares

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Gramática funcional

2.1.5 A gramaticalização dos verbos auxiliares

Após este amplo panorama dos pressupostos da gramaticalização, convém expor o processo de gramaticalização ao qual os verbos auxiliares se sujeitam. Note-se que estes possuem um nível de gramaticalidade completo, diferentemente das CVPs.

Primeiramente, faz-se importante definir a questão da auxiliaridade, que consiste em:

uma relação de complementação entre duas formas verbais; o auxiliar, como forma relacional que toma por complemento um verbo-base (cf. Radford, 1997, pp. 65-66); e a perífrase ou locução verbal, como um complemento unitário que reúne um verbo e uma forma de infinitivo, gerúndio ou particípio numa só predicação (LONGO; CAMPOS, 2002, p.447).

A fim de identificar os auxiliares, Longo e Campos (2002) propuseram os seguintes critérios: impossibilidade de desdobramento da oração, existência de sujeito único e detematização. Quanto ao primeiro, que está intimamente relacionado com o segundo, os auxiliares formam um grupo indissociável com a base. Assim, se o grupo verbal for desmembrado em dois núcleos oracionais, não há auxiliaridade. A perífrase possui apenas um argumento externo com traços semânticos e papel temático compatíveis com a base, formando um complexo unitário. Portanto, não haverá auxiliaridade se forem atribuídos sujeitos diferentes para os dois verbos, sendo acidental o encontro dos verbos. “Considerando que ao verbo auxiliar não se associa uma grande temática, podemos distingui-lo de um verbo pleno” (LONGO; CAMPOS, 2002, p.448). As autoras dão o exemplo do verbo ir, que como não auxiliar possui sujeito agente (animado) e dois complementos, um de origem e um de meta,

41 como pode ser visto no exemplo (7); como auxiliar pode ocorrer com sujeito tema (não animado) e sem complemento, como no exemplo (8) (LONGO; CAMPOS, 2002, p.448): 7) Fomos de São Paulo ao Rio pela ponte aérea.

8) O balão foi caindo lentamente.

Longo e Campos (2002, p. 456) afirmam que “[o] auxiliar de tempo funciona de maneira análoga à de um morfema gramatical de tempo que fosse afixado ao radical de um verbo pleno”. Portanto, a forma perifrástica possui uma forma simples.

Tendo em vista estes critérios de identificação de auxiliares, destacamos a existência de algumas hipóteses para definir os auxiliares propostas por Heine (1993). De acordo com a hipótese da autonomia, os auxiliares constituem uma categoria distinta, diferente de verbos e outras categorias. Já segundo a hipótese dos verbos principais, os auxiliares são fundamentalmente verbos ou verbos exibindo algum comportamento anormal. Alguns autores, como Pullum e Wilson (1977), defendem que a categoria de verbo em inglês também inclui os auxiliares como uma subclasse especial. Há também a posição da gradualidade, a qual atesta que não há limites separando auxiliares de verbos principais: ambos formam um continuum ou gradiente. Tal posição é associada com os estudos em gramaticalização, principalmente com os trabalhos de Givón (1975;1979;1984), e é a posição adotada neste trabalho, visto que a gradualidade é um pressuposto do funcionalismo, abordagem adotada aqui.

Após explicada a hipótese que melhor define os auxiliares, partimos para algumas propriedades dos auxiliares translinguisticamente atestadas, propostas por Heine (1993, p. 22- 24), das quais destacamos as mais relevantes no contexto das línguas românicas:

 tendem a fornecer expressões para uma pequena lista de domínios nocionais, especialmente para os domínios de tempo, aspecto e modalidade; outros domínios exibindo propriedades de auxiliares em variadas línguas são negação e voz;

 formam um conjunto fechado de unidades linguísticas;

 não são unidades nem claramente lexicais nem claramente gramaticais;

 também ocorrem como verbos principais;

 expressam funções gramaticais, mas exibem uma morfossintaxe verbal; em muitos trabalhos, são definidos com uma subclasse de verbos;  ao mesmo tempo que possuem algumas propriedades verbais, também mostram um comportamento verbal reduzido, tendo, por exemplo, “paradigmas altamente defectivos” (McCAWLEY, 1975 apud HEINE, 1993, p. 22); podem associar-se apenas com um espectro restrito de distinções de tempo/aspecto e/ou flexões verbais, podem não ser passivizados, não têm formas imperativas, e alguns autores indicam que auxiliares podem não ser independentemente negados (como PARK, 1992 apud HEINE, 1993, p. 22);

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 carregam toda a informação morfológica relacionada ao predicado, como distinções de pessoa, número, tempo/aspecto/modalidade, negação, etc. STEELE et al. (1981 apud HEINE, 1993, p. 23) notam que auxiliares podem ser expressões de marcação de sujeito, concordância de sujeito, aspecto, marcação de questão, ênfase, evidencial, marcação de objeto, concordância de objeto, negação, tempo e modalidade, mas essa lista não exaure a extensão de funções expressas por elementos tipicamente anexados como flexões a auxiliares;

 a concordância de sujeito também tende a ser marcada no auxiliar em vez de no verbo principal;

 auxiliares podem não ser governados por outros auxiliares, ou só por um número limitado deles;

 não têm significado próprio ou não contribuem ao significado da sentença, preservando o status categorial do verbo principal (são sinssemânticos e sincategoremáticos ao lexema ao qual eles se aplicam);  tendem a ocorrer separadamente do verbo principal;

 podem ser ligados a algum elemento adjacente;

 diferentemente dos verbos, auxiliares podem não ser nominalizados ou ocorrer em compostos;

 tendem a ocorrer em uma ordem fixa e em uma posição fixa na oração;

 na presença de um auxiliar, o verbo principal é comumente usado em uma forma não-finita, frequentemente carregando consigo alguns elementos morfológicos, como uma nominalização, marcador infinitivo, participial ou gerundival.

Vale ressaltar que nem todos estas propriedades precisam ser observadas concomitantemente em um auxiliar. De acordo com Heine (1993), os auxiliares recebem uma análise de protótipos, explicitada anteriormente; isto é, quanto mais atributos um item exibir, mais provavelmente corresponderá à noção de um auxiliar prototípico.

A fim de tratar do processo de gramaticalização que ocorre com os verbos auxiliares, serão mostradas a seguir as principais características da cadeia de gramaticalização dos auxiliares apontadas por Heine (1993, p. 53):

 o auxiliar refere-se a uma forma linguística que consiste em uma sequência de pelo menos dois usos distintos, mas que se sobrepõem, em que um é chamado de fonte e o outro de alvo;

 a relação entre os usos fonte e alvo é claramente definida: o primeiro é tanto historicamente anterior quanto menos gramaticalizado que o último;  a razão para referir essa estrutura como uma “cadeia” pode ser vista no comportamento de sobreposição que ela exibe. Esse comportamento afeta todos os componentes de uma forma linguística relevante, desde seu componente semântico até seu componente morfossintático, e até o fonológico;

 a presença da sobreposição é responsável pelo fato de que (i) categorias gramaticais são inerentemente ambíguas em certos usos, e que (ii) as cadeias de gramaticalização são unidirecionais, expandindo de usos historicamente anteriores/menos gramaticalizados para usos posteriores/mais gramaticalizados;

 Uma cadeia de gramaticalização tem uma dimensão tanto diacrônica como sincrônica; diacrônica porque é o resultado da mudança linguística, e

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sincrônica porque consiste de uma extensão de usos sincronicamente definidos;

 Cadeias de gramaticalização podem ser definidas como categorias de semelhança de família linearmente estruturadas.

Na cadeia de gramaticalização de verbo a auxiliar (verb-to-TAM chain)9 estão

presentes os seguintes parâmetros, propostos por Heine (1993, p. 53-56), em que três dos quais remetem a três dos mecanismos de gramaticalização citados por Heine (2003), vistos anteriormente (cf. p. 30):

 Dessemantização (ou ‘branqueamento semântico’): um processo em que, em contextos específicos, um item lexical torna-se vazio de sua semântica lexical e adquire uma função gramatical.

Decategorização: de acordo com Hopper (1991 apud Heine 1993, p. 55), formas que se submetem à gramaticalização tendem a perder ou a neutralizar os marcadores morfológicos e os privilégios sintáticos característicos das categorias plenas Substantivo e Verbo e a assumir atributos característicos das categorias secundárias, como Adjetivo, Particípio, Preposição etc.

 Cliticização: com a perda de seu conteúdo lexical, o verbo cada vez mais se desenvolve em um “operador” em seu complemento anterior, que novamente assume cada vez mais a função de verbo principal. Esse desenvolvimento tem o efeito de que o verbo torna-se um apêndice do complemento/verbo principal, ocasionalmente também de algum outro constituinte.

 Erosão: em adição às mudanças conceptuais e morfossintáticas, há também uma mudança fonética, em que o verbo perde sua habilidade de carregar tom ou acento distintivo.

Estes parâmetros são relevantes para que se note a diferença entre auxiliaridade e as CVPs focalizadas neste estudo, já que, como será visto na seção de análise, as CVPs, apesar de estarem sujeitas à dessemantização e decategorização, não passam pelo processo de cliticização e erosão.

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