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A partir deste instante, passo a apresentar a análise de uma das entrevistas, realizada com Dona Lazinha17, uma senhora que fisicamente não é jovem, mas que chama atenção pela intensa jovialidade e espontaneidade que demonstra ao descrever sua maneira de ser, de pensar e contar suas histórias e experiências de vida. Várias vezes, durante nossa conversa, afirmou que não pensa em parar de estudar: “só paro de estudar o dia que fecharem essa escola ou não deixa nóis entrar”. Disse ainda que não pretende sair da escola até aprender a ler e a escrever e que não vai à escola preocupada com “pegar diploma”.

Dona Lazinha contou que não sabia escrever nada e que hoje, após alguns anos nesta escola/turma, tem conseguido copiar da lousa. Entretanto, por várias vezes, disse sentir muita falta da leitura, pra sua vida pessoal. É uma pessoa bem animada e disposta que pertence a um grupo da 3ª idade, do qual participa ativamente, seja nas viagens que são realizadas, nos jogos, festas, enfim faz questão de estar presente em todas as atividades que o grupo organiza. Durante nossa conversa, os olhos de Dona Lazinha, por várias vezes, se encheram de

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lágrimas, ao recordar momentos importantes de sua infância e suas experiências de vida.

Ao direcionar meu olhar para a entrevista, observo alguns aspectos interessantes, os quais passo a destacar. Com relação à prática da leitura e escrita, enquanto prática cotidiana, mesmo sem ter o domínio da linguagem escrita, Dona Lazinha mantém contato constante com materiais de leitura e escrita. Em sua casa, podem-se encontrar livros e diversos tipos de revista, de diferentes datas, embora não consiga recordar o nome, Dona Lazinha cita que possui alguns exemplares já com 50 anos de publicação. Faz questão de guardar todos os materiais impressos de eventos que participa, dando atenção especial àqueles que significam algo em sua vida, tal como uma pequena biografia que uma palestrante fez dela, durante um curso do qual participou.

Ler, pra Dona Lazinha, ainda é um sonho, que muitas vezes se torna real, ao pegar e folhear, constantemente, os livros, revistas e jornais que guarda em sua casa com tanto carinho. Ela disse que é um hábito quando está em casa, pegar esses materiais e lê-los. Muitas vezes, olha para as letras, tentando adivinhar o que está escrito. Observa as imagens, fotos de uma determinada publicação e quando vai perguntar para a filha o que está escrito, se surpreende por saber e, de certa forma, já ter entendido o que ali está escrito, como se já conseguisse ler e decifrar o que está nesses papéis. Vontade que a leva em alguns momentos, embora com dificuldade, a decorar letras e tentar juntar as silabas formando palavras, como quando, por exemplo, vai ao supermercado comprar algo ou quando viaja e fica lendo as placas existentes nas rodovias. Ainda, ao receber cartas, faz questão de responder. Não apenas assinando o nome; mas assim que a neta responde, ela copia toda a carta com sua própria letra, para depois enviar as pessoas com quem corresponde. Prática que já se tornou um hábito, pois sempre procura copiar da lousa tudo o que a professora passa; e em sua casa, às vezes copia algumas matérias de revistas e jornais que considera interessante. De fato, como mencionou várias vezes, “a leitura é um ouro, assim como a escrita”.

Em sua fala, nota-se a importância que os desenhos e símbolos assumem na leitura do material escrito. Em muitos momentos, Dona Lazinha afirmou que, no dia- a-dia, as fotografias, imagens ajudam muito quando tem que ir ao supermercado, ler um jornalzinho da “promoção”, ler reportagens, tanto que muitas vezes “acerta” o que está escrito no “conteúdo” das publicações. Imagens que despertam sua

atenção, deixando-a “curiosa” para tentar descobrir o que está “oculto” ou “escondido” no texto.

Com o intuito de averiguar algum tipo de relação que Dona Lazinha pode ir construindo no decorrer de sua vida com a História, pedi que ela passasse a contar algo importante que tenha acontecido em sua vida. Ao contar, observo que em seus comentários, Dona Lazinha sempre se reporta a época, datas, e narra, com muita precisão e descrição, os lugares no qual ocorreram os fatos.

Durante sua narrativa, algo que chamou à atenção, foi a relação que Dona Lazinha conseguiu desenvolver entre um fato importante que ocorreu na História do Brasil e sua História de vida: a vida e morte de Getúlio Vargas. História que Dona Lazinha reconstitui, a partir das lembranças que guarda em sua memória, com uma riqueza de detalhes tão grande, que sinto como se estivesse de alguma maneira, participado pessoalmente da sua História e de suas lembranças. Ouvir suas experiências de vida fez-me sentir como que se houvesse sido transportada para aquele momento descrito, tentando “decifrar” o que estaria “oculto” na História que, de certa forma, me era familiar. Até porque, durante meus anos escolares, a vida e a política de Getúlio Vargas foi objeto de estudo de uma disciplina chamada “História”. Ao ouvir Dona Lazinha contar sobre esse personagem que esteve tão próximo de sua vida, para mim, era como ouvir falar de alguém familiar, que já conhecesse e que, de alguma maneira, esteve também, próximo a mim. Por isso, me causou certa estranheza ouvir algo que não sabia, que não estava nos livros de História que havia estudado, mas que se apresentava a mim, ali pela primeira vez: uma outra explicação para a morte de Getúlio Vargas. Segundo o relato de Dona Lazinha, Getúlio Vargas não cometeu suicídio, como afirmam muitos livros oficiais de História. De acordo com os próprios familiares e relato de pessoas que, de certa forma, estiveram ligadas ao presidente na época, Dona Lazinha afirma que Getúlio Vargas foi assassinado por um inimigo que o envolveu numa disputa por terras.

Quão espantada fiquei ao ouvir o relato de Dona Lazinha! Justamente por ter presenciado estes acontecimentos e tempos depois, tomar conhecimento do relato oficial, Dona Lazinha tem certa desconfiança das histórias contadas nos livros didáticos, quando afirma que “no livro de História explica como fabrica o açúcar, o álcool, né [...] essas coisas, eu já to a par porque trabalhei na usina né!”.

Ouvir a narrativa tão detalhada de Dona Lazinha, me colocou novamente frente com a História, a qual tenho buscado incessantemente e que, por vezes, se

apresentou de formas tão distintas, me levando a questionar e rever minha prática docente e o que estaria envolvido nela, além de levar a uma nova “leitura” de alguns aspectos da minha formação, enquanto “historiadora”.

A narrativa de Dona Lazinha a respeito da História que vivenciou sobre Getúlio Vargas, se tornou, para mim, “mais viva”, do que qualquer outra encontrada em livros de História. Embora soubesse que os livros diziam outra coisa, Dona Lazinha estava ali, diante de mim, apresentando, mais do que a “verdade” dos livros, a verdade de sua vida, por meio de um acontecimento que foi muito importante para todos, em especial para ela, que teve a oportunidade de ter contato com um personagem tão conhecido e importante, destacado em nossa História, a qual narra sem talvez se preocupar com a “verdade histórica”.

Inclusive sobre a História, embora não tenha domínio da leitura, Dona Lazinha sabe que hoje, o conteúdo dos livros não são os mesmos de antes. Em sua infância, disse estudar sobre Pedro Álvares de Cabral, descobrimento do Brasil, época que relaciona ter sido a mesma em que estudou a cartilha Caminho Suave. Atualmente, na escola, disse estudar a respeito de outras pessoas e assuntos que, de certa maneira, estão mais próximos à sua realidade de vida e ao seu cotidiano. O interessante é que Dona Lazinha disse que gosta muito de estudar História e de contar, relação que Walter Benjamin estabelece em seu texto O Narrador (1994).

Além dessa relação, podem-se delinear outras, como por exemplo, a noção de experiência que se constrói e que vai além dos livros escolares. Ao passo que os livros de História contam como se fabrica o açúcar, Dona Lazinha vivenciou todo esse processo quando trabalhou em uma Usina. Experiência, que a partir da noção dada por Jorge Larossa, Dona Lazinha vivencia, no momento em que narra partes de sua História de vida e que, de certa maneira, me toca, à medida que revivo também parte de minha própria vida, marcada pelos sucessivos encontros com a História. História vivida e que tenho tentado construir durante minha trajetória de vida, ao passo que me vejo constantemente envolta nesse imenso novelo que é a História, vez por outra, puxando alguns fios, que possam ser como caminhos que me guiam a uma porta sempre aberta a novos olhares e transformações.

Parto a seguir, para a análise de uma outra narrativa em que o sujeito, assim como Dona Lazinha, tem muito a compartilhar de sua experiência.

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