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Poucos anos depois de Constantino ter concedido liberdade de culto aos cristãos e iniciado uma política de aproximação dos membros da hierarquia eclesiástica, o imperador se viu na incumbência de interferir em uma grave questão, referente à organização do cristianismo no norte da África, o cisma donatista. O imperador repreendeu com violência os cismáticos. Entretanto, esse era apenas o início de uma série de interferências que o poder imperial faria no intuito de manter a unidade de sua nova aliada e dela conseguir apoio. A Igreja enfrentaria, com o arianismo, uma outra crise ainda maior provocada por uma heresia.

14 Hannah Arendt (2002, p. 37) afirma que “o poder institucionalizado em comunidades organizadas

frequentemente aparece sob a forma de autoridade, exigindo o reconhecimento instantâneo e inquestionável; nenhuma sociedade poderia viver sem isso”.

A heresia ariana tivera origem por volta de 318, a partir de um amplo debate teológico que, por cerca de sessenta anos, mobilizou em torno de si não só o corpo eclesiástico e o poder imperial, mas também grande parte da população urbana. A integração da Igreja à ordem institucional e sua ação como mediadora entre as decisões imperiais e a população provincial contribuiu para que a unidade da Ecclesia e do Império pudesse ser ameaçada por esse debate teológico. Segundo O’Grady (1994, p. 100), quando o arianismo surgiu, a maioria dos clérigos não havia atentado para discussões a respeito da origem e natureza de Jesus e sua relação com a Trindade. Antes, a polêmica doutrinária se restringia à origem do mal e à criação do universo.

O arianismo surgiu em Baucális, no Egito, com a pregação de Ário, que teria assumido o presbitério em 312. Os sermões de Ário tinham como tema central a origem e a natureza de Jesus, o Logos. O bispo de Alexandria, Alexandre, logo que tomou conhecimento dos ensinamentos de Ário não os aprovou e, em decorrência disso, em 318, convocou um Concílio, reunindo líderes da Igreja do Egito e da Líbia, a fim de combater e confirmar a condenação de Ário e sua doutrina. Terminados os trabalhos, e tendo Ário recusado a abandonar sua doutrina, foi banido, juntamente com seus seguidores. A querela que se iniciou adquiriu uma dimensão hierárquica, uma vez que o presbítero não acatou a determinação conciliar. O debate ganhou as ruas e atraiu os leigos de Alexandria, levando-os a escolher um posicionamento a favor ou contra Ário.

Ário questionava a divindade de Jesus, pregando que “antes de Cristo existir, Deus ainda não era Pai e por isso havia um tempo em que Cristo não existia, o que significava que o Logos não era eterno como Deus”. Ário tentava combater o que considerava uma inclinação sabeliana de seu bispo, ou seja, Alexandre consideraria o “Pai” e o “Filho” classificações diferentes do mesmo sujeito, isto é, diferentes aspectos

ou modos de um Deus Uno, consideraria que Cristo era um aspecto ou uma atividade de Deus, mas que não tinha existência real, como havia feito Sabélio no século III (O’Grady, 1994, p. 101; Rubenstein, 2001, p. 108).

Ário, retirando-se do Egito, se dirigiu a Nicomédia, onde buscou o apoio de Eusébio, que, por sua vez, se empenharia em utilizar toda sua influência no Oriente a fim de reabilitar Ário. Eusébio de Cesaréia também utilizaria seu prestígio em favor de Ário, convocando um concílio, realizado em Cesaréia por volta de 319-20. Sob a orientação de Eusébio, os bispos tiveram pouca dificuldade em readmitir Ário e exigir que Alexandre fizesse o mesmo. Essa teria sido a primeira vez que um concílio se reuniria com o fim último de revogar as determinações de outro concílio.

Deve-se ressaltar que, naquele momento, não havia uma autoridade eclesiástica legítima, capaz de atuar em casos como esse, visto que não havia a obrigatoriedade de os bispos de uma diocese aceitarem as doutrinas ou as decisões anunciadas pelo bispo de outra, pois todos os bispos tinham, em tese, o mesmo poder, embora alguns governassem territórios maiores e com maior importância política, como as sés episcopais de Roma, Alexandria e Constantinopla.

O impasse se agravou no Oriente, levando Alexandre a buscar apoio no Ocidente, o que, por sua vez, dava margem à possibilidade de cisão entre Oriente e Ocidente. Rapidamente, o arianismo se espalhou por todo o Império, tornando a situação tão insustentável que Constantino, ao saber da disputa em Alexandria, tomou providências imediatas a fim de apaziguar as partes. O imperador enviou Ósio de Córdoba, bispo de sua confiança, ao Egito, a fim de se inteirar da questão e de comunicar a Alexandre e a Ário o descontentamento do imperador com a polêmica entre ambos. Após o retorno de Ósio, o imperador designou o bispo para organizar um

concílio, de caráter universal e ecumênico, que discutisse o assunto. Inicialmente, o concílio deveria ocorrer em Ancara, mas acabou se realizando em Nicéia, em 325.

O concílio de Nicéia contou com a presença de cerca de 320 bispos vindos principalmente do Oriente. O próprio imperador assumiu a direção dos trabalhos. Entre os clérigos presentes, Rémondon (1969, p. 79) identifica algumas tendências: os arianos radicais, apoiados pelo bispo Eusébio de Nicomédia, que afirmavam que o Logos era de essência diferente da do Pai; os arianos moderados, tendo como porta-voz o bispo Eusébio de Cesaréia, os quais congregavam tanto bispos que aceitavam a tese da semelhança substancial quanto os que acordavam com a da não substancial; e os que eram contrários, que defendiam a consubstancialidade do Filho com o Pai, grupo liderado pelo bispo Alexandre e pelo então diácono Atanásio. O concílio encerrou seus trabalhos determinando a condenação do arianismo e a excomunhão de Ário e seus partidários e definiu um credo que deveria ser aceitos por todos.

Apesar da aprovação no concílio, o credo não conseguiu uma aceitação universal, de maneira que o arianismo continuaria a expandir-se. Com a morte de Constantino, a questão seria agravada devido à divergência entre os imperadores Constante e Constâncio II, que favoreceriam respectivamente nicenos e arianos. No governo de Constâncio, teremos um agravamento da polêmica na medida em que a política imperial será pró-ariana. Em Alexandria, a discussão chegaria à população, que participou ativamente da disputa entre arianos e nicenos, mesmo se valendo do confronto violento com o poder imperial.