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A HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER

Para tratar dos princípios ontológicos de Tillich, é preciso esclarecer primeiramente como chegou a eles e sob que motivações sua ontologia se move. Tillich foi influenciado diretamente pela filosofia de Kant, Hegel, Kierkegaard e pela síntese teológica de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834). O seu pensamento, como é evidente, não se reduz a esses autores, mas eles eram focais nas universidades alemãs no início do século XX, período em que Tillich realiza sua formação acadêmica. O ponto de partida de Tillich encontra-se em estreita relação com a hermenêutica de Friedrich Schleiermacher que, ainda no século XIX, realizou um empreendimento contra o deturpamento do sentido da fé ante os discursos das ciências emergentes e da lógica filosófica kantiana.110

Schleiermacher havia promulgado a fé como sentimento de dependência absoluta. Foi a maneira que encontrou para livrá-la da circunscrição moral em que a filosofia de Kant a havia confinada. Expressão infeliz, pela qual pagaria um preço elevado. Tillich, porém, vem em seu socorro, mas com outros argumentos. Como aprendeu com a infelicidade de Schleiermacher, sabia que a redução do significado da fé a sentimentos preparou também o caminho para que os seus detratores considerassem os problemas religiosos e teológicos sem dignidade para o mundo moderno.111 Schleiermacher ficou preso à tradição kantiana, sem querer e sem saber. Ao reduzir o problema religioso ao sentimento individual, reduziu-o também à moralidade, e assim acabou, pois, coroando a filosofia de Kant, segundo a qual à religião não resta alternativa senão ser instrumento para a realização do imperativo moral da Razão Prática (“o que devo esperar?”). A expressão infeliz de Schleiermacher trouxe conseqüências que podem ser resumidas assim: se o significado das questões religiosas não passa de uma questão sentimental, então poderá ser eliminado por não possuir estatuto válido para habitar o mundo da racionalidade moderna. Sentimentos não cabem nas categorias da

110 Conforme TILLICH, Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p. 101, Schleiermacher “[…] é o pai da teologia protestante moderna”.

111 TILLICH, Perspectivas...op. cit., p. 105. Os princípios de Schleiermacher estão corretos quando refutam a dicotomia entre sujeito e objeto do conhecimento deísta e racionalista. Deus não pode ser um objeto ao qual se tem acesso pela razão, mas Deus é o fundamento da existência que já se encontra ontologicamente em nós. Scheiermacher denominou isso Sentimento de Dependência Absoluta. Esse foi o passo em falso que permitiu aos lógicos decretar a insignificância filosófica da fé. Mas, ainda assim, a sua importância é grande. O que ele desenvolveu ressurgirá, mais tarde, em Husserl como método fenomenológico. Ver GOTO, O

racionalidade neokantiana. Não têm, portanto, dignidade filosófica e nem ontológica.112 Segundo a avaliação tillichiana, não há dúvida de que os adeptos do pensamento cientificista emergente do século XIX se aproveitaram da infeliz conclusão de Schleiermacher. Era disso que os deístas e epistemólogos neokantianos precisavam para se livrar da “incômoda” questão religiosa e, juntamente com ela, varrer também o essencialismo platônico para a esfera da insignificância.113

Resta, no entanto, considerar que Tillich rejeitou a resposta de Schleiermacher, mas não o cerne de sua proposta. Os indícios das questões relacionadas à fé , isto é, o sentido existencial do crer, situado entre abismo e salvação e levantadas primeiramente por Schleiermacher, tornam-se uma ontologia no pensamento de Tillich.114 De onde a razão autônoma iluminista tira seus argumentos para impugnar a fé? Essa pergunta Schleiermacher não perdeu de vista.115 Ele não queria salvar a teologia ou as tradições eclesiásticas, mas o significado existencial do ato de crer, o sentido ontológico da fé. Schleiermacher trouxe à tona uma questão que se tornaria o fio condutor central do pensamento tillichiano, ou seja, a fé começa na razão, mas não se esgota nela. A razão não pode resolver o drama existencial, mas pode indicar a única fonte de onde a solução pode vir. Assim diz Tillich, “A experiência não é a fonte da qual procedem os conteúdos da teologia sistemática, mas o meio através do qual eles são existencialmente recebidos”.116

Sob essa ótica, Tillich viu em Schleiermacher também um vitorioso, pois,

[...] dizia que um verdadeiro filósofo pode muito bem ser também um verdadeiro crente. Conseguia combinar piedade e filosofia. [...] Conseguia combinar a piedade com a coragem de cavar nas profundezas do pensamento filosófico. Ou, como diria: “Os pensamentos mais

112 O movimento pietista contribuiu para isso à medida que a teologia neokantiana é uma contraposição ao seu legado. O Pietismo foi um movimento religioso surgido ainda no século XVII no seio do protestantismo mas não ficou exclusivamente ligado a ele, encontrando adeptos também no catolicismo. Seu fundador foi Filipe Jacó Spener (1675-1705). Kant teve severa educação pietista e a sua filosofia traz as marcas disso. Como observa HÄGGLUND, História da teologia, p. 281, o pietismo tem como fundamento a “[...] a insistência numa piedade viva bem como na demonstração da insuficiência do conhecimento teológico objetivo [....]”. Tillich observará que o pietismo está correto ao negar a possibilidade de um “conhecimento teológico objetivo”, mas equivoca-se ao considerar que uma “opção individual de fé” não implica, implicitamente, uma ontologia.

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Quando se observa que a questão religiosa vive ou viveu uma de suas maiores crises de identidade desde o século XIX , senão a maior de sua trajetória, é justamente desse papel “insignificante” que a ela vem sendo atribuída desde então que se fala. Sobre isso, torna-se a mencionar o texto de VAZ, Escritos de filosofia I, p. 159-189, como uma análise muito concisa e profunda sobre esse tema.

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TILLICH, Teologia..., p. 46.

115 A sua visão do problema religioso consistia em pôr em evidência detalhes que reaparecerão no método fenomenológico de Husserl. Husserl não tratou de religião, mas de fenômenos tal qual eles se apresentam à consciência. Em 1800 Schleiermacher escreve um texto como o significativo título “Discurso sobre a religião às pessoas cultas entre seus detratores” (Reden Über die Religion an die Gebildeten unter ihren Verächtern), HÄGGLUND, História da teologia, p. 307. Para Schleiermacher estava claro que a questão religiosa não poderia ser tratada como distanciamento cognitivo entre sujeito e objeto, como os kantianos pretendiam. 116 TILLICH, op. cit., p. 57.

profundamente filosóficos identificam-se completamente com o meu sentimento religioso mais íntimo”.117

A questão religiosa havia se tornado frágil porque sua abordagem não podia se dar sob os pressupostos racionalistas objetivos dos neokantianos.Era preciso uma outra forma de conhecimento. Estava muito claro, portanto, para Schleiermacher que a fé tem significado ontológico e não é a teologia institucional, a religião e, menos ainda, a tradição e as autoridades eclesiásticas. Assim, estava traçado o esboço do qual Tillich se aproveitaria para o seu sistema, isto é, a compreensão de que o cristianismo historicamente constituído não é ainda o Cristo e, portanto, não é a revelação. A fé demanda uma ontologia que ultrapassa o conceito histórico de religião.118 Mas Schleiermacher era filho do idealismo e, assim como Hegel, queria realizar uma síntese entre a visão moderna de mundo e a fé cristã. O existencialismo e a procura pela fundamentação ontológica do sentido da fé, mostraram a Tillich que esse caminho nunca foi viável, mas agora já não se podia mais crer nele.

2.2 EXISTENCIALISMO DE KIERKEGAARD COMO RUPTURA COM A SÍNTESE