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A HIPÓTESE DO BACKGROUND E O CONTEXTUALISMO LINGUÍSTICO

No documento O Contextualismo de John Searle (páginas 72-75)

Examinamos, até este ponto, o conteúdo geral da HB e algumas características mais perceptíveis que a distinguem do CP e de outras formas mais brandas de contextualismo. Um leitor não familiarizado com a obra de Searle poderia se perguntar, a esta altura, o que essa hipótese radical a respeito da subdeterminação dos pensamentos tem a ver com o contextualismo linguístico, que é, afinal de contas, apenas uma hipótese sobre a subdeterminação dos significados. Os pensamentos são estados intencionais internos à mente, e os significados, seja lá qual for exatamente sua natureza, parecem pertencer a uma ordem pública e acessível a todos. Não se trata aí de duas visões totalmente diferentes, ou até mesmo independentes, a respeito de fenômenos igualmente diferentes e independentes?

Não para Searle que considera que “o significado literal de uma sentença é uma forma de intencionalidade convencionalizada” (SEARLE, 1979, p. 131). Em outros momentos ele descreve o significado como uma forma de intencionalidade derivada, oriunda da imposição de condições de satisfação sobre um objeto físico cuja produção foi a realização das condições de satisfação de um ato anterior (cf. Searle (1983, cap. 6)). A dependência no Background é algo que afeta as representações em geral, e a significação linguística é uma modalidade de representação entre outras:

[A]s características que citamos [a dependência no Background] não se aplicam apenas aos conteúdos semânticos, mas às representações de um modo geral; em particular, trata-se de características dos estados intencionais, e já que o significado é sempre uma forma derivada de intencionalidade, a sua dependência contextual é ineliminável. (SEARLE, 1980, p. 231)

Se tentássemos romper o lastro entre o significado e o Background, teríamos que romper as ligações entre o significado e a intencionalidade:

[O] significado depende do contexto do mesmo modo como as formas de intencionalidade não-convencionais, e não há como eliminar essa dependência do significado no contexto sem romper suas conexões com as outras formas de intencionalidade, e, assim, eliminar totalmente a intencionalidade do significado. (SEARLE, 1979, p. 135)

73 Uma indagação interessante que poderíamos trazer à tona é a de se esse rompimento é sequer possível. Mesmo que concedamos que a aplicação do significado (isto é, sua capacidade de ser compreendido, de determinar condições de verdade, de produzir acarretamentos, etc.) depende do Background e do contexto, o que devemos dizer a respeito do próprio significado? Em outras palavras, o que depende do Background é o significado ou a sua interpretação? A formulação searliana da HB parece, como reparou Carston (2002, p. 66), oscilar entre essas duas afirmações, especialmente porque o termo “significado” pode ser usado para se referir tanto às representações linguísticas convencionalmente atreladas às expressões quanto ao resultado do processo contextual de interpretação dessas representações. A equivocação entre o “significado” e a “compreensão do significado” parece ter origens remotas na obra de Searle. Já em Speech Acts podemos observar a formulação do seguinte postulado: “Compreender uma sentença é saber o seu significado.” (SEARLE, 1969, p. 48). Ora, a manutenção dessa equivalência impede que Searle veja como distintas duas coisas que seus argumentos contextualistas sugerem que devem ser separadas. Searle aparenta, em momentos posteriores da sua carreira, não estar mais comprometido com essa asserção, mas a sua “lembrança” ainda provoca alguns embaraços, como o uso ambíguo dos termos “significado” e “semântica”. Recanati (2003, p. 195-196) repara em outras instâncias dessa ambiguidade, em conexão com a distinção vaga entre “significado da sentença” e “significado do falante” frequentemente invocada por Searle.55

Voltaremos a esse tema mais adiante no exame dos argumentos de Searle, mas o que convém sublinhar aqui é que se o que é dependente de contexto for, não o significado em si, mas sua aplicação, ficará estabelecido, segundo o raciocínio do próprio Searle, que o significado não é uma forma de intencionalidade, já que toda intencionalidade deve depender do contexto. Essa não é, certamente, uma posição que Searle está disposto a acolher, já que a tese central inaugurada em Intentionality (Cambridge University Press, 1983) é a de que o significado linguístico é redutível às formas de intencionalidade pré-linguísticas – ou, em uma formulação mais recente, de que podemos tratar a significação “como uma extensão de formas de intencionalidade biologicamente mais fundamentais” (SEARLE, 2012, p. 18).

55 Em Searle (1968) a distinção parece tomar o significado da sentença como sendo exclusivamente a

representação linguística convencional, enquanto que em Searle (1979), mais especificamente, no seu ensaio sobre os atos de fala indiretos, ela parece tomar o mesmo significado da sentença como se referindo ao que é dito por um falante em um determinado contexto – isto é, à aplicação daquilo que ele anteriormente chamava de significado.

74 Defensores do CP também sustentam, baseados em Grice, uma teoria intencionalista do significado – e não somente do significado do falante, mas também do significado das sentenças. A tendência do CP seria a de concordar, em linhas gerais, com a caracterização searliana do significado da sentença como uma espécie de intenção de significação cristalizada pelo uso – como uma forma de intencionalidade derivada. A primazia do significado do falante sobre o significado da sentença é explicitamente defendida por Recanati (1989) – com argumentos que lembram muito aqueles de Ducrot (1987). Saber como, para os adeptos do CP, esse nível de significação mais abstrato preserva o caráter intencional da fonte de onde proveio não é algo tão crucial quanto o é para Searle, pois eles não aderem à generalização da dependência contextual à intencionalidade em geral. Para eles, constatar a independência do significado em relação ao Background não é um dilema teórico grave, pois eles já sustentam isso para outras formas de intencionalidade.

Em meio a todas as diferenças de enfoque e de proposições, há uma semelhança instigante entre Searle e os teóricos do CP: as justificativas expendidas para a adoção do contextualismo. Os argumentos que o filósofo americano invoca para fundamentar a HB são estruturalmente idênticos àqueles utilizados pelos linguistas e filósofos mais moderados que defendem o CP. Isso deve fomentar a suspeita de que uma das partes não está extraindo a conclusão correta do seu raciocínio. Como podem os mesmos argumentos conduzirem a posições tão diferentes? Das duas uma: ou Searle está exagerando em sua conclusão, ou os contextualistas mais comportados estão buscando uma “sobriedade” teórica insustentável, dados os seus pressupostos.

É digno de nota que, apesar de a HB fazer referência à cognição humana como um todo, os argumentos que a sustentam são quase que exclusivamente linguísticos. Searle (1983), na verdade, alega não possuir nenhum “argumento demonstrativo” (p. 144) que prove a necessidade do Background, mas apenas um “conjunto de investigações independentes” (p. 145), que o conduziram à HB. A hesitação em chamar essas investigações de “argumentos” é um indício de que talvez as conclusões que Searle esteja extraindo delas extrapolem aquilo que elas próprias autorizam.56 Tais investigações envolvem: (i) a compreensão do significado

56Aliás, certa expressão de insegurança em relação aos resultados obtidos – tão alheia aos momentos mais

“triunfalistas” da obra de Searle – é uma constante nas discussões sobre o Background: “Um dos capítulos mais mal entendidos do Intentionality é aquele chamado „O Background‟. Eu devo ser parcialmente responsável por isso porque eu não me expressei de modo suficientemente claro. [...] Procuro dar uma série de razões para essa afirmação [da HB] e explorar suas consequências, mas acho que toda a discussão é ainda muito insatisfatória.” (SEARLE, 1991, p. 289)

75 literal; (ii) a compreensão das metáforas57 e (iii) as habilidades físicas. Conquanto Searle cite, nesse momento, três linhas paralelas que aparentam – de uma maneira um pouco obscura – convergir em direção à HB, ele parece considerar que o caso mais forte e contundente é (i), que é o único que ele desenvolve com mais detalhes em escritos subsequentes (chegando até, como em Searle (1995, p. 130), a caracterizá-lo como um argumento, terminologia que adotarei doravante). Nas suas palavras:

A maneira mais simples de ver que a representação pressupõe um Background não representacional é examinar a compreensão das sentenças. A beleza de começar com as sentenças está no fato de que elas são objetos sintáticos bem definidos, e as lições aprendidas a partir delas podem ser aplicadas a todos os fenômenos intencionais. (SEARLE, 1992, p. 178)

No documento O Contextualismo de John Searle (páginas 72-75)