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A História Cultural do Livro e da Leitura e as noções de ‘representação’ e ‘apropriação’

A escrita e a leitura em foco

PRODUÇÃO E DA CIRCULAÇÃO DOS TEXTOS

1.2 H ISTÓRIA C ULTURAL E A PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE DISCURSOS

1.2.2 A História Cultural do Livro e da Leitura e as noções de ‘representação’ e ‘apropriação’

Na perspectiva do historiador cultural estadunidense Robert Darton (1990), a história da leitura é um ramo da história do livro, cujo fortalecimento se deu primeiramente na Inglaterra no século XIX, desenvolvendo-se depois, em 1960, na École Pratique des Hautes Études, na França com as tendências da “Nova História”, ou ainda, com a movimentação dos Annales. Ainda segundo o teórico, os historiadores do livro nessa nova tendência de estudos estavam empenhados em “[...] descobrir o modelo geral da produção e consumo do livro ao longo de grandes períodos de tempo” (DARNTON, 1990, p. 110), utilizando como fonte documentos como os privilèges5 e as bibliotecas dos leitores, bem como inventários etc. Um representante desse primeiro período de estudos do livro foi Robert Mandrou que passou a investigar a mentalidade

      

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Página 39 dos leitores a partir de uma coleção de livros chamada “Bibliothèque bleue” dos

editores de Troyes, produzida do século XVI ao século XVII.

O projeto de Mandrou, ou ainda, sua forma de narrar a história dos leitores é logo criticada, não pelas fontes e condições em que desenvolvera seu estudo, mas antes pelos questionamentos dirigidos aos documentos que analisa. Nesse contexto, jovens historiadores, no final dos anos de 1960, passam a conceber que os inventários post- mortem e os catálogos de bibliotecas privadas podem levar a resultados enganosos sobre as práticas de leitura, considerando-as fontes para analisar-se as representações dos leitores, isto porque dissimulam os livros perigosos, proibidos, como os de menor valor e grande circulação. Os livros que constam em um catálogo ou em uma biblioteca não coincidem necessariamente com a biblioteca ou as práticas de leitura exercidas pelos leitores.

À frente das críticas a este modelo de história da leitura, podemos destacar Roger Chartier, que analisa o modo como a produção e a circulação dos textos afetam e atestam as práticas de leitura e como os textos podem trazer indícios das representações do leitor que deles se apropriam. A história cultural, tal como compreendida por Chartier (2002, p. 16) “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”, os quais podem ser acessados pelo historiador por meio das formas materiais dos objetos culturais produzidos e compartilhados por uma dada comunidade.

Assim, na abordagem histórica fundada por Chartier sobre a história cultural da leitura, cabe ao historiador apreender indícios materiais para descrever como uma determinada comunidade de leitores, em determinado momento histórico, se apropria das formas e sentidos de um texto, para assim detalhar suas práticas de leitura. Indícios estes não mais baseados no cálculo de alfabetizados, ou observados em documentos oficiais, ou mesmo pela menção de um conjunto de títulos de livros em testamentos e inventários, como outrora se fazia, uma vez que a circulação dos textos e suas apropriações extrapolam essas fronteiras sociais (entre os que possuem e não possuem livros, entre os que dominam o código escrito e os que não dominam).

Segundo a perspectiva da História cultural, tais indícios vão ser buscados na própria estrutura dos textos (uso de margem, de pontuações, ilustrações, extensão dos períodos frasais, das retomadas), nas formas de sua produção e de sua circulação para uma dada comunidade.

Página 40 Nesse contexto, em seu artigo "Le monde comme représentation6" publicado nos

Annales, em 1989, Chartier desenvolve uma reflexão sobre o oficio do historiador distanciando-se dos princípios então vigentes na historiografia francesa, “fundada no primado da liberdade do sujeito, pensado como livre de toda e qualquer determinação, e privilegiando a oferta de idéias e aparte refletida da ação”, procurando “compreender a partir das mutações no modo de exercício do poder (geradores de formações sociais inéditas) tanto as transformações das estruturas da personalidade quanto as das instituições e das regras que governam a produção das obras e a organização das práticas” (CHARTIER, 1991, p. 188). Para tanto, o historiador retoma ao conceito durkheimiano-maussiano de representações coletivas com à ênfase dada por Pierre Bourdieu às lutas por formas de classificações sociais, aproximando o conceito de mentalidade, e a compreensão de leitura e apropriação tal como entendidos por Michel de Certeau e Bourdieu.

Desse modo, a representação demonstra como em diferentes espaços e épocas uma realidade é construída, imaginada e dada a ler por grupos sociais diversos, produzindo um efeito de real. Sobre esta noção, Pesavento (2005, p. 39) indica-nos que “as representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência” a partir dessas representações. Nesse sentido, as construções, ou percepções sociais, são resultantes, por um lado, das representações impostas por aqueles que têm o poder de classificar e nomear e, por outro, das representações que a própria comunidade faz de si, tal como explica Chartier:

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 2002, p. 17).

Nesse contexto, ainda segundo o teórico (2002), o controle pela representação tem tanta importância quanto o controle econômico ou político para a compreensão dos mecanismos com os quais um grupo procura impor suas concepções, valores e domínio sobre outros.

      

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Esse artigo é traduzido para o português por Andrea Daher e Zenir Campos Reis e publicado no periódico brasileiro “Estudos Avançados” em 1991, sob o título “O mundo como representação”.

Página 41 Outra noção fundamental para a teoria da História Cultural dos Livros e da

Leitura é a de apropriação. A apropriação está relacionada ao consumo cultural tomado como uma operação de produção que apesar de não fabricar um objeto, dá a ver sua forma de compreensão sobre o que consome pelas maneiras como emprega, ou compreende, os objetos que lhe são seus. Esta noção atua sobre a prática de produção de sentidos e recepção dos produtos culturais, como os livros, os textos.

[...] A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. (CHARTIER, 2002, p. 26).

Desse modo, para o teórico francês Michel de Certeau (1998), se considerado que “o livro é um efeito (uma construção) do leitor”, o leitor lê nos textos o que não foi por estes previsto ou intencionado, re-significando-os, afastando-os de sua origem e contexto, combinando-os com outros fragmentos e saberes.

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