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A hierarquia dos tratados em relação às leis

4. O POSICIONAMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO

4.1 A hierarquia dos tratados em relação às leis

A relação entre tratado internacional e lei interna, de acordo com a suposição da hierarquia legal, será de paridade normativa. Isto é, no momento em que o tratado internacional é absorvido pelo ordenamento jurídico, ele terá força de lei federal.

Por outro lado, a teoria da hierarquia supralegal e infraconstitucional dos tratados internacionais explica que estes tratados entrarão no ordenamento jurídico com força normativa maior que a lei federal, afastando a incidência de norma oposta, isto é, a lei federal que dispuser em contrário ao tratado não será revogada mas verá a sua eficácia retirada até que o tratado seja excluído do ordenamento jurídico via denúncia.

Aqui, faz-se uma observação de que, quando uma lei é criada, o legislador tem consciência do que já é vigente no plano interno e seu trabalho está em construir uma cadeia de normas com informações que se completam.

Para retirar do plano da validade aquela norma que não mais corresponde aos interesses ou à realidade da sociedade, o legislador cria outra com sentido

37 MAZZUOLLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 7. ed. ver., atual. e ampl.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.873.

oposto, que não será considerada uma antinomia já que, mesmo materialmente contrárias, as duas não valerão ao mesmo tempo, pois uma revoga a outra.

Em alguns casos, o legislador, diante do vasto mundo jurídico, cria normas com o mesmo âmbito de validade mas que são conflitantes entre si, e deverão ser cumpridas segundo os critérios criados pelo Direito para a resolução das antinomias.

Segundo Norberto Bobbio 38, as regras fundamentais para a solução de

antinomias são três: o cronológico; o hierárquico; e o da especialidade, respectivamente. O cronológico se consubstancia na máxima de que lex

posterior derogat priori, ou seja, lei posterior revoga lei anterior. O critério

hierárquico informa que lex superior derogat inferiori, dado que esta inferioridade consiste na menor força do seu poder normativo em relação à norma superior. Por último, deve-se analisar se as normas conflitantes versam sobre conteúdo geral ou especial (ou excepcional), sendo que a lex specialis

derogat generali.

De acordo com a hierarquia legal, pode-se observar que ambos os tratados internacionais e a lei federal estão no mesmo âmbito de validade e possuem o mesmo nível hierárquico. Neste raciocínio, as antinomias entre tratados internacionais e lei federal deverão ser solucionadas através do critério cronológico ou especial.

Não podemos deixar de citar Hans Kelsen39 que, em sua Teoria Pura,

onde defendia o monismo jurídico, advogava a favor da primazia do direito internacional em relação ao direito interno, visto que, segundo ele, a ordem jurídica interna deriva da ordem jurídica internacional. O desdobramento desta teoria resultou no entendimento da hierarquia supralegal e infraconstitucional dos tratados internacionais.

Com efeito, as antinomias entre tratado internacional e lei federal devem ser resolvidas pela primazia do direito internacional, como visto na maioria das jurisprudências brasileiras antes de 1977. O Pedido de Extradição n.7 de 1913 verificou um conflito entre lei federal e tratado, em que este último prevaleceu na decisão do STF, mesmo sendo a lei federal posterior ao tratado.

38 BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P. 237- 254

39 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Neste mesmo sentido, na Apelação Cível n. 9587 de 1951, referente ao caso da União Federal vs. A Companhia do Radio Internacional do Brasil, o Supremo Tribunal Federal prolatou acórdão unânime que decidia que o tratado revoga as leis anteriores. Ademais, na Apelação Cível n. 8332 de 1944, o Ministro Orozimbo Nonato afirmou em acórdão:

Todavia (...) parece-me que o Estado, vinculado por Tratado, não pode citar lei alguma que contrariasse esse tratado.” (...) Enquanto não fizer a denúncia não pode ser descumprido o tratado e a obrigatoriedade de sua observância, a não ser que se use desse meio especifico acarreta a consequência de que o Estado continua preso ao tratado.

Este era o entendimento dos tribunais brasileiros, inclusive do Supremo Tribunal Federal, até o julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.004 em junho de 1977, em que esta corte firmou raciocínio de que os tratados internacionais estão em paridade hierárquica com a lei federal, devendo o critério para a resolução de antinomia ser o da lex posterior derogat priori ou o da lex specialis derogat generali porque, segundo o Ministro Francisco Rezek, “expressão última da vontade do legislador republicano deve ter a sua prevalência garantida pela Justiça- sem embargo das consequências do descumprimento do tratado, no plano internacional”. 40

Este entendimento não nos parece acertado pois significa uma afronta ao

pacta sunt servanda, contrato celebrado pelo país criando um compromisso na

esfera internacional. Aliás, é uma afronta direta à Convenção de Viena, recentemente ratificada, que prescreve no artigo 27 que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.”

Ora, o Estado, exercendo a sua soberania, livremente consentiu com o tratado, criando a obrigação de seu cumprimento no plano internacional, e não a mera expectativa de cumprimento. O processo que retira o tratado do ordenamento jurídico não pode ser a expedição de nova norma interna que o revoga, mas a sua denúncia, ato unilateral do Estado em que exprime a sua vontade de deixar de ser parte do Pacto. Não havendo a denúncia, o Estado

40 REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 106

ainda tem a obrigação e a responsabilidade internacional sobre os assuntos do tratado.

Contudo, a partir de 1977, com o julgamento do referido Recurso Extraordinário, o entendimento da Suprema Corte é de que uma lei interna pode vir a revogar um tratado anterior a ela e, como realça Celso D. Albuquerque Mello41, esta “tendência mais recente no Brasil é a de um

verdadeiro retrocesso nesta matéria.” Em concordância, Flávia Piovesan:

Acredita-se que o entendimento firmando a partir do julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.004 enseja, de fato, um aspecto crítico, que é a sua indiferença diante das consequências do descumprimento do tratado no plano internacional, na medida em que autoriza o Estado- parte a violar dispositivos da ordem internacional- os quais se comprometeu a cumprir de boa-fé. 42

Mais recentemente houve a decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1480-3/DF em junho de 2001 que apurou a inconstitucionalidade da Convenção n.158 da OIT sobre a despedida arbitrária ou sem justa causa do trabalhador, onde o Ministro Relator Celso de Mello proferiu voto a favor dos critérios de cronologia e especialidade para se escolher a aplicabilidade de lei ou tratado no caso concreto.

O atual entendimento da Suprema Corte, consoante o que foi exposto anteriormente, não é compatível com a nova dinâmica internacionalista que se tem encontrado, oriunda da globalização internacional dos problemas.

Os tratados acordados entre os Estados que cuidam de situações comuns (que não de direitos humanos), tem por escopo promover direitos e responsabilidades de um Estado para com o outro. Sob a compreensão da teoria da hierarquia legal dos tratados, tem- se aí uma insegurança jurídica causada pelo possível descumprimento do pacto internacional, que acaba por retirar a sua força normativa no âmbito interno e externo e, consequentemente, o seu motivo de existir.

41 MELLO, Celso de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979. p. 69

42 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 118-119

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