• Nenhum resultado encontrado

A hiperestesia e o espaço no encontro com o ‘outro lado’

Segundo Onimus (1994, p. 34) Le Clézio, o qual considera um hiperestésico, – indivíduo portador de sensibilidade extremamente aguçada aos estímulos com a paciência de analisar a fundo suas mensagens e o dom de transformá-las em palavras –, deseja viver com seu corpo e por seu corpo. Viver e sentir são complementares e inseparáveis da existência humana: “[...] sentir, ce n’est

pas chercher à s’approprier le monde; c’est seulement vouloir vibrer, être à chaque seconde le lieu de passage de tout ce qui vient du dehors, traverse et ressurgit [...]”

(LE CLÉZIO, 1978a, p. 164). Em L’Extase matérielle, o autor de Voyages de l’autre

côté diz que a beleza e a energia da vida, não se encontram no espírito, mas na

matéria:

L’étendue inimaginable de la réalité, de la réalité aux points de repères tranchants, je veux la voir. Je veux toucher tout ce qui peut être touché. Goûter tout ce qui peut être goûté. Sentir tout ce qui sent. Voir, entendre, recevoir en moi par tous les orifices, toutes les ondes qui partent du monde et le font spectacle. (LE CLÉZIO, 1967,

p. 240).

Ora, Le Clézio expressa o desejo de estabelecer uma intensa comunhão com a matéria que o cerca pelo filtro das sensações, pois esta interação pode revelar a beleza e os mistérios ocultos no real.

Como expressão deste sensualismo, os espaços imaginários do ‘outro lado’ são criados a partir dos sentidos depreendidos pelo eu em contato com a realidade diegética. Os países mágicos se constituem por meio do filtro das sensações desencadeadas pelas percepções de Naja Naja – e concomitantemente do narrador –, que provocam um tipo de embriaguez perante os elementos do mundo exterior. Esta embriaguez ou êxtase material determina um mergulho na imaginação que revela o ‘outro lado’. O segredo para atingir o ‘outro lado’ parece ser a cuidadosa percepção da realidade exterior mediada pelos sentidos, a visão, o tato, a audição e o olfato, pelos quais a fada enfraquece os limites entre o real diegético e o imaginário, penetrando no ‘outro lado’.

No texto de Voyages de l’autre côté, a percepção visual é a principal forma de romper as fronteiras entre o real diegético e ‘outro lado’: “Naja Naja a les

secrets. Ce ne sont pas des clefs pour ouvrir des portes, c’est plus simples que cela, c’est dans son corps, derrière ses yeux. Elle ne veut rien dire, elle ne desserre pas les lèvres. » (LE CLÉZIO, 1975, p. 33). Diante do olhar de Naja Naja, qualquer

elemento do real diegético é susceptível de exteriorizar o ‘outro lado’. Como medita o narrador de L’Extase matérielle,

Être vivant, c’est d’abord savoir regarder. Pour ceux dont la vie n’est pas sûre, regarder est une action. C’est la première jouissance effective de l’être vivant. Il est né. Le monde est autour de lui. Le monde est lui. Il le voit. Il le regarde. Les yeux bougent, s’orientent ensemble, les prunelles fixent les choses. Les formes sont. Rien ici n’est immobile. Tout bouge, bouge, bouge à la folie. Le regard donne son mouvement au monde. (LE CLÉZIO, 1967, p.113).

O olhar pelo qual procura o autor francês, é um olhar ativo, que faz com que a interioridade se misture aos elementos materiais, de maneira que o eu faça parte dos elementos ou das paisagens percebidas. Para isso, é preciso reaprender a ver, de modo que se comece a olhar intensamente cada mínimo detalhe da paisagem exterior, aqueles detalhes que passam despercebidos pelo homem que vivencia a rotina da vida moderna. Conforme o pensamento lecléziano, deve-se, de certa maneira, ter uma midríase, palavra escolhida inclusive pelo autor para nomear um de seus ensaios, Mydriase, que significa, em termos médicos, a dilatação das pupilas, mas que se refere no texto em questão, à capacidade de alguns indígenas de enxergar além da realidade conhecida. Nesse ensaio o autor afirma: « Les yeux

sont des moteurs, pour aller dans l’autre sens, vers le futur, vers les pays inconnus, vers les rêves, les choses de cette nature. » (LE CLÉZIO, 1993a, p. 22).

Neste sentido, o narrador se apropria do olhar de um ser que conserva, como a criança, uma cumplicidade permanente com o mundo natural e com os elementos materiais, a narradora-mágica Naja Naja, que olha atentamente os pequenos elementos da natureza, “les petites choses, du genre des fourmis ou des

mouches. Elle regarde aussi les herbes lisses, les fleurs, les oiseaux [...]” (LE

CLÉZIO, 1975, p.21) e da cidade moderna, onde

il y a des endroits drôles, une Pontiac vert pomme, ou bien un autobus jaune et bleu, ou bien une bicyclette avec une roue voilée. Il y a des endroits qui frémissent et s’agitent, pleins d’électricité. Naja Naja ne se repose pas: elle regarde, autour d’elle, droit devant

elle, quelquefois même en arrière. (LE CLÉZIO, 1975, p. 115, grifo

nosso).

Naja Naja, e com ela o narrador, integra-se aos objetos materiais do real diegético, atravessando para o seu ‘outro lado’:

Certains jours, Naja Naja fait ceci : [...] elle traverse tout ce qu’elle voit. Elle regarde tout ce qu’il y a autour d’elle, les maisons, les

magasins, les garages, les voitures, elle regarde tout avec des yeux

clairs-obscurs, sans chercher à comprendre. Les objets sont

simples, ils sont purs et nets, on va facilement de l’ autre côté. On

voyage, et en même temps on reste immobile. (LE CLÉZIO, 1975, p.

111, grifo nosso).

Esta transposição do real diegético ao imaginário pela mediação do sentido da visão corresponde a uma viagem, como define o título da narrativa lecléziana, uma viagem ao ‘outro lado’, que é, na verdade, uma viagem imóvel, porque se viaja para os espaços nascidos da imaginação do narrador, que se utiliza, por sua vez, das percepções de Naja Naja. Desencadeiam-se, então, várias viagens mediadas pela percepção visual da realidade diegética: ao ver o reflexo de seu corpo em uma vitrina, Naja Naja descobre o que a imagem oculta, “des carrés blancs, des carrés

bleus, des carrés jaunes.” (LE CLEZIO, 1975, p. 111). O narrador conta ainda que “elle ne choisit pas les choses dans lesquelles on peut entrer. Simplement, à la découverte, à chaque seconde apparaît une forme nouvelle qu’on n’attendait pas. Naja Naja d’un seul coup la traverse et se retrouve derrière. » (LE CLÉZIO, 1975,

p. 111-2, grifo nosso). Qualquer elemento do mundo representado pela diegese é passível de ser ‘transpassado’ à medida que Naja Naja o visualiza:

Naja Naja avance, elle traverse tout le temps ce qu’il y a. Par terre, il y a des feuilles mortes, brun-rouge, et on va vite de l’autre côté. Sur le trottoir, quelquefois il y a des trous creusés, pleins de terre. [...] Naja Naja traverse les trous et va visiter les secrets. Il y a vraiment beaucoup de choses. Certaines bougent vite, les vélomoteurs, les voitures, les autobus, les reflets, les mots écrits sur les papiers. D’autres sont fixes et on les voit de loin, on passe lentement à

traverser [...] (LE CLÉZIO, 1975, p. 112, grifo nosso).

A visualização da cor amarela da bolsa de uma jovem que passa ao lado da fada, a conduz a um país amarelo e brilhante, onde se encontra um «ciel immense jaune

couleur canari [...]» (LE CLÉZIO, 1975, p. 116); da cor vermelha de um lenço

exposto em uma vitrina, a um país vermelho macio e doce, « un pays soyeux et

doux, où tout est couleur de sang. Pas de ville, ni de mer, mais de grandes prairies de hautes herbes rouges qui ondulent jusqu’ à l’horizon, et, au-dessus, la tache de sang du soleil » (LE CLÉZIO, 1975, p. 116); do nome ISOPACTOR, escrito em

grandes letras negras na carroceria de um caminhão, a um imenso país:

On est restés longtemps immobiles à l’entrée du chantier, à

regarder le nom magique. Puis on s’est approchés très lentement, sans le quitter des yeux, et on est entrés en lui. On a traversé la

paroi du camion bleu et blanc comme si ç’avait été le rideau d’une chute d’eau. Quand on est passés à travers le nom on a senti un grand souffle d’air froid, et on a fermé les yeux à cause de la lumière. C’est un pays immense [...] (LE CLÉZIO, 1975, p. 204-5, grifo nosso).

Esta passagem do texto lecléziano mostra claramente a interação entre o olhar que percebe, o olhar de Naja Naja que se encontra imóvel, e o elemento material que é percebido, a palavra ISOPACTOR. Da mesma forma, Naja Naja/narrador se funde ao país das estrelas, quando se concentra na visualização do céu estrelado:

Naja Naja regarde le ciel de toutes ses forces, avec ses pupilles

dilatées. Peu à peu les étoiles apparaissent. [...] Naja Naja regarde intensément, sans battre des paupières. [...] Maintenant, au-dessus

d’elle, le ciel est constellé d’un horizon à l’autre. [...] Naja Naja

regarde toutes les étoiles, celles qui l’effraient, celles qui sont ses

amies, celles qu’on ne peut pas aborder. (LE CLÉZIO, 1975, p. 210-

12, grifo nosso).

Portanto, o ‘outro lado’ do real diegético se revela no interior do eu pela interação do olhar que percebe com a realidade percebida, interação que causa o arrebatamento íntimo que caracteriza o êxtase material, resultando na exteriorização do país mágico por meio da escritura.

Como anunciamos, o rompimento das fronteiras entre o real diegético e o imaginário, não se efetua em Voyages de l’autre côté, somente pela mediação da percepção visual, mas também pelo tato, pela audição e pelo olfato. O autor francês afirma, em La Fièvre, que « nos peaux, nos yeux, nos oreilles, nos nez, nos langues

emmagasinent tous les jours des millions de sensations dont pas une n’est oubliée. Voilà le danger, nous sommes de vrais volcans.» (LE CLÉZIO, 1965 apud

tudo que se sente, pois sobre a terra e na vida, tudo é mágico, o céu, os mares, o nascimento de uma vida (LE CLÉZIO, 1978a, p. 56). A magia é justamente, quando o olhar “[...] unit ce qui voit et ce qui est vu, quand la peau et la surface de la terre se

ressemblent, se frôlent, et frissonnent [...]” (LE CLÉZIO, 1978a, p. 57), isto é, quando

o olhar, a audição, o tato e o olfato se fundem ao vento, ao cheiro do mar, às cores da cidade, ao calor do sol ou ao frio da noite, enfim à matéria exterior, permitindo que a imaginação viaje ao ‘outro lado’, esses inúmeros países mágicos descobertos por Naja Naja e seus amigos. A magia é uma energia ou uma rede de forças desconhecidas, presente nos seres humanos e no resto dos elementos da realidade e que reestabelece a ligação entre interior e o exterior, dos seres ou das coisas entre si (LE CLÉZIO, 1978a, p. 57). As viagens ao ‘outro lado são desencadeadas por todos os sentidos que fazem com que o ser humano entre em contato e redescubra o mundo exterior onde vive, como diz o poeta em L’Inconnu sur la terre: “Nous ne

pouvons pas être les aventuriers de l’inconnu. [...] Nous autres, nous ne pouvons être que les voyageurs des rues, des jardins, des champs, les voyageurs du voisinage.” (LE CLÉZIO, 1978a, p. 60).

Como conseqüência, Naja Naja aguça todos os sentidos ao caminhar pela cidade e se aproxima de uma pequena fonte, cuja frescura da água em sua garganta, não apenas sacia sua sede, mas a conduz a um país bizarro, onde

il n’y a que des cascades, de très hautes cascades d’eau pure et froide qui coulent entre les blocs de rocher, qui remplissent des bassins bleus, puis qui se vident en faisant d’autres cascades plus petites. Elle entend tous les bruits qui jaillissent et ruissellent dans ce pays, et qui vous emportent vers des cascades sans fin. (LE CLÉZIO,

1975, p. 116).

A fada toca ainda os muros e os carros estacionados nas ruas, que revelam o país do áspero, poeirento, liso e frio, onde existe « des déserts, des montagnes de sable

rouge, des vallées pleines de poussière, des collines de métal arrondies qui brillent au soleil, où vivent des gens casqués et en armures. » (LE CLÉZIO, 1975, p. 117).

Enquanto anda, sente também o calor do sol que lhe desperta para o país dos cactus e agaves, « où il n’y a que des cactus et des agaves, et leurs ombres noires

découpées sur le sol éblouissant. » (LE CLÉZIO, 1975, p. 117). Ao parar diante da

vitrina de uma padaria, sente o odor do pão quente que esconde um país de massas e cascas douradas « où souffle un bon vent tiède qui apporte le parfun du pain. C’est

un pays où l’on n’a jamais faim, où seuls le vent et l’odeur vous nourrissent.» (LE

CLÉZIO, 1975, p. 116).

Várias sensações podem ser desencadeadas ao mesmo tempo, multiplicando-se e se intensificando até exteriorizar o país mágico. Deitada à beira- mar, Naja Naja/narrador se concentra na visualização do sol, de onde emana um calor e uma luminosidade “vague, déchiqueté, avec une drôle de lueur diffuse qui se

répand dans l’ air. » (LE CLÉZIO, 1975, p. 52). A luz e o calor sentidos atraem-na em

direção ao astro: « Elle reste longtemps étendue sur le bloc de béton, et la lumière

brille fort sur son maillot noir. Puis, petit à petit, elle commence à être attirée par le trou blanc au milieu des nuages [...]” (LE CLÉZIO, 1975, p. 52); logo, as sensações

visuais e táteis provocadas pelas percepções da luz e do calor estimulam-na a viajar ao país do sol.

As sensações visuais e táteis se misturam, por exemplo, em uma outra viagem, quando Naja Naja, o narrador-personagem e seus companheiros sentem o calor das chamas enquanto observam fixamente uma fogueira até mergulharem no país do fogo:

Tout de suite il y a une grande flamme claire qui a bondi très haut, en faisant un rugissement. On s’est reculés un peu, et on s’est assis par terre, dans le coin de la carrière, et on a commencé à regarder le feu sans rien dire. [...] Alors on voit une grosse fumée noire, âcre, qui sort du brasier [...].Il y a une vague de chaleur qui déferle sur

nous, on a les cheveux, les sourcils et les poils qui frisent. [...] On ne regarde plus rien d’autre. [...] C’est comme si on était assis devant le

cratère d’un volcan, à regarder tous les bonds de lave et de cendres venus du fond de la terre. [...] Tu regardes cela, et tu es si près des flammes qu’un rien pourrait te réduire en cendres. [...] Tu es débout au milieu du brasier, et tu regardes. Tu es maintenant seul au centre d’un désert immense, tu respires l’air surchauffé. [...] Tout est beau quand tu es au pays du feu. (LE CLÉZIO, 1975, p. 236-9, grifo

nosso).

Enfim, o narrador se integra ao mundo sensível ao adotar as percepções de Naja Naja, que exacerbando os seus sentidos, atinge uma realidade mais profunda nos limites entre o real diegético e o imaginário. Essa percepção sensorial causa o rompimento entre a realidade externa e a interna e permite o enfraquecimento das fronteiras que separam a interioridade do absoluto sensível. Um mundo imaginário se revela ao narrador, à Naja Naja e também as outras

personagens, que se apresenta no texto por meio de diversos quadros descritivos, que trazem uma imagem do ‘outro lado’ pela mediação da escritura poética.